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11/09/2011 - 08h05

O murro em ponta de faca do teatro de classe média não convence Paulo José

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LUCAS NEVES

EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

"Utile et Dulce". A inscrição em latim, gravada no pórtico do palco que nos anos 1940, em Bagé (RS), deu a Paulo José as boas-vindas ao teatro, viraria talvez a profissão de fé de sua arte.

Útil e agradável, mobilizadora e prazerosa: é nesse intervalo entre as duas (ou seria no contágio recíproco e infinito?) que repousa a visão do ator e diretor de 74 anos sobre o trabalho que lhe coube.

Na espaçosa casa do Alto da Gávea, na zona sul carioca, em que recebe a Folha, ele ensaiou trechos das três peças com que corre o país desde 2009. "Murro em Ponta de Faca" é o reencontro com a crônica do exílio tecida por Augusto Boal (1931-2009) que ele já havia dirigido em 1978. Está em cartaz em São Paulo.

"Histórias de Amor Líquido", que teatraliza a impermanência dos relacionamentos afetivos --na conceituação do polonês Zygmunt Bauman--, aporta por esses dias no festival Porto Alegre em Cena. E "Um Navio no Espaço Ou Ana Cristina Cesar", em turnê, apanha Paulo em dupla jornada: ator e diretor.

Ele ainda defende um papel na novela global "Morde e Assopra" e se prepara para o lançamento, em outubro, de "O Palhaço", longa de Selton Mello em que interpreta Puro Sangue, pai do clown ensimesmado encarnado pelo diretor.

Na entrevista a seguir, cujos destaques estão na edição impressa da Ilustríssima de 11 de setembro, Paulo cutuca a dramaturgia brasileira atual, critica a fixação do cinema por linguagens importadas e fala da doença que o acomete há 18 anos, o mal de Parkinson. Em quase duas horas e meia de conversa, os poucos sintomas visíveis são a perda de fôlego aqui e ali e a lentidão na superação de determinadas sílabas.

Qual é a sua primeira lembrança do teatro?

A primeira lembrança é de quando fui visitar o colégio Nossa Senhora Auxiliadora, em Bagé (RS), para fazer o exame de admissão ao ginásio. Me levaram para ver vários lugares do colégio: a capela, a sala de estudos, o teatro. Esse foi o que mais me encantou. No pórtico da boca de cena, estava escrito "utile et dulce". Útil e agradável. Nos bastidores, havia um monte de roupa pendurada, e me lembro de uma espada de samurai. Nunca tinha visto nada parecido. Era curva. Eu desembainhei a espada. Era uma coisa preciosa, uma arma. Tinha nove anos. Fiquei fã de teatro. Fazia em casa, no fundo do quintal.

Mas seus pais não queriam que você seguisse o ofício profissionalmente...

Isso foi quando [ser ator] entrou "no lugar de", não só como lazer. Faz arquitetura, faz medicina... mas teatro! "É um bando de desocupados, vagabundos, que nem músicos: ficam na grama, deitados, não trabalham, não fazem nada que preste, só 'entertain' a gente" [imitando a reação dos pais]. Passei a ser um "entertainer".

Quando mudou essa visão?

Minha mãe foi colecionando capas de revista: "Manchete", "Cruzeiro"... Até que já não cabiam mais no baú. Aí, eles acharam que eu tinha adquirido uma certa continuidade.

O problema mais grave [na opinião dos pais] é que você não tem emprego fixo. Ser freelancer ou produtor dos seus próprios trabalhos é aflitivo, te dá insegurança. Então, tinha de ter um diploma. Fui estudar arquitetura, que é meio parecido com arte. Chico Buarque fez arquitetura, Vianninha [o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho] fez arquitetura. Não acabaram o curso, mas fizeram parte. Minha amiga Zezé Polessa, por exemplo, fez medicina durante seis anos. Entregou o diploma ao pai e disse "tchau".

