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30/01/2011 - 08h00

O regime cubano (2)

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DESTILAÇÃO Demorei 36 horas para conseguir um galão de água purificada. Em seguida, poli minha panela de pressão, testei e remendei suas vedações de borracha; submeti a panela a uma esterilização e coloquei água e açúcar lá dentro. Misturei, fechei e esperei. Passadas quatro horas, a panela de pressão estava borbulhando com uma espuma turva de tom marrom e cheiro mortífero.

Destilar requer uma mangueira. Tentei uma loja de artigos para a casa em um shopping center que vende em moeda forte, em Malecón, e depois uma loja de ferramentas. Por fim, perguntei a um frentista em um posto de gasolina. Ele me aconselhou a procurar um homem que fica posicionado na 3ª Avenida, ao lado de uma mesinha dobrável.

Depois de muita discussão sobre álcool, esse homem de mãos e feições encobertas pela graxa, um encanador clandestino vindo do Brasil, me deu uma mangueira de cerca de um metro, bem suja. Tentei por duas horas remover a graxa endurecida do interior do tubo. Usei calor, sabão, um trapo e um cabide de roupas retorcido, mas sem resultado.

Por fim, pedi a um jardineiro que trabalhava em um jardim do bairro se ele podia me conseguir uma mangueira apropriada à destilação de aguardente. O pedido lhe pareceu a coisa mais natural do mundo e, meia hora depois, ele me entregou um metro de mangueira cortado do jardim de alguém.

Pelos dois dias seguintes, verifiquei o líquido na panela de pressão. A mistura estava atraindo drosófilas e borbulhava baixinho.

Os deuses estavam sorrindo, e também as prostitutas. Eu vinha há mais de uma semana me esquivando às atenções de uma jovem que caminhava pelas ruas próximas de meu apartamento. Era um exemplo clássico da economia cubana em ação: calças justíssimas, correntes douradas, sombra azul nos olhos, sandálias com salto plataforma e unhas postiças de acrílico pintadas nas cores da bandeira cubana.

"Psst", ela dizia ao passar, chamando minha atenção para esses atributos. Eu muitas vezes costumava me sentar na escadaria do meu prédio, a fim de aliviar a sensação de estar aprisionado no pequeno apartamento. Ela me olhava pelo portão de ferro, ao passar, e me chamava. Psst.

Eu resistia ao apelo. Mas a jovem, como muitas prostitutas cubanas com quem conversei, era uma mulher charmosa e inteligente lutando para sobreviver, por sob as propostas do tipo "jewwannafuckeefuckee". Conversamos uma vez, e voltamos a fazê-lo dias mais tarde. Nossa terceira conversa foi longa. Ela tentava o tempo todo ser convidada a entrar no meu apartamento --eu tinha fogo para seu cigarro? Um cafezinho? Uma cerveja ou refrigerante?- e eu nem cedia e nem recusava, porque as histórias dela me divertiam.

Em dado momento, o som de um celular surgiu de seu decote. Ela atendeu, e travou uma conversação tendenciosa, em inglês. Quando desligou, ela disse: "Ele quer comer meu rabo". Cogerme em el culo. Os cubanos, especialmente as prostitutas, não fazem rodeios quanto a sexo. Ou raça. "Os negros sempre querem sexo anal", ela continuou. "Não gosto de negros, mesmo que me considere negra, e minha irmã é negra, mas acho que os negros cheiram mal. O sujeito tem muito dinheiro. É um homem importante nas ilhas Cayman, e rico de verdade. Ele me ofereceu US$ 150, e eu recusei. Agora disse que quer me pagar US$ 300 só por um jantar".

"Duvido muito", eu disse.

"Pois é. Sempre digo a ele para ligar para minha prima. Ela adora negros".

Todas as nossas conversas tanto começavam quanto se encerravam com uma proposta. Porque, ao longo de uma semana, eu havia recusado repetidamente os seus convites, ela disse: "Eu achei que você fosse pato". O quê? "Você sabe, maricón. Um gay. Homossexual".

Ela é enfermeira, tem 24 anos, vive em Holguín. Para conseguir mais tempo de férias, trabalha turnos de 12 horas, e depois, a cada quatro ou seis meses, vai a Havana para um longo intervalo "no qual me dedico a isso", disse. Em um raro momento de eufemismo, se definiu como dama de acompañamiento.

"A maioria das meninas tem cafetões, mas eu não; preciso me defender sozinha". Além do celular, seu decote oculta uma pequena faca serrilhada, cuja lâmina ela estendeu e exibiu.

"Você sabe por que fazemos isso", disse, "não é? É a única maneira de sobreviver. Tenho uma filha e a amo muito. É uma menina preciosa. Sinto muito sua falta. É por ela que faço isso. Que tal me dar US$ 100 e a gente sobe agora?" (Ela mais tarde me ofereceria o "preço cubano" de US$ 50.)

