'Quarto de Despejo' vê Brasil esquecido, dizem curadores do 200 anos, 200 livros

Livro de Carolina Maria de Jesus é o mais indicado por um conselho formado por 169 intelectuais; leia os comentários

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Belo Horizonte

Há 62 anos, Carolina Maria de Jesus saía do anonimato ao publicar "Quarto de Despejo" (1960), seu primeiro livro.

O diário ocupa o primeiro lugar do projeto 200 anos, 200 livros, uma iniciativa que elencou as duas centenas de obras mais importantes para entender o Brasil a partir das indicações de um conselho curador formado por 169 intelectuais das mais diversas áreas —historiadores, sociólogos, romancistas, antropólogos, juristas, jornalistas, entre outros.

Carolina Maria de Jesus está no canto direito da imagem. Ela é uma mulher negra sentada ao redor de uma mesa onde estão posicionadas diversas páginas de jornal impresso. Ao fundo, homens brancos e engravatados ocupam demais espaços da redação
A escritora Carolina Maria de Jesus na Redação do jornal Última Hora, em São Paulo, em dezembro de 1960 - Acervo UH - 22.dez.1960/Folhapress

Desse total, 29 pessoas recomendaram o livro —apenas uma das curadoras não enviou justificativa.

O advogado e filósofo Silvio Almeida, um dos conselheiros do projeto, considera o livro "essencial". "Especialmente quando os efeitos da crise econômica devastam a vida de milhões de trabalhadoras e trabalhadores", escreveu.

Por meio da sensibilidade da escritora, então catadora de papel, "Quarto de Despejo" apresenta o cotidiano, a pobreza e o racismo enfrentados na favela do Canindé, em São Paulo, onde Carolina residia com seus filhos desde o final da década de 1940.

Sua narrativa é apresentada, como analisa a ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, por meio de uma "poética dos retalhos" marcada pelo tom da oralidade. Segundo Martins, ela tece "uma potente imagem de um Brasil assombrado por fantasmas e processos de marginalização de pessoas".

Além de "Quarto de Despejo", Carolina está representada na relação de 200 livros com "Casa de Alvenaria" (1961) e "Diário de Bitita" (1986).

Veja os comentários de 28 dos curadores que indicaram "Quarto de Despejo".

Ana Cecília​ Impellizieri

​Editora da Bazar do Tempo

"Carolina Maria de Jesus inaugurou uma linha matricial literária brasileira, periférica, negra, algo sem par no mundo e que, 60 anos depois, ainda nos interroga."

Ana Cristina Rosa

Jornalista e colunista da Folha

"Como bem observou a escritora Conceição Evaristo, a fome que castiga milhares de brasileiros ainda hoje e que Carolina descreveu com muita propriedade nesta obra, não é apenas fome de comida. É muito mais do que isso. É fome de justiça social."

Cidinha da Silva

Escritora e fundadora do Instituto Kuanza, é autora de "Um Exu em Nova York"

"Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra que lutou a vida inteira para construir um lugar de existência para si mesma. Uma autora singular, complexa e paradoxal que não obedeceu à norma culta para escrever e grafou camadas superpostas nas páginas sujas de cadernos encontrados no lixo, um texto errático forjado no processo alquímico de diálogo entre dois anos de escolaridade formal, inventividade e determinação sem limites."

Denise Mota

Jornalista, blogueira da Folha e autora do livro "Vizinhos Distantes: Circulação Cinematográfica no Mercosul"

"Um retrato do Brasil real, preto, pobre, feminino."

Eliana Alves Cruz

Romancista, autora de livros como "Água de Barrela" e "Solitária"

"O diário da escritora que retratou pela primeira vez a vida em uma favela com uma visão de dentro para fora. É uma obra importante não apenas para o Brasil, mas para o mundo. Como uma espécie de versão nacional da fábula 'A Roupa Nova do Rei', Carolina expõe sem enfeites a face cruel de um país, que convive pacificamente com a exclusão e com o déficit de cidadania de parcela enorme de seu povo. Apesar da alta dose de realidade, a obra apresenta muita poesia e capacidade de fabulação. 'Quarto de Despejo' deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas do país."

Detalhe de capa de Quarto de Despejo, à frente dos demais livros das primeiras colocações. É possível ver as lombadas de Grande Sertão: Veredas, A Queda do Céu e Raízes do Brasil
Capa da edição comemorativa do livro, lançada em 2021 pela Ática; atrás dela, as lombadas de "Grande Sertão: Veredas" e "A Queda do Céu", empatados em segundo lugar - Gabriel Cabral - 1.mai.2022/Folhapress

Erica Peçanha

Doutora em antropologia social pela USP, é autora de "Vozes Marginais na Literatura"

"Compilado de registros diários de uma mulher negra e com baixa escolarização formal sobre o seu cotidiano numa favela da cidade de São Paulo, em meados dos anos 1950. Um retrato pungente, autoral e permeado pelas contradições humanas de quem lutava pela sobrevivência da família em um contexto de pobreza e poucas perspectivas de trabalho. Fundamental como testemunho sobre a favela e a experiência da fome."

Flavia Rios

Professora de ciências sociais na UFF (Universidade Federal Fluminense), é uma das organizadoras do livro "Por um Feminismo Afro-Latino-Americano", com textos de Lélia Gonzalez

"É um clássico incontornável da literatura brasileira. Comovente, pessoal e coletivo, revela o avesso da modernidade brasileira. No centro do capitalismo, chamado de locomotiva do Brasil pelos modernistas, uma migrante e chefe de família reflete sobre temas centrais que travam o desenvolvimento do país, como a pobreza, a marginalização, a fome, o racismo, a ausência de políticas públicas de habitação, de saneamento básico e a segregação urbana. Lido no Brasil e fora dele, Carolina é autora que rompeu fronteiras nacionais."

Flávio Moura

Editor e um dos fundadores da Todavia; foi curador da Flip

"Mais de 60 anos depois de sua publicação, o livro inspirado no diário da moradora da favela do Canindé, em São Paulo, reverbera como nunca. Marco da literatura pela crueza desconcertante com que apresenta uma vida feita de privações, a obra está no centro de um debate rumoroso e necessário que chacoalha o cânone sob diversos aspectos: linguístico, identitário, autoral."

Itamar Vieira Junior

Romancista, é autor de "Torto Arado" e colunista da Folha

"O racismo institucional brasileiro tentou, mas não conseguiu silenciar a voz de Carolina Maria de Jesus. O resultado foi uma literatura dolorosa e vivaz, documento incontornável sobre o Brasil pós-abolição e sobre a chaga aberta da escravidão, ainda muito longe de cicatrizar. Passados 60 anos de sua publicação, continua a ser um clássico que fala a gerações e revela 'um país com um passado pela frente', como diria Millôr Fernandes."

Jeferson Tenório

Romancista, é autor de livros como "Estela sem Deus" e "O Avesso da Pele"

"'Quarto de Despejo' é um acontecimento em muitos sentidos. Do ponto de vista estético, a obra de Carolina causa um descentramento na tradição literária porque não obedece aos critérios canônicos brancos e eurocêntricos. Além disso, seu diário confere dignidade existencial a uma população negra invisibilizada pelo racismo e pelo avanço do progresso. É um livro que conta a história de um Brasil esquecido e nos dá a dimensão da perversidade dos abismos sociais."

João Silverio Trevisan

Escritor, jornalista e dramaturgo, é autor de livros como "Devassos no Paraíso"

"Contradizendo o mito do país cordial, este relato autobiográfico, que se tornou um clássico contemporâneo, traz o testemunho em primeira pessoa da tragédia da população negra brasileira, lançada à sua própria sorte, e comprova que, no Brasil, o fim da escravatura nunca se consolidou."

José Vicente

Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares

"O livro registra as impressões da vida, do mundo e da realidade da escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra, moradora da favela do Canindé e catadora de papel, atividade que desenvolvia nas ruas da cidade de São Paulo para sustentar a si e aos filhos. Na sua síntese, podemos conhecer e se apaixonar pela leitura, interpretação e apreensão da realidade, das cruezas e belezas da vida e do mundo a partir desse lugar único. E podemos conhecer, por um lado, sua resiliência e as agruras que enfrentou, como o desânimo e a fome; e por outro, a esperança de que conseguiria mudar o mundo de penúria em que vivia."

De mãos dadas e erguidas, em cima de palco, estão dezenas de estudantes com capelo e beca de formatura, em sua maioria negros, num gesto de celebração. Luzes saem de trás do palco no segundo plano da foto
Registro da primeira turma de formandos da Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares), em cerimônia de 2008 que lembrou os 120 anos da abolição da escravidão no país - Caio Guatelli - 13.mar.2008/Folhapress

Leda Maria Martins

Pesquisadora, ensaísta e professora aposentada da UFMG, é autora de diversos livros sobre o teatro negro no Brasil

"Dos restos do cotidiano e dos farrapos de uma experiência de segregação racial, econômica e social, emerge uma mulher-personagem tecendo, por uma poética dos retalhos, uma potente imagem de um Brasil assombrado por fantasmas e processos de marginalização de pessoas, culturas e modos de expressão, inclusive os literários."

Lia Vainer Schucman

Professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e autora de "Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo"

"'Quarto de Despejo' fala da vida de Carolina, uma catadora de lixo, mãe solteira de três filhos. Esse livro tem a força do realismo, é um diário da miséria e da fome de Carolina, mas também de tantas outras mulheres negras brasileiras. Expõe as feridas mais duras do sexismo, classismo e racismo brasileiro, literatura fundamental para compreensão de Brasil."

Lilia Schwarcz

Historiadora e antropóloga, é professora da USP, cofundadora da Companhia das Letras e autora de mais de uma dezena de livros

"A autora inaugura uma linguagem e uma perspectiva até então muito pouco presentes na literatura nacional: aquela da autorreflexão por parte dos favelados e faveladas do Brasil. Seus desejos, seus problemas, suas famílias, seus vizinhos, sua visão de Brasil. 'A fome também é professora', diz ela."

Luciana Brito

Historiadora, é professora da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)

"Publicado em 1960, portanto somente quatro anos antes do golpe militar, o livro de Carolina de Jesus nos mostra que os problemas da população negra brasileira podem até ter se aprofundado depois do rompimento do regime democrático, mas, desde antes, a fome, a miséria e a falta de políticas públicas, além do racismo e do sexismo, já eram realidades nas periferias das grandes cidades.

Carolina vivia uma realidade marcada pela fome, mas também por sua criatividade, sua poesia e sua sofisticação literária. A obra revela um outro Brasil, não aquele da democracia racial. Carolina de Jesus nos conduz para o Brasil da maioria da população, reafirmando sua incrível capacidade de descrever, analisar e problematizar o cotidiano."

Márcia Lima

Professora do departamento de sociologia da USP, é pesquisadora associada do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

"Lançado em 1960, o livro narra em formato de diário a busca pela sobrevivência e a vida na favela em São Paulo. A forma como o livro define o espaço e as condições de vida nas favelas das grandes metrópoles, assim como o papel e a luta constante das mulheres negras, pobres e mães nesse país, marcam o leitor de maneira contundente. Apesar dos seus 60 anos, 'Quarto de Despejo' fala de um Brasil ainda muito atual."

Mário Medeiros

Escritor e professor da Unicamp, autor de "Gosto de Amora"

"O livro de estreia da escritora Carolina Maria de Jesus, impactante desde a sua publicação. Ao narrar seu cotidiano com seus três filhos e de seus pares, na favela do Canindé, na forma de notas diárias, ela apresenta um lado de São Paulo que era o avesso do progresso comemorado em 1954 no quarto centenário da cidade. Fome, pobreza, discriminação, racismo e violências variadas são protagonistas do livro. Mas também o lirismo e a fabulação de Carolina sobre a vida e a beleza que encontram nas coisas do cotidiano, narradas com extrema sensibilidade."

Michael França

Pesquisador do Insper e colunista da Folha

"Representa uma forma de enxergar o Brasil a partir do ângulo de quem vivencia os desafios sociais. A dor e o sofrimento causados pela pobreza são narrados com maestria por Carolina de Jesus. Emocionante e forte: 'A favela é o quarto de despejo de uma cidade'."