Jacó [do soneto "Sete Anos de Pastor Jacó Servia", de Camões] serviu 14 anos, né?, para ter Raquel. [recita]

"Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: [trecho não recitado pelo ator -- Mais servira, se não fora]
Para tão longo amor tão curta a vida!"

Seis anos, sete na vida da gente não são nada. Quando se chega aos 74 anos... é mais do que se esperava. A gente não tinha se imaginado com 70 anos. [Alguém de] Setenta anos era um velho caquético, caindo aos pedaços. 60, 50, 40, 30, 20. Vinte tá esplêndido. Trinta, mais ou menos. Quarenta, ainda tem vigor físico. Cinquenta já tem cabelo branco, filhos grandes. Com 70, tem netos. Eu tenho dois. Mas até aqui tudo bem, até aqui estamos bem.

Mas o seu lema é de que não se pode planejar nada, já que tudo vai dar errado de qualquer forma. Como isso se concilia com o otimista irremediável que você diz ser?

É assim que as coisas acontecem: quando se fica disponível, não se fecha nenhuma porta, se fica ao ar livre. As coisas passam e te pegam. A vida é isso: é o que se vai fazendo enquanto se idealiza grandes projetos: fazer um grande filme, uma grande peça, escrever um livro. E se vai vivendo. Depois, você começa a colher frutos, a ver que tem uma boa horta. Pegam o meu currículo e ficam impressionados: são páginas e páginas de peças e filmes feitos. Mas costumo dizer que a maior parte é fracasso. A grande vantagem é que fracassos saem logo de cartaz; e são fracassos porque ninguém viu. E o sucesso te cobre um ano, dois de vida, entra na memória de muita gente. Você viaja o país com aquela peça. Então, com três sucessos na vida, você está feito. Já é um grande artista, apesar dos 20 fracassos. [O ator e diretor Antonio] Abujamra costuma dizer: "Eu já tenho 70 fracassos".

Adotar esse discurso não é enveredar numa autoindulgência a priori, numa tentativa de se proteger da perspectiva do fracasso?

Não sei. O Abujamra, quando faz sucesso, diz assim: "Onde será que eu errei?"

Haverá quem diga que montar textos de Augusto Boal (como "Murro em Ponta de Faca", que ele dirige agora), Gianfrancesco Guarnieri ou Oduvaldo Vianna Filho hoje é anacrônico, pois alguns teriam caducado com o fracasso da utopia socialista. Há, na decisão de reencenar "Murro...", um quê de saudosismo --não só político mas também de um certo espírito de teatro de grupo representado pelo Arena dos anos 50 e 60?

Não é saudosismo. Não acho que esses autores estejam ultrapassados. Existe toda uma geração de teatro que sabia escrever. Como os políticos sabiam escrever, vide a carta-testamento de Getúlio [Vargas]. [Carlos] Lacerda, nosso inimigo, sabia falar; podia ficar 24 horas na frente de um microfone na rádio esculhambando os outros políticos. Depois, vem uma fase de teatro da irracionalidade, muito mais corporal, físico do que da palavra. Hoje, se está retomando a palavra. Mas [os dramaturgos contemporâneos] ainda tratam demais da sua realidade, como se fosse muito interessante a realidade de um jovem de classe média. Estão voltados para o próprio umbigo.

Mas tem de haver necessariamente um discurso sociopolítico de fundo para validar o teatro? Não é possível falar de política a partir da visão de mundo de um jovem de classe média?

Não estou falando de política, não. Tô falando de qualidade literária em si. Está em cartaz "Na Selva das Cidades", do [Bertolt] Brecht. Você assiste e fica encantado com a descoberta da palavra. Os personagens, quando se expõem, têm de ter bom texto. Nosso texto é muito reticente, muito coloquial: "E aí, cara, qual é?". É tatibitate, falta fôlego. Você vê que as peças são em geral curtas, têm só dois ou três atores. É difícil você ver em cena o que tivemos nos anos 50 e 60, em montagens como "Pequenos Burgueses", do Górki, "Galileu Galilei", do Brecht, ou "O Rei da Vela" [de Oswald de Andrade].

