O dia amanheceu em alvoroço em 14 de junho de 1798, no pequeno arraial do Calambau, interior de Minas Gerais.
Três pasquins haviam sido afixados em espaços estratégicos da vila. Uma multidão possivelmente se formara num desses pontos, no largo atrás da capela de Santo Antônio, para ouvir o que esses panfletos anônimos tinham a dizer.
Seu conteúdo satírico buscava atingir, pelo menos, três objetivos: destruir a reputação do sargento Manoel Caetano Lopes de Oliveira, figura de destaque na região; demonstrar devoção à monarquia portuguesa; e criticar a Inconfidência Mineira, que havia sido suprimida seis anos antes.
A versão revisada e o fac-símile do pasquim, a investigação para identificar sua autoria, conhecida como devassa, e trechos do processo que julgou o caso foram reunidos no recém-lançado livro "O Pasquim do Calambau: Infâmia, Sátira e o Reverso da Inconfidência Mineira".
Organizado pelos professores Álvaro de Araújo Antunes e Luciano Figueiredo, a obra reproduz a íntegra do panfleto, um documento raro encontrado na década de 1980 no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana (MG). O livro também discute as suas contribuições para a historiografia nacional, como a visão incomum em relação à Inconfidência Mineira.
A perspectiva promove uma inversão entre o modo como os mineiros podem ter encarado o movimento à época e a maneira como é lembrado hoje, tratado como uma conjuração de caráter republicano, que antecipou as lutas pela liberdade no território brasileiro.
"É muito mais interessante a gente pensar a Inconfidência como um movimento de libertação", diz Figueiredo, professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Mas o pasquim, de certo modo, nos força a uma reavaliação dessa perspectiva, pelo menos nas camadas médias e populares".
Antecedentes
É provável que o estopim para a escrita do pasquim tenha se dado dez dias antes de sua divulgação, com uma briga entre o alferes Domingos de Oliveira Álvares e o sargento Manoel Caetano Lopes de Oliveira.
O alferes flagrou a tentativa do sargento de tomar posse, na marra, de um terreno no centro do povoado. Manoel Caetano, homem rico e poderoso, queria construir uma casa no local, e Domingos retrucava, dizendo que aquele espaço estava dentro dos limites do terreno de sua loja.
A cena, presenciada por muitos, foi usada para ligar o pasquim a Domingos, já que algumas das injúrias faladas no calor da discussão também apareciam no documento difamatório. "O pasquim está todo preparado para não sobrar pedaços do Manoel Caetano", afirma Figueiredo.
No texto, Manoel Caetano é ofendido do ponto de vista religioso ("excomungado") e político ("os homens chegaram a esses termos / de serem falsos à soberana").
As críticas não eram de todo fantasiosas. Embora o sargento não tenha sido condenado pelo crime de inconfidência, era conhecida a sua participação no movimento de Tiradentes. "A gente pode evidenciar essa fama até mesmo nos atritos cotidianos que levaram à confecção do pasquim", conta o co-organizador Álvaro Antunes, professor associado de história na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
Desse modo, o documento também registra críticas diretas à Inconfidência, comemorando o enforcamento de Tiradentes e repudiando o suposto plano do também inconfidente Joaquim Silvério, chamado de "diabo" pelo pasquim, de se tornar monarca nas Minas Gerais.
Uma semana depois do ocorrido, Manoel Caetano deu entrada a um pedido de sindicância para apurar as circunstâncias da publicação. Oficiais deram início à devassa e começaram a ouvir os depoimentos dos habitantes que tiveram contato com o pasquim. Com a investigação, juntou-se um terceiro personagem à história: Raimundo de Penaforte, empregado do alferes Domingos que teria redigido o documento.
No final das contas, a defesa de Domingos e Penaforte conseguiu invalidar o processo, argumentando que a coleta das informações das testemunhas não havia sido executada da forma correta
A existência de um procedimento judicial foi justamente o que preservou, ao longo dos séculos, um único original das três cópias do pasquim do Calambau. Por serem proibidos no reino de Portugal pelo menos desde 1603, todas as injúrias públicas que fossem encontradas deveriam ser destruídas, e seus autores, castigados.
Ainda assim, tais escritos eram comuns no Brasil e no mundo. Aqui, pasquins, panfletos e papelinhos foram protagonistas em momentos de efervescência política no país, como na época da Conjuração Baiana (1798) e da própria Independência do Brasil (1822-1825).
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