Eu disse a ela que não tinha dinheiro. Expliquei o que estava fazendo. A ração. O salário. Os cinco quilos que eu tinha perdido. "Não tenho nem um peso", disse. Ela pediu uma caneta, anotou seu telefone e me entregou o papel. Depois, tirou de um dos bolsos minúsculos de sua calça justa uma moeda de um peso, e me entregou.

"Para você me telefonar", disse.

Foi mais um dia terrível no que tange à comida, meu pior até aquele momento. Do alvorecer à meia-noite, comi arroz, feijão e açúcar em valor nutritivo de pouco mais de mil calorias. Acordei às três da manhã seguinte e terminei o arroz. Só me restava um pouco de feijão, duas batatas doces, algumas bananas da terra mirradas, três ovos e um quarto de repolho. Faltavam nove dias.

Fui à loja de produtos racionados, procurei Jesús e comprei café, meio quilo de arroz e um pouco de pão --tudo a preços cubanos, um total de 14 pesos, ou cerca de US$ 0,60. Com isso meu dinheiro acabou. Mas essas sobras de comida, a generosidade de diversos cubanos e meu estômago contraído para o tamanho de uma noz garantiram que fosse o bastante. Eu sabia que cumpriria meu plano até o fim.

No dia seguinte, fui a pé até a casa de Elizardo Sánchez, o ativista dos direitos humanos. Setenta minutos de caminhada para ir e 70 para voltar. "Tudo está bem, agora", eu lhe disse, delirando com a falta de açúcar no sangue. "Até prostitutas estão me dando dinheiro".

Passei uma hora em sua casa. Ele me ofereceu um copo de água.

Por fim chegou o grande dia da fuga. Não minha partida, que só aconteceria oito dias mais tarde, mas sim o álcool. O líquido marrom parara de borbulhar depois de quatro dias --quando o teor alcoólico atinge os 13%, o fermento remanescente morre.

Esterilizei a mangueira e, dobrando um cabide, afixei-a à válvula no topo da panela de pressão. Acendi um fósforo e, em 10 minutos, tinha vapor de álcool, transferido pela mangueira para se condensar em forma líquida na garrafa vazia de uísque, posicionada em uma vasilha cheia de gelo.

ÁLCOOL TÓXICO Demonstrando minha ignorância, e desonrando minhas origens na Virgínia, eu havia cozinhado a mistura a uma temperatura alta demais, e não removi a camada inicial de álcool de baixa qualidade, ou até mesmo tóxico. Mas quatro horas de cozimento produziram um litro de uma bebida leitosa, e em minha ingenuidade decidi suspender o processo antes que os restos caíssem na garrafa e estragassem o sabor.

Eu deveria ter feito uma segunda destilação, para produzir um rum mais fino, mas nem tentei. Às quatro da tarde, por fim pude me sentar, tendo em mãos um copo de rum esbranquiçado e quente.

Comecei a beber e em 30 segundos já estava com dor de estômago. O teor alcoólico da bebida era baixo, mas minha tolerância também, e não demorou muito para que eu começasse a rir à toa. O jardineiro veio para provar uma dose, com um ar tristonho no rosto. Acordei à meia-noite, de ressaca, e o padrão se manteve durante minha semana final de estadia. Dor de estômago instantânea, embriaguez amena, dor de cabeça. Mas as duas ou três horas que separavam esses estados valiam muito a pena. Quando saí de Havana, não restava nem uma gota de aguardente.
Tampouco restava muito de mim. Na metade de fevereiro, caminhei pela última vez até o Riviera e me pesei na academia. Estava mais de cinco quilos abaixo do peso que tinha ao chegar.

Mais de cinco quilos perdidos em 30 dias. Eu tinha consumido 40 mil calorias a menos do que estava acostumado. A esse ritmo, eu estaria magro como um cubano por volta do segundo trimestre; e morto antes do final do ano.

Concluí a estadia com algumas refeições minúsculas --acabei com o arroz feio, comi a última batata doce e um quarto de repolho. No dia anterior à partida, recorri à reserva para emergências e comi os palitos de gergelim do avião (60 calorias), acompanhados pela lata de suco de frutas contrabandeada das Bahamas (180). O sabor do líquido vermelho foi um choque: amargo por conta do ácido ascórbico e repleto de açúcar, a fim de imitar o sabor de um suco real. Foi como beber plástico.

FIM Meus gastos totais com comida foram de US$ 15,08 ao longo do mês. Ao final, eu tinha lido nove livros, dois dos quais com mais de mil páginas, e escrito boa parte deste artigo. Vivi com o salário de um intelectual cubano e, de fato, sempre escrevo melhor, ou ao menos mais rápido, se estou sem grana.

Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho.

Houve um momento tragicômico, no qual homens uniformizados me tiraram da fila do detector de metais porque um agente da imigração achou que eu tinha excedido os 30 dias de permanência do meu visto. Foi preciso três pessoas, contando repetidamente nos dedos, para provar que aquele era o 30º dia.

Jantei e almocei nas Bahamas e engordei quase dois quilos. De volta aos EUA, ganhei mais três quilos antes que o mês acabasse. Estava de volta à minha nacionalidade --e ao meu peso.

 

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