Insisto: isso não tem a ver com um contexto específico daquela época, de agitação cultural antecedendo uma convulsão política e o surgimento de um movimento de resistência à ditadura? Esse cenário não facilita a criação desse teatro que você busca, mais retumbante? Não estamos em outra época? Seria possível fazer esse teatro hoje?

Não tem dúvida de que é possível, sim. Acho que nós caminhamos para isso, para sair do pequeno gabinete da classe média. A temática da classe média é muito chata, o teatro foi invadido por ela. Não consigo fazer uma peça que agrade muito ao público. Não que seja contra isso, contra a gratificação. Mas você não pode abrir mão de certos valores, de certos princípios seus. A boa escrita é fundamental. Você não pode começar a ler o texto e encontrar vários erros, maus tratos à língua. Isso tem bastante.

Tem uma futilidade temática também... O teatro é feito de grandeza... e pode voltar a tê-la. Agora, o que se está descobrindo aqui são os musicais americanos, né? Existe um público potencial para esse tipo de espetáculo, que se delicia com as criações do [diretor e dramaturgo] Charles Möeller. São espetáculos em que se investe muito, que têm eloquência. É preciso também fazer isso em teatro dramático. Tenho vontade de montar um "Galileu Galilei" ou um "Círculo de Giz Caucasiano" [de Brecht].

Agora, você tem patrocínio, mas é muito pulverizado, migalhas, um pouquinho para cada um. É preciso um investimento pesado. O nosso cinema já tem uma diversidade de temas, de gêneros, de tendências. Acho que está indo bem. No teatro, há muito talento, mas poucos cultores desse talento. Você tem o Antunes Filho, há anos perseguindo uma ideia de teatro. No Rio, tem o Aderbal [Freire-Filho], o Kike [Enrique] Diaz. Pessoas interessadas em discutir teatro.

É um fenômeno que se reproduz na música. A música popular está muito pobrinha. Caetano, Gil, Milton são os nomes que aparecem sempre à frente. Meu Deus, já estão com mais de 60 anos... não houve renovação. Alguma coisa ruim aconteceu aí no meio do caminho. Houve uma ou duas gerações que foram cortadas, capadas, custaram a sair das garagens. Hoje, há um movimento bom começando, mas ainda incipiente. E vive-se a crise das gravadoras, o crescimento da internet. Está um rebuliço, porque não se pagam mais direitos. O que é controvertido, porque uma obra que faz muito sucesso passa a ser pública, cai em domínio público.

Thomas Mann ganhou o Nobel de Literatura. O prêmio era de US$ 1 milhão. Ele não recebeu. Fez uma carta dizendo que "A Montanha Mágica" não pertencia mais a ele. Uma obra que é lida por milhões de pessoas em todo o mundo, em 60, 70 traduções, é de domínio público. São todos donos da obra, cada um constrói a sua montanha mágica. Há uma multiplicação. Ele só detonou aquilo, foi a espoleta. As grandes obras são de domínio público.

Você diz que, quando foi dirigir o Grupo Galpão (em 2003), ficou ressabiado porque sua bibliografia teatral parava no fim dos anos 70. Mas logo viu, em suas próprias palavras, que "não tinha acontecido muita coisa" nesse intervalo. O que dizer então do besteirol da virada dos anos 80, da geração de encenadores (Gerald Thomas, Moacyr Góes, Ulysses Cruz) que se afirma nesse período, da confirmação do pós-dramático (apropriação de formas da dança, da performance e das artes plásticas) como matriz de renovação do teatro?

