IGOR GIELOW
DE SÃO PAULO

A negociação entre as fabricantes de aviões Boeing e Embraer, na qual o governo brasileiro é parte e mediador, opõe uma necessidade imperativa de mercado a dúvidas sérias sobre questões de soberania nacional.

Desde que as conversas sobre a intenção de a americana comprar a brasileira vazaram pelo diário americano "The Wall Street Journal", em 21 de dezembro, uma versão tropical da "shuttle diplomacy" tomou forma, com executivos e autoridades intensificando visitas e consultas.

Isso foi motivado pela política: como a Folha antecipou, o presidente Michel Temer apressou-se em dizer que usaria o poder de veto que a União possui sobre a sua ex-estatal para evitar a "perda de controle nacional".

De lá para cá, as conversas ocorrem em base quase diária. Só na semana que passou, executivos americanos estiveram em Brasília, Rio e São Paulo explicando suas intenções. O grupo de trabalho montado pelo Ministério da Defesa passou a sexta-feira (26) conhecendo as instalações da área de defesa da Embraer em Gavião Peixoto (SP).

E isso ocorreu um dia depois de o grupo e seu chefe, o ministro Raul Jungmann, receberem uma comitiva sueca preocupada com seu quinhão na história: o caça Gripen, comprado pela Força Aérea Brasileira, será montado pela empresa paulista que pode virar parte da gigante americana com a qual concorre.

É possível dizer, a partir de sondagens com envolvidos de todos lados da mesa, que as conversas avançaram, mas há uma resiliente desconfiança sobre seu sucesso.

Abaixo, a Folha alinhava alguns dos pontos em negociação, que é informal até tomar corpo e ser apresentada ao conselho de administração da Embraer.

O MERCADO

Visões díspares sobre o futuro da Embraer permeiam as conversas. Ela está entrando naquilo que internamente chama de "terceira onda", após a fase estatal (e militar) e os 20 anos pós-privatização (em que virou líder do mercado de aviação regional, com 46% das vendas).

Agora, a Embraer tem três produtos com o desenvolvimento praticamente encerrado: a nova linha regional (E2), o cargueiro militar KC-390 e a família de jatos executivos Legacy completa.

Só que há um ambiente externo desfavorável, como, aliás, é a regra de um mercado no qual 25% dos custos são ditados pelo volátil preço do petróleo, para começar.

Nos últimos anos, o setor de aviação adensou-se. No Ocidente, cadeias produtivas foram organizadas em dois ramos: o da Boeing e o da sua rival europeia, a Airbus.
Rússia, China e Índia cooperam entre si, e o Japão ensaia passos no nicho regional.

Empresa ocidental globalizada, a Embraer teme ficar isolada no processo. Como sua maior rival, a canadense Bombardier, teve sua nova família regional CSeries comprada pelos europeus em outubro, resta a Boeing para conversar sobre o futuro.

A brasileira é líder, mas é pequena em comparação com as gigantes -vale algo como US$ 5 bilhões, ante US$ 204 bilhões da Boeing. Quando viu seu maior rival ganhar a musculatura da Airbus para promover suas vendas, o sinal amarelo piscou.

Já a americana, que hoje está no momento de maior valorização de sua história e com apostas certeiras no mercado de aviões grandes, viu a adversária municiar-se de um produto do qual não dispõe: um avião na faixa de 70 a 130 lugares. Justamente o que a Embraer tem pronto.

Além disso, por uma questão de envelhecimento de geração, ela está com problemas na sua área de engenharia. Seus últimos programas enfrentaram atrasos que não foram vistos nas empreitadas recentes da Embraer, que tem um time mais jovem em ação.

Essa lógica aproximou as duas empresas. Mas o governo hoje tende a considerar a Boeing em situação mais crítica do que a Embraer em termos de necessidades, algo que não é compartilhado pelas fabricantes.

Há cálculo político nisso, já que com seu poder de veto o Planalto pode usar a visão da "Boeing fraca" como carta nas conversas. A americana já percebeu e não se mostra confortável com isso.

Já a Embraer sua frio, pois sabe que seu voo será mais turbulento sem apoio externo -a decisão de agência regulatória americana de negar uma taxação de quase 300% sobre o CSeries no país abriu uma avenida para a venda do produto canadense da Airbus no maior mercado regional do mundo.

SOBERANIA

De Temer ao soldado que saúda quem entra no Ministério da Defesa, a ideia de que "a Embraer não pode ter controle estrangeiro" é corrente. A questão da soberania é central na discussão.

Há mitos na praça. Primeiro, o governo não é dono da Embraer, ainda que tenha poder de vetar seus negócios. A empresa tem controle pulverizado, com 85% das ações já nas mãos de estrangeiros.

Além disso, como seus aviões são talvez 80% feitos com peças americanas, o Brasil financia a exportação de produtos "made in USA" para os Estados Unidos por meio do BNDES (US$ 14 bilhões de 2001 a 2016).

Isso estabelecido, o controle operacional da empresa é de brasileiros. Isso pode ser replicado num acordo, segundo os envolvidos -é o que o Reino Unido obriga, por exemplo, para a Boeing operar por lá.

Mas o problema é mais complexo. Se virar uma empresa da Boeing, a Embraer passará a se sujeitar a regulações de Washington sobre a produção de armamentos.

Hipoteticamente, a FAB poderia ter vetado pelo Congresso americano o desenvolvimento de algum tipo de aeronave que só a Embraer tem capacidade de fazer no país.

O contra-argumento vem de uma obviedade: todo avião que a Embraer faz depende de autorizações dos países que fornecem suas partes, e o veto americano à venda de Super Tucanos para a Venezuela chavista é o exemplo de manual a ser citado no caso.

Sobre isso, a produção conjunta com a Saab sueca do caça Gripen e os contratos de subsidiárias da Embraer que lhe facultam o monitoramento de fronteiras e do espaço aéreo, além de participação no submarino nuclear em desenvolvimento, a resposta da Boeing vem na forma de salvaguardas.

No caso do Gripen, por exemplo, já estão colocados diversos "firewalls" em Gavião Peixoto. Até a entrada de funcionários é segregada, além de acesso a níveis de informação. Engenheiros envolvidos com o KC-390 não têm acesso a questões do Gripen, nem vice-versa.

O governo brasileiro ainda não se convenceu disso, e é aqui que a negociação tende a ser mais espinhosa.

EXPORTAÇÃO

A Embraer é a maior exportadora brasileira de produtos de alto valor agregado. O argumento central dos negociadores pró-acordo é que a enorme estrutura de vendas e marketing da Boeing poderá alavancar a venda de novos produtos das quais ela não dispõe: o KC-390, o Super Tucano, jatos executivos e a linha E2, hoje.

Além disso, o que foi ofertado até aqui pela Boeing prