'Fico feliz de ver o pacto com o diabo ser repensado', diz crítico às redes

 
Patrícia Campos Mello
São Paulo

As grandes empresas de tecnologia como Facebook e Google começaram a se divorciar da mídia tradicional. Esse processo vai ser doloroso no curto prazo, mas, em última instância, será saudável para todos. Essa é a opinião de Franklin Foer, autor do livro "World Without Mind - The existential threat of big tech (Mundo sem mente – A ameaça existencial do big tec)", que será lançado no Brasil no meio do ano.

"Fico um pouco otimista ao ver que a mídia está repensando o pacto com o diabo que fez com o Facebook, enquanto o Facebook o Google estão reconsiderando a quantidade de poder que acumularam", diz Foer.

Segundo ele, as "big tec" (Facebook, Google, Amazon) estão sofrendo pressões políticas e regulatórias cada vez maiores e não querem assumir a função de guardiões de informações, de escolher o que é falso e o que é verdadeiro, o que é ofensivo e o que não é.

"A mídia se tornou dependente do Facebook para tráfego e faturamento e isso distorceu as escolhas editoriais feitas nas empresas jornalísticas e reduziu a qualidade. Espero que a mídia pare de fazer textos e produtos para atender às demandas dos algoritmos."

Homem branco de óculos olha para o lado
Franklin Foer, autor do livro 'Mundo sem mente', que será lançado no Brasil no segundo semestre - Matt Roth/The New York Times

 

Folha - O senhor afirma que estamos terceirizando capacidades intelectuais para o Facebook, Google e Amazon. Em que sentido?

Franklin Foer - Essas empresas funcionam como portais de informação, e a maneira pela qual elas organizam a informação determina nossa maneira de pensar. Se você quer comer e busca restaurantes no Google, sempre estará mais inclinado a escolher o restaurante que aparecer primeiro, e isso vale para tudo, seu plano de saúde, o sentido da vida ou a existência de Deus. A informação que vemos primeiro molda nossa opinião. Também somos mais inclinados a comprar o que aparece no topo dos resultados de busca na Amazon, somos preguiçosos. Essas empresas reuniram uma quantidade de informação gigantesca sobre cada um de nós, entendem muito bem nosso processo de escolha.

O sr. diz em seu livro que a maioria das pessoas não sabe como funcionam os algoritmos usados pelas big tecs e acha que eles são imparciais. Como eles nos empurram para certos comportamentos?

Algoritmos são instruções para sair de um ponto A e chegar a um resultado B. Mas, por exemplo, em um mecanismo de busca, os algoritmos não nos levam a visualizar simplesmente os resultados mais populares. As empresas introduzem variáveis nesses algoritmos, para suprir suas necessidades. Por exemplo, a Netflix usa algoritmos para recomendar filmes que seriam compatíveis com nossas preferências. Mas a Netflix normalmente vai recomendar filmes menos conhecidos, porque eles custam menos para a empresa do que blockbusters e dão uma taxa de lucro maior.

As empresas não revelam quais variáveis usam nos algoritmos?

Não. Querem manter esse mistério. Por exemplo, na maioria das buscas do Google, o site tira os resultados ligados a pornografia, a menos que você esteja buscando especificamente isso. Mas não tiram os resultados ligados a antissemitismo, e poderiam fazer isso, se quisessem. Não querem assumir a responsabilidade de decidir o que é discurso aceitável e o que não é, porque se começarem a tomar essas decisões, vão passar a sofrer muita pressão de governos e movimentos políticos.

O sr. argumenta que essas empresas são monopólios e deveriam ser reguladas.

Um dos maiores perigos dos monopólios é que eles são destrutivos para a democracia. No caso dessas empresas, isso é óbvio –elas permitem a proliferação de mentiras, teorias da conspiração, e estão destruindo a mídia tradicional. Google e Facebook usam seu poder para prejudicar quem produz para eles –empresas de mídia e agências de propaganda. Eles sugaram todo o dinheiro de anúncios que costumava ir para revistas, jornais e sites. Fizeram isso com uma política de preços predatória e acumularam um número de usuários tão grande que tornou muito difícil as empresas de mídia competirem.

De que maneira essa concentração vai reduzir o leque de escolhas disponíveis para os consumidores?

Já reduziu. Houve uma época em que todas as cidades americanas tinham um jornal. Hoje, notícias locais não existem mais. Esse processo vai se repetir porque no mundo de Facebook e Google nenhuma empresa de mídia conseguiu achar um modelo de negócios realmente viável.