O besteirol era muito engraçado, divertido. Mas apenas isso. Não sobrou nada. Não dá para erigir um monumento a ele. O Ulysses foi parar na televisão. Tá lá feliz da vida, fazendo "Criança Esperança". O Moacyr Góes foi fazer filmes para o [produtor] Diler [Trindade], com o padre Marcelo Rossi ["Maria, Mãe do Filho de Deus" e "Irmãos de Fé"]. Muito engraçado isso. Não tem nada que tenha ficado mais do que o teatro dos anos 60. Num país como o nosso, existe pouca memória. Vivemos períodos de anestesia. "O Rei da Vela" é de meados dos anos 30. Foi proibido quase que na estreia. Volta a ser montado nos anos 60. Fica 30 anos engavetado. Depois, ele só será reencenado nos anos 90. Ficam buracos. Quem se dedicar a escrever uma história do teatro brasileiro terá grande dificuldade. A Sociedade Brasileira de Autores Teatrais não tem uma biblioteca. Eu mandei para o Serviço Nacional de Teatro mais de 200 textos datilografados, que sumiram.

A minha experiência com gente jovem é às vezes meio assustadora, pela quantidade de coisas que eles ignoram. Até hoje, não veio nada que substituísse um Stanislávski como teorização do teatro, sistematização do conhecimento. Ele dedicou a vida a isso, à observação voltada à criação de um método. Me convidam para fazer palestras. Me surpreendo com as perguntas. Não existe nenhuma agressividade por conta da diferença de idade; seria normal que o jovem fosse iconoclasta. A gente, quando era novo, achava o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] um horror, uma imitação do teatro europeu. A gente polemizava, brigava. Agora, tem um negócio que é chato, constrangedor, que é a admiração. Eu vivo desmistificando os anos 60, o heroísmo, o peito aberto da luta contra o inimigo. Que nada! Éramos uns infelizes. Não tinha outro jeito senão correr da polícia.

Já que você citou a teoria teatral, muito se fala hoje no alemão Hans Thies Lehmann, considerado talvez o grande sistematizador do teatro pós-dramático, essa linha que convoca outras artes para a cena e é praticada por nomes como o Enrique Diaz, que você elogia. É possível mesmo dizer que não há novos caminhos sendo trilhados?

Não tem dúvida de que sim, há novidades. Existem formas muito mais interessantes hoje de encarar o teatro, ligadas à origem dele. Nos anos 50 e 60, ele tinha um contorno definido: era aquilo, e só aquilo. Era o palco italiano [plateia de frente para a boca de cena], o público assistindo no escuro a um drama humano, separado dele pela quarta parede imaginária. Acho muito aborrecido o teatro que busca ser puramente realista.

Tinha montado o "Murro" em 1978. Era um manifesto em favor da anistia. Agora, o exílio passa a ser outro: um isolamento de tudo. Na peça, fala-se de um cara que não tem cidadania, não tem identidade. Hoje, quem é cidadão, com direitos plenos? O povo é maltratado, vive sendo ludibriado. Não há um exercício pleno da cidadania. É uma forma de exílio: você fica alienado de uma sociedade que deveria lhe incluir. Sinto falta de pensadores da vida, que você lê e fica exultante. Nossas leituras de adolescente eram Sartre, Camus. Tinham sustância. Se conhece muito pouco do pensamento contemporâneo, né? Isso é mau para o teatro, porque se reflete pouco no palco.

O teatro se afastou das ciências sociais, da discussão de temas mais profundos, para se aproximar das artes irmãs? Parece que houve uma mudança de foco: saem a sociologia e a filosofia, entram a performance, a dança e as artes visuais?

A sociologia foi uma praga. Passou a ser um balizador do teatro. A sociologia, como profissão, foi desregulamentada. Como emprego, é uma chatice. Muitas coisas acabaram para bem. Por exemplo, tem coisa mais chata do que certos teóricos da semiótica? Era terrível. Porque as pessoas passavam a entender mal, viam aquilo como um instrumento para investigação e análise de alguma coisa. Passavam a tomar aquilo como um fim. A Thérèse Morin, mulher do Edgar, tem trabalhos espantosos sobre o riso. É uma análise semiológica das piadas. No humor, tem sempre um desequilíbrio, uma peça fora do lugar, que causa estranheza. É tão sem graça dissecar uma piada.

