"‘Grande Sertão: Veredas’ nos mostra um Brasil que está sempre no limiar do desaparecimento, os restos de um sertão habitado por um povo miserável, sem lei e sem Estado para garantir seus direitos."
Assim Livia Baião, idealizadora do museu virtual Rio Memórias, descreve aquela que é considerada a obra-prima de Guimarães Rosa. Ela, também doutora em literatura, foi uma das 20 pessoas que apontaram o livro do mineiro de Cordisburgo como uma das importantes obras para entender o Brasil.
O projeto 200 anos, 200 livros, resultado de uma parceria da Folha com a Associação Brasil Portugal 200 anos e o Projeto República, convidou 169 intelectuais do Brasil, Portugal, Angola e Moçambique para indicar livros que ajudam a explicar o país. A iniciativa foi motivada pelo bicentenário da Independência, que será celebrado em setembro.
"Grande Sertão: Veredas" ocupa o segundo lugar da lista, atrás apenas de "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus, e empatado com "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
O livro, como lembra o arquiteto Mauro Munhoz, também membro da comissão curadora do projeto, não é apenas uma "criação regionalista".
"A grandeza do romance resulta menos do elemento de curiosidade que os causos do mundo do interior poderiam suscitar e mais do fato de que, a partir do sertão brasileiro, Rosa fala de questões universais, inserindo o Brasil no mundo e o mundo no Brasil", diz ele.
O escritor conquista tal percepção ao narrar a história de Riobaldo, jagunço que relembra os tempos de guerra no sertão e conta o conflituoso amor que sentiu por Diadorim.
Veja comentários dos curadores que recomendaram o livro.
Ana Luisa Escorel
Designer, editora e escritora, autora da coletânea de crônicas "De Tudo um Pouco"
"'Grande Sertão: Veredas' e 'Macunaíma', não contentes de tecerem literariamente realidades que, tanto no plano das ocorrências cotidianas e concretas, quanto no plano da invenção, não poderiam ser senão brasileiras, fazem isso com uma força de imaginação e uma originalidade linguística raras."
Antonio Risério
Antropólogo e ensaísta, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros"
"Mergulho amplo, denso e surpreendente no Brasil sertanejo."
Arnaldo Saraiva
Ensaísta e poeta português, é professor de literatura brasileira da Universidade do Porto
"O 'grande sertão', imaginado e imaginário, pode até ser o mundo, mas é, antes de mais nada, um lugar brasileiro, pela fauna ou pela flora, pelos jagunços, senhores ou trabalhadores que percorrem as suas veredas, e também pela linguagem que o constrói.
A sua travessia exige astúcias e coragem para enfrentar a própria natureza selvagem, deserta ou povoada, mas também para enfrentar o amor e a morte, o mal e o bem, Deus e o Diabo; astúcias e coragem como a do brasileiro comum que sabe que 'viver é muito perigoso'."
Danilo Santos de Miranda
Sociólogo e diretor do Sesc São Paulo
"A maestria inequívoca de Rosa na articulação e na exploração da língua portuguesa, com a reconhecida criação de neologismos que concretizam uma visão prismática daquilo que constituiria certa identidade brasileira.
O livro também se destaca pela belíssima fusão entre personagens e território: a aridez do sertão e a transmutação desta paisagem na emotividade cambiante dos personagens."
Eduardo Jardim
Filósofo e autor de livros como "Eu Sou Trezentos - Mário de Andrade, Vida e Obra"
"O ambiente em que se passa a história de Riobaldo é o do sertão onde grupos de jagunços se enfrentam. Ao longo da narrativa, esse ambiente é transfigurado, e as questões mais centrais da vida humana são abordadas –da bravura e o medo à oposição entre o bem o mal. O livro ganha assim uma dimensão universal.
Além disso, contém uma história de amor das mais comoventes da nossa literatura."
Fernanda Torres
Atriz, escritora e colunista da Folha
"'Grande Sertão: Veredas' é o 'Fausto' sertanejo. Um livro que coloca o Brasil no centro dos dilemas mais profundos da humanidade, ao discutir a natureza do bem e do mal. Como se não bastasse, Guimarães Rosa inventa línguas. Não há o que dizer de 'Grande Sertão: Veredas', é preciso lê-lo."
Heloisa Buarque de Holanda
Escritora e professora de teoria crítica da cultura na UFRJ
"Brasil profundo, nosso ethos, nossa pele em carne viva."
Leda Maria Martins
Pesquisadora, ensaísta e professora aposentada da UFMG, é autora de diversos livros sobre o teatro negro no Brasil
"Um Brasil que é uma paragem do belo como composição de linguagens em rebuliços de metamorfoses."
Livia Baião
Doutora em literatura, é idealizadora do museu virtual Rio Memórias
"'Grande Sertão: Veredas' nos mostra um Brasil que está sempre no limiar do desaparecimento, os restos de um sertão habitado por um povo miserável, sem lei e sem Estado para garantir seus direitos. São os vencidos, miseráveis, 'catrumanos', cegos e loucos, enfim, uma 'turba de gente' sobre a qual se pretendeu erguer os edifícios da modernidade, nunca acabados, sempre em construção.