Mirian Cristina dos Santos

Doutora em letras e estudos literários, é autora de "Intelectuais Negras: Prosa Negro-Brasileira Contemporânea"

"As reflexões de Carolina Maria de Jesus em 'Quarto de Despejo' são de suma importância para pensar o Brasil de todos os tempos. Sua narrativa rompe estruturas engessadas, subvertendo amarras linguísticas, literárias e históricas, uma vez que sua escrita multifacetada questiona o status quo. Ler a história do Brasil a partir da intersecção gênero, raça e classe possibilita uma outra compreensão dessa história."

Otávio Marques da Costa

Publisher da Companhia das Letras

"A vontade criativa que enfim se impõe, antes calada —pelas marcas da escravidão, que nos legaram racismo arraigado e pernicioso, e lugares urbanos e sociais de exclusão—, fazem da obra de Carolina Maria de Jesus de algum modo um símbolo da potencialidade que só consegue ver a luz 'na marra'; de resto, pela linguagem poderosa forjada na adversidade e que vem antecipar muito da cultura urbana e periférica que enfim se impôs."

Paulo Roberto Pires

Jornalista, professor da UFRJ e editor da revista Serrote

"O 'Diário de uma Favelada', epíteto que consagrou o livro como best-seller, é um retrato cru do Brasil — tanto pelo que conta quanto pelo tratamento que se dispensou a quem conta. À Carolina, que não veio da classe social nem da raça associadas à maioria dos autores brasileiros, sempre foi negado o status de escritora. Mas só um talento literário excepcional conseguiria produzir aquelas que são as mais tristes e duras páginas da literatura brasileira sobre a fome, o racismo e a demofobia congênita do país."

Petronio Domingues

Professor da UFS (Universidade Federal do Sergipe) e historiador

"Obra composta por diários escritos por uma mulher negra, mãe solteira, catadora de lixo, que retrata sua vivência numa favela da capital paulista, por meio de uma narrativa forte, tocante e surpreendente."

Reginaldo Prandi

Sociólogo e escritor, é professor emérito da USP

"Diário. Mulher negra pobre, favelada, mãe de família, que vive de trabalho pesado e sujo conta seu cotidiano na grande capital e constrói uma sociologia da marginalização vista e vivida por dentro."

Silvio Almeida

Advogado e filósofo, é professor da FGV, presidente do Instituto Luiz Gama e colunista da Folha

"Carolina Maria de Jesus demonstra como, nas cidades brasileiras, racismo, pobreza e abandono são elementos constitutivos da nacionalidade. Livro essencial, especialmente quando os efeitos da crise econômica devastam a vida de milhões de trabalhadoras e trabalhadores."

Thyago Nogueira

Curador e editor, dirige o departamento de fotografia contemporânea do IMS e é editor-chefe da revista ZUM

"Essa súmula dos 20 cadernos que a catadora de papel Carolina Maria de Jesus escreveu entre 1955 e 1960 na favela paulistana do Canindé é um soco no estômago. Com urgência comovente, percepção aguçada e síntese acachapante, Carolina interpreta o Brasil melhor que muito estudioso laureado por aí. Driblando a fome e o desprezo, a escritora ensina que inteligência não se confunde com erudição, que integridade não depende de dinheiro e que a estupidez e a ganância continuam a destruir mentes brilhantes que resistem em favelas ou nas ruas do país."

Tiago Rogero

Jornalista, é idealizador e apresentador dos podcasts Vidas Negras e Negra Voz

"Marco de seu tempo, que revolucionou e oxigenou o branco e masculino mercado literário brasileiro, e que permanece assustadoramente atual. Apesar das décadas que separam a abolição jurídica da escravidão, em 1888, e a publicação do livro, o Brasil retratado pela genial Carolina Maria de Jesus na favela do Canindé, em São Paulo, estava tão próximo do regime escravocrata quanto estamos hoje. A prosa da grande escritora emociona, fere e conclama a (revolução) reflexão."

Wlamyra Albuquerque

Historiadora, é professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e coautora de "Uma História da Cultura Afro-Brasileira"

"É um relato poético do cotidiano de uma catadora de papel numa favela paulista. A delicadeza da escrita enxuta e direta não disfarça a dureza da pobreza de uma mulher negra na cidade. O livro nos guia pelas vielas do morro e vai, pouco a pouco, nos apresentando a personagens que sobrevivem firmando vínculos solidários, mas também disputando por espaço físico, visibilidade social e até mesmo por comida."

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