Você diz que aprendeu a atuar de modo minimalista, impressionista com o cineasta Joaquim Pedro de Andrade [que o dirigiu em "O Padre e a Moça" e "Macunaíma"]. Hoje, parece haver uma negação desse despojamento. Prioriza-se um certo exibicionismo da parte dos intérpretes, que raspam a cabeça, se submetem a laboratórios duríssimos, perdem e ganham dezenas de quilos para "entrar no personagem"...

Isso se deve ao "star system". O "star" é uma mediação entre o ator e o personagem. Não é nem uma coisa, nem outra. John Wayne, por exemplo, era um "star". Era sempre igual a John Wayne, o "star", não a pessoa. O Wayne pessoa passou 12 anos com câncer e dizia que só trabalhava para se curar do tédio da vida. Mas isso não transparecia no "star", sempre um caubói. A televisão faz muito isso, faz uma mistura terrível entre ator e personagem. As revistas manchetam as situações dos personagens como se fossem dos atores. É tão estranho isso. O ator é um nada. É o que se faz daquele corpo, em torno dele que cria uma mitificação.

No teatro, por mais famoso que seja, o ator, ao entrar em cena, tem estatura humana. Entra sempre inseguro. Sempre há o risco iminente da catástrofe. Você pode esquecer o que tinha para dizer, um objeto pode cair em cima de você. Depois de ver "Vitor ou Vitoria" na Broadway, com a Julie Andrews, saí por uma rua lateral e vi a saída dos artistas. Estava lá ela dando autógrafo e perguntando se tinham gostado. Achei tão curioso. O teatro é muito bom para o ator por conta disso: ou vai, ou racha. Não tem conversa. A TV e o cinema mitificam muito: você aparece aumentado, com uma cara enorme na tela. Fica poderoso.

Você já se referiu às pornochanchadas que dominaram o cinema nacional dos anos 70 como "produções medíocres, com muita mulher pelada, sexo quase explícito, que agradam ao público médio". Vista à distância, essa fase não representou talvez um embrião de indústria cinematográfica, uma aposta em títulos de forte apelo popular para fidelizar a audiência _algo que o cinema brasileiro ainda não conquistou completamente?

A qualidade nasce da quantidade, não tem dúvida. Para que isso aconteça, é preciso que haja uma indústria. O que não me impede de achar os filmes [dessa fase] muito vagabundos. O ponto de partida já é ruim. Supõe-se que o povo queira ver determinadas coisas. O que define o cinema é ser autoral, como música, literatura. Só fiz filmes de autor. O resultado varia, mas se vai sempre com a melhor das intenções. Não se vai já vendido. Nunca fiz filme comercial, não sei o que é isso. Filme de massa. Ser popular não é defeito. É desejável, mas sem abrir mão de certos valores artísticos. O período das chanchadas da Atlântida era maravilhoso. Eram artistas populares, né?. Iam ao encontro do que o povo queria. Era fã, ia na primeira sessão. A TV matou. Era um cinema musical, as músicas do Carnaval eram lançadas no cinema, em novembro, dezembro do ano anterior. Aí, [os artistas] começaram a aparecer na televisão. Você via a cara do Ivon Curi, das irmãs Batista, da Marlene.

Você disse certa vez concordar com quem torce o nariz para a produção cinematográfica brasileira atual. Depois de listar exceções, observou que "em geral, não é para ir mesmo [ver títulos nacionais]". O que falta aos filmes brasileiros?

As pessoas estão viciadas em uma certa linguagem de cinema americano. O [consultor] Syd Field é o mestre do roteiro, do "como fazer um filme igual a muitos outros que você já assistiu". Tem o primeiro ponto de virada aos 17 minutos, o outro aos 43. É tudo medido, é impressionante. Isso já criou um padrão, um hábito. Quando um filme não cabe nessa fôrma, as pessoas ficam muito perturbadas, não conseguem entrar nele. O que tem menos redundância é hermético. Se o receptor não entende, a culpa é sua. Mas se você tem alguma autoridade, o cara que está vendo é que é burro por não entender.