Há um caminho para a sobrevivência da mídia tradicional?

Fico um pouco otimista de ver que a mídia está reconsiderando o pacto com o demônio que fez com o Facebook, enquanto Facebook e Google estão reconsiderando a quantidade de poder que acumularam. Os veículos de mídia cada vez mais se convencem de que terão de se voltar para assinaturas, porque a receita de anúncios nunca será suficiente. O Facebook está entendendo que não quer nenhuma participação no negócio de notícias, porque a política envolvida no jornalismo é complicada. E o poder que provém de ser um "gatekeeper" [um "guardião da verdade"] é um fardo pesado que Mark Zuckerberg não quer carregar. Então estamos vendo o início de um divórcio entre Facebook e Google e a mídia. Vai ser doloroso no curto prazo, mas no final será saudável para todos.

O anúncio de que o Facebook vai privilegiar postagens de amigos e família nas linhas do tempo, em vez de notícias, vai nessa linha?

Sim. A mídia se iludiu pensando que poderia usar o Facebook para obter escala global. Todos tentaram desenvolver operações para conquistar milhões de leitores, mas não é viável. O "New York Times" e o "Washington Post" criaram paywalls [acesso restrito] e cobram assinaturas, embora, infelizmente não cobrem o suficiente para o faturamento de que precisam. Com o tempo, notícias de qualidade serão um produto mais elitista. A Folha não vai mais ser o "New York Times" do Brasil, provavelmente será uma Louis Vuitton, não será acessível para muita gente.

Qual será a consequência dessa decisão do Facebook?

A mídia se tornou dependente do Facebook para tráfego e faturamento e isso distorceu as escolhas editoriais feitas nas empresas jornalísticas e reduziu a qualidade. Espero que a mídia pare de fazer textos e produtos para atender às demandas dos algoritmos. Isso vai aumentar a qualidade do jornalismo.

O sr. diz no livro que "Trump começou como o leão Cecil e terminou como presidente dos EUA". Em que medida a mídia foi responsável pela eleição de Trump?

A mídia está obcecada com o número de cliques que cada artigo recebe. Na maioria das redações há uma tela enorme mostrando a popularidade de cada artigo em determinado momento.

Há uma análise de custo-benefício que os editores fazem na hora de pautar uma matéria. Se não acham que o artigo será razoavelmente popular, não pautam. Isso distorce o trabalho, cria incentivos péssimos, em vez de ir atrás de coisas que são importantes, vão atrás de coisas que são populares. Existe um ciclo de realimentação de ver o que o público quer e tentar produzir notícias que o agradem. Esse ciclo explica a ascensão de Trump. Todos os editores sabiam que Trump era uma piada. Mas também sabiam que Trump mexia com as ansiedades das pessoas e até aquelas que o odiavam iriam clicar nas matérias em que ele duvidava da certidão de nascimento de Barack Obama, para poder sentir ódio de Trump.

Por que o sr. propõe a criação de uma agência de proteção de dados?

Dados fornecem um retrato muito íntimo do que passa pela nossa cabeça. Com acesso a todas as buscas que alguém faz no Google, é possível tentar antecipar seu comportamento. Eric Schmidt disse certa vez que o Google pode prever com 24 horas de antecedência onde uma pessoa vai estar, com alto grau de acerto. Houve o caso de uma mulher que queria apagar um arquivo de 800 páginas sobre seu perfil no Tinder. Ela ficou horrorizada ao ver que o Tinder tinha gravado todas as interações que ela havia tido, todas as paqueras. Ela não queria que isso se tornasse seu currículo digital. E esse tipo de registro está sendo feito sobre todos nós. Nem imaginamos, mas estão acumulando todas essas informações e as utilizando para nos manipular. É preciso existir algum controle sobre a informação pessoal pode ser compilada.

O sr. está no Facebook?

Todo mundo que trabalha na mídia é pressionado pelos chefes a ter perfis nas mídias sociais. Eu uso bastante o Twitter, e uso o Facebook só para me promover.

Raio X
Formação: História pela Universidade Columbia (EUA)
Carreira: Correspondente nacional da revista The Atlantic. Editor por sete anos da revista New Republic. Venceu o Prêmio Nacional do livro Judaico em 2012.
Obra "Como o futebol explica o mundo", traduzido para 27 idiomas.

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