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200 anos, 200 livros

Lista reflete peso crescente da questão racial no Brasil

Levantamento reúne 200 obras importantes para compreender o país

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Bernardo Ajzenberg
São Paulo

Listas costumam refletir o humor do tempo. Serão diferentes conforme a época, os debates em curso, os problemas agudos e prementes, as modas ou as preocupações mais ou menos pontuais nas áreas cultural, política, econômica e social.

Nesta relação do projeto 200 anos, 200 livros, essa característica aparece de forma gritante.

Não estamos falando dos 200 melhores livros publicados em dois séculos no país, mas de obras que na visão de especialistas, independentemente muitas vezes de seu mérito literário, conseguem expressar ou traduzir o que constitui esta nação, de qual barro ela é formada, como se desenvolveu essa construção inacabada, torta, e qual o olhar de momento lançado sobre sua existência.

A escritora Conceição Evaristo, mulher negra de cabelos grisalhos, presos num corte black. Ela está em frente a uma obra de arte, tecido laranja que, ao centro, traz um bordado amarelo que lembra o sol. Esse bordado encaixa na cabeça da escritora como uma auréola.
Escritora Conceição Evaristo, que tem dois livros indicados entre os 200: "Olhos d’Água" e "Becos da Memória" - Zanone Fraissat - 31.jul.2017/Folhapress

Não por acaso, o nome mais citado, de longe, é o de Carolina Maria de Jesus. Esse fato parece derivar do peso crescente que a questão racial adquiriu nos enfrentamentos públicos dos últimos anos no país —e no mundo—, o que explica em grande parte, também, a presença na lista de nomes atuais como Conceição Evaristo, Silvio Almeida, Sueli Carneiro, Jeferson Tenório, Djamila Ribeiro, Itamar Vieira Jr. ou Milton Santos e Abdias Nascimento, entre outros, além dos autores negros clássicos, como Lima Barreto, Cruz e Souza e Machado de Assis.

Essa saudável revisão histórica justifica também a quantidade expressiva de obras referentes à escravidão, ao abolicionismo, ao racismo estrutural, a rebeliões negras e às condições precaríssimas de vida típicas de uma parcela enorme da população.

Trata-se de uma questão urgente que tardou para receber o espaço merecido em qualquer discussão sobre a história e a formação do país.

A lista dá conta também de questões como violência urbana e vida nas favelas ou nas periferias urbanas de um modo geral, representadas por nomes como Paulo Lins ou Ferréz (além de Carolina) e pela poesia cortante dos Racionais.

Ferréz, autor de "Capão Pecado", que integra a lista dos 200 livros - Keiny Andrade - 16.jan.2021/UOL

O impacto das discussões do momento se apresenta, ainda, na forte presença de autores de origem indígena, com destaque para Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Daniel Munduruku. Com efeito, foi só nos últimos anos que a própria existência dessas obras ou desses autores chegou ao conhecimento do "grande público" e aos bancos acadêmicos.

O mesmo se pode dizer em relação à participação feminina. Embora ainda minoritária, ela é expressiva: 34 das 200 obras são de mulheres, fração provavelmente impensável se a escolha tivesse sido feita, digamos, 30 anos atrás. Sem considerar a temática do feminismo, presente com ênfase na lista.

Não deixa de ser curioso que mais de um terço das obras sejam de ficção, indicando o peso considerável da literatura na estruturação do país e sua imbricação na vida de seus habitantes —ou ao menos a busca, pelos autores, dessa aproximação. Jorge Amado e Graciliano Ramos comparecem com quatro livros cada um, por exemplo.

Nesse terreno, os especialistas sublinharam também obras marcantes do modernismo e outras de traços intimistas da classe média urbana, como em Clarice Lispector, Lúcio Cardoso ou Oswald de Andrade.

Lado a lado, ocupando a maior parte de uma foto cujo fundo é vermelho, estão as capas dos primeiros oito livros indicados pelo projeto. São eles: Quarto de Despejo, Grande Sertão: Veredas, A Queda do Céu, Raízes do Brasil, Casa-Grande & Senzala, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Um Defeito de Cor
Os sete livros mais indicados na lista de 200 obras para entender o Brasil, de "Quarto de Despejo", líder de recomendações, a "Um Defeito de Cor" - Gabriel Cabral - 01.mai.2022/Folhapress

Desse levantamento, que perfaz a bibliografia para um verdadeiro curso sobre o Brasil, fazem parte, ainda, obras sobre futebol, artes plásticas, folclore, cinema, ciência, teatro, música, sincretismo religioso, vida rural, sistema prisional, o poder estrutural das elites, disparidades regionais, fluxos migratórios ou imigratórios e as ditaduras vividas no país sob a República (Getúlio Vargas e o período de 1964 a 1985).

Diante de um território tão vasto e diversificado, talvez seja querer demais que uma seleção dê conta de todos os pontos. Cabe registrar, de todo modo, a ausência de temas como arquitetura, imprensa, rádio e TV, igrejas —católicas, evangélicas ou pentecostais— ou de biografias de figuras que refletem intensamente uma ou outra época, como Oscar Niemeyer, Villa-Lobos, Luiz Gonzaga, Tiradentes, Xica da Silva, Pagu ou Carlos Marighella. Fica o registro.

Dica para editores: 27 dos 200 livros relacionados estão fora de catálogo; e 34 estão sob domínio público. Um pomar amplo e apetitoso para colher grandiosas frutas.

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