A gente está preso a um timing, a um cinema todo cortado. Se você compara com o cinema iraniano... um cara pega um carro para ir de um ponto a outro, e você segue todo o percurso, em tempo real. Aí falam: "Que coisa chata o cinema iraniano". Não acho. É só ter outro approach, não esperar esse dirigismo dado pela edição. Dizer que os filmes do cinema novo não eram populares é uma inverdade. "Deus e o Diabo na Terra do Sol" é um filme popular. Não há quem não entenda aquilo: é uma fábula primária, simples. Agora, é uma linguagem à qual não se está acostumado.

Acontece também que, nos anos 60, a semelhança entre o que acontece na tela e a vida do espectador era desagradável. [Muita gente fala] "Eu quero um cinema de evasão, com pessoas bonitas, bem vestidas, cenários maravilhosos." "Deus e o Diabo..." só tem gente pobre, fodida. Essa identificação é desagradável. Americano tem isso, né? O filme do [Hector] Babenco, "Ironweed" (1987), foi execrado porque pega os Estados Unido da recessão. Se você pisa muito em miséria, más condições de vida, o americano odeia. Odeia se ver. Aqui, recebemos esse cinema americano de forma colonizada.

Tem vontade de dirigir para cinema?

Não o suficiente para eu pegar R$ 4 milhões, R$ 5 milhões para um projeto meu. Parece que ninguém precisa ver filme brasileiro. Você fica procurando mercado, tentando impingir aquele filme que você fez. As pessoas ficam te olhando de soslaio. Sofri muito com isso. Nos anos 60, com "Macunaíma", eu e o Joaquim [diretor] visitamos vários exibidores para botar o filme no cinema. Acabava a sessão, acendia-se a luz, ficava aquele silêncio. O Joaquim perguntava: "E aí, o que vocês acham?" E ouvíamos: "Filme brasileiro, sabe como é, né? É difícil, é difícil." O exibidor não tem um trunfo na manga, está dependendo do cinema americano. Não tem data. Teria de ser um filme de pegada, que animasse o cara. E tem também a questão da crítica. Você é o primeiro a escrever sobre aquele produto. O cinema estrangeiro já vem com um pacote de informações, com resenhas da "Variety"... você senta na redação para fazer a sua crítica já sabendo daquilo. No cinema brasileiro, você tem de descobrir valores ou não, fica mais inseguro.

E há uma visão paternalista da crítica em relação ao cinema brasileiro?

Sim, há um pouco. Há jornalistas que torcem pelo cinema brasileiro, que fazem perfis de diretores, atores, roteiristas, vão a todos os festivais, estão nas pré-estreias. Têm tanta intimidade conosco que fica difícil fazerem críticas distanciadas. O cara vira um aficionado, um militante.

Você falou há pouco sobre patrocínio. Qual a sua visão sobre a Lei Rouanet, o principal mecanismo de financiamento à cultura no país, e sobre o debate atual em torno da necessidade de repensá-la?

Se confunde o uso com o abuso. É que se abriu uma brecha para você ganhar seu dinheiro na captação. Se você tiver um projeto de R$ 5 milhões e prever um pagamento de 10% para você, já são R$ 500 mil. E é um campo aberto para o oportunismo, porque há lobistas, pessoas que trabalham com a contabilidade de grandes empresas que sabem com antecedência qual vai ser o lucro daquele ano e fazem a intermediação com o agente cultural. Cobram 10%, 20% por isso.

Mas não dá para condenar o uso por conta do abuso. Há distorções pelo fato de, no cinema, por exemplo, a lei priorizar a produção, esquecendo-se da outra ponta, a da distribuição, a da chegada ao mercado. É preciso discutir maneiras de beneficiar o cinema brasileiro na ponta da exibição, com isenção de impostos. Há muito desamparo aí. O cara não precisa fazer bilheteria, então não precisa nem que o filme seja exibido. "Já ganhei o meu, então agora quero fazer outro projeto para ganhar mais dinheiro." Mas não significa que sejam todos uns ladrões. O governo vê com desconfiança: acha que, por princípio, queremos pegar dinheiro, mamar nas tetas do governo.