Nele Riobaldo fala do tempo de jagunço que tinha mesmo de acabar e emenda: 'cidade acaba com o sertão. Acaba?'. Mas o tempo jagunço não acabou e a cidade não acabou com o sertão."
Luiz Davidovich
Físico, é professor emérito da UFRJ e ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências
"Um dos grandes romances brasileiros, inventa a linguagem e descreve com linguagem poética as veredas das almas dos personagens e do Brasil."
Luiz Fernando Carvalho
Diretor de cinema e TV, esteve à frente de produções como "Lavoura Arcaica" e "Capitu"
"Épico maior do pós-modernismo brasileiro, marcado por uma linguagem repleta de neologismos e arcaísmos, em que a oralidade inaugura novos enunciados, alçando a narrativa à uma dimensão poética do sagrado."
Manuela Carneiro da Cunha
Antropóloga, professora titular aposentada da USP e autora de "Cultura com Aspas" e "Negros, Estrangeiros"
"Dá acesso a uma linguagem local de grande beleza, que vale a pena conhecer."
Mauro Munhoz
Arquiteto, é diretor da Associação Casa Azul, entidade que organiza a Flip
"O livro é comumente colocado na prateleira das criações regionalistas. Não acredito que seja o caso. A grandeza do romance resulta menos do elemento de curiosidade que os causos do mundo do interior poderiam suscitar e mais do fato de que, a partir do sertão brasileiro, Rosa fala de questões universais, inserindo o Brasil no mundo e o mundo no Brasil.
A própria linguagem do livro não é mera documentação de falares típicos, mas uma estetização que se torna única, artística e, por isso, universal. Para lembrar Antonio Candido: 'O mundo de Guimarães Rosa não é Minas, é o mundo'."
Milton Hatoum
Romancista e tradutor, é autor de livros como "Dois Irmãos" e "Pontos de Fuga"
"O fazendeiro e ex-chefe jagunço Riobaldo narra a um ouvinte da cidade histórias de amor e batalhas. Dezenas de personagens percorrem o centro-norte de Minas Gerais, cuja natureza e cultura —vivenciada e estudada pelo autor— são consubstanciais à narrativa. Mas nesse mundo de tantos sertões há outro, igualmente vasto, rico e complexo: o mundo interior, subjetivo das personagens. 'Sertão: é dentro da gente.' Riobaldo põe em dúvida suas próprias afirmações e questiona certezas. No curso de sua longa fala, o narrador parece abarcar tudo, em camadas misturadas: histórica, social, política, amorosa, metafísica, simbólica. O resultado é um romance luminoso, em que um dos protagonistas é a linguagem."
Natália Viana
Diretora da Agência Pública e autora de "Dano Colateral: A Intervenção dos Militares na Segurança Pública"
"O maior de todos os romances brasileiros, 'Grande Sertão: Veredas' alia a maestria da prosa de Guimarães Rosa a um mergulho profundo no interior brasileiro, o 'sertão construído na linguagem'. É a maior expressão brasileira dos temas mais tradicionais das grandes tragédias universais. Além da qualidade da ficção, é também mais um livro que não envelhece."
Noemi Jaffe
Escritora, professora e crítica literária, autora de livros como "O Que Ela Sussurra"
"Escrito às vésperas da inauguração de Brasília e localizado, como todas as obras do autor, no sertão mineiro –portanto próximo ao Centro-Oeste– 'Grande Sertão: Veredas' narra a saga de Riobaldo, jagunço por ocupação e metafísico por vocação, dividido entre o amor por Diadorim e o questionamento sobre a existência do mal e do demônio.
Nessa travessia pelos confins do sertão e, portanto, do mundo, o leitor acompanha o fim de uma era da tradição oral, da lei não escrita, em que predomina o princípio do olho por olho e dente por dente. Ao mesmo tempo, no trabalho de linguagem do autor, o Brasil também reconhece a riqueza de seu repertório popular, aqui incorporado e transformado em vocabulário autoral, não sem deixar de ressaltar os aspectos profundamente filosóficos da vivência do sertanejo. Uma experiência do infinito territorial, especulativo e linguístico como poucas vezes se testemunhou no Brasil e no mundo."
Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista"
"Vencido o estranhamento das primeiras páginas, causado pela sintaxe inusual e pelos neologismos, o leitor mergulha num universo muito particular de Guimarães, de onde sai recompensado pelo esforço. É um autor inimitável, qualquer tentativa de emulação viraria pastiche."
Rubens Valente
Jornalista, autor de "Os Fuzis e as Flechas"
"Uma história extraordinária contada de uma forma extraordinária."
Wander Mello Miranda
Professor emérito da Faculdade de Letras da UFMG e ex-diretor da editora UFMG
"Num enclave no interior do país, a luta entre o bem e o mal traduz uma imagem do Brasil selvagem, violento, passional, num texto em que alta cultura e cultura popular se unem na realização de uma obra de altíssimo valor literário e cultural."
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