Como você avalia a gestão de Ana de Holanda à frente do Ministério da Cultura?

Não saberia te dizer, talvez por estar um pouco fora da política. Mas o primeiro ano de governo [de] é botar a casa em ordem. Ela não quer fazer uma política continuísta. Então, leva um ano de reorganização, para ouvir as pessoas. Não sei ainda qual é a política cultural do governo. O PT nos vê um pouco como burgueses, né?, que querem viver bem, com fartura. Não somos preferenciais.

A Ana tenta mudar essa visão de luta de classes?

Ah, sim, é claro.

Muita gente diz que ela assumiu sem conhecer a pauta do MinC...

O PT achava que a Dilma seria pau mandado do Lula. E ela tem muita personalidade. Tanto que agora há um certo afastamento. A lista de escândalos é uma coisa incrível. Não se imagina que as pessoas traiam tanto suas convicções por causa de grana. Com o PT aconteceu uma espécie de assalto ao governo. "Vamos nos locupletar, agora chegou nossa vez de tirar a barriga da miséria." Botar dinheiro na cueca... porra!

O governo da Dilma tem uma cara diferente, tem outros aliados. Então, o MinC procurou pegar caras novas. A Ana de Hollanda foi uma pressão interna lá do pessoal do [Antonio] Grassi [atual presidente da Funarte]. O Grassi tinha caído em desgraça, mas foi reabilitado. E aí desgraçou o ex-ministro Juca Ferreira, que, independentemente do que estivesse fazendo no ministério, seguia uma ideia de mudança, de parar para repensar. Havia reclamação de que ele era muito autoritário, de que não ouvia ninguém nas reuniões que fazia com a classe. Dava o parecer dele, independentemente da ressonância que pudessem ter outros pensamentos.

E você votou no PT nas últimas eleições?

Não me lembro. Não, não votei em ninguém. Tenho mais de 70 anos.

No Lula, você votou? Em 2002 ou 2006?

Votei, votei. O Lula é um homem interessante, que reúne os defeitos da América Latina e suas qualidades também, de continente novo, emergente. Ao mesmo tempo, tem ligações com a Venezuela, espúrias. Tem uma coisa que é sempre simpática para nós, que é [a ligação com] o velho comandante, el comandante Fidel Castro, el viejo maestro.

Falando agora um pouco sobre o Parkinson. Que adaptações são necessárias na escolha dos personagens que vai encarnar e em sua movimentação de cena por causa da doença?

Eu estou bem melhor agora do que há três, quatro anos. Porque fiz uma cirurgia de instalação de uma espécie de marca-passo cerebral, que é pouco conhecida no Brasil, por ser cara. É considerada experimental. O seguro nem paga a cirurgia. Tive a sorte de a Globo bancar uma boa parte. Não paguei nada. Custa uns R$ 200 mil. A frequência elétrica emitida pelo dispositivo inibe os movimentos involuntários, acaba com os tremores e com a rigidez muscular.

Muitas pessoas com Parkinson são maltratadas, pouco assistidas. A medicação é cara. O governo tem obrigação de dar de graça. Mas há obstáculos. Às vezes, você vai ao posto de saúde e não tem o remédio. E na farmácia, custa R$ 600, R$ 700 um vidrinho. [Com a operação] Diminuí a medicação, os efeitos colaterais. A medicação forte faz com que comecem a aparecer uns efeitos colaterais que você queria evitar. Você fica mais parkisoniano do que era. Tem um efeito sensacional. É claro que não posso fazer o papel de um corredor, de um fundista. Mas a idade de qualquer forma não me permitiria isso. Mas papéis que demandem pouco exercício, movimento dá para fazer bem.

Para a doença, o fato de eu estar em cena é ótimo. O ator quase não tem Parkinson. O personagem é mais forte do que o ator. Tem uma concentração de energia que te coloca em cena direito. O que te deixa inseguro é ter texto novo, ter de criar texto. Se você já tem, pelo menos em linhas gerais, a condução do personagem, está só repetindo: já viu, já andou ali. É fácil, fica fácil.

Em cena, você recorre a apoios, fica mais tempo sentado?

Agora, tenho de ficar sentado, porque me canso muito ficando de pé. E é preferível, sim, ter apoio para o braço [mostra o corrimão de ferro que mandou instalar na lateral do tablado de madeira doméstico em que ensaia suas peças].

Como é lidar com a reação das pessoas ao Parkinson? Algumas, no afã de agradar, devem ser tomadas por um zelo excessivo, vitimizante, não?

Tem um negócio que é irritante: ser tratado como criança pelas enfermeiras do hospital. "Chegou a sopinha, vovô vai tomar a sopinha dele agora!". Porra, caralho, que sopinha o quê! Tem muito isso.

Você chega a se irritar?

Algumas pessoas dizem assim: "Nossas estimas de melhoras, viu?" Que melhoras, porra, eu tenho uma doença degenerativa! E nas lojas, com aqueles detectores de metal na porta, tenho de pedir para desligarem o aparelho antes de entrar, porque senão pode desconectar meu marca-passo. Às vezes, a negociação demora. Teve um cara que veio me atender, enquanto desligavam o detector, e disse: "Nossa, mas que doença terrível o senhor tem! Que barbaridade! Tenho uma pena do senhor. Eu me matava, não aguentava ficar assim".

E quando foi que a doença mais atrapalhou o exercício da profissão?

Eu fazia muita locução. Comecei a ir a estúdios para gravar anúncios, documentários. E tinha dificuldade. Muitas vezes, passei o constrangimento de o diretor dizer: "Vamos deixar para outra vez, não está dando certo". Ficava encabuladíssimo. Sou mais lento, né? Vou trabalhando palavra por palavra. Aí fiz o seguinte: montei um estúdio em casa. Porque aí, se não estou bem, não faço nada naquele dia, ou faço bem devagar. A doença tem muitas variações, altos e baixos. E também não fico angustiado de estar usando o estúdio de outro, né? Isso dá uma aflição, é horrível. Fiz o [filme] "Quincas Berro d'Água". O Sergio Machado [diretor] queria que eu fizesse, mas sabia que estava doente. Minha mulher [Kika Lopes], que era a figurinista, disse que eu estava bem. "Como assim, está bem?", respondeu o Sergio. Aí ele veio falar comigo. Corre a notícia no meio de que você não pode fazer nada, está acabado. Com "O Palhaço", foi a mesma coisa. A Vânia [Cattani, produtora] ficou dando volta, estava reticente.

Você acompanha os estudos relacionados ao mal de Parkinson, os testes de tratamentos alternativos?

Sim. Estão aparecendo muitas coisas novas. No ano que vem, deve haver novidades. São medicações que te deixam quase normal. Ninguém se preocupa com a cura do Parkinson. Os laboratórios querem manter você um doente legal, mas pagando sempre, dependente deles. Há grandes avanços. Até algumas décadas atrás, a expectativa de vida [geral, no mundo] era muito mais baixa, então havia menos casos de Parkinson. Hoje, há casos de pessoas com 80, 90 anos e que têm a doença. Tem muito milionário americano que faz doações para laboratórios. É toda uma rede armada da qual você não pode escapar.

As pesquisas com células-tronco, visando à cura efetiva do Parkinson, estão muito atrasadas. O Bill Clinton [quando presidente dos EUA] tinha feito um projeto especial para desenvolver pesquisas sobre a doença. Mas logo entrou o Bush e reverteu tudo. O dinheiro acabou. Doença era problema dos laboratórios, o governo não tinha se de meter com isso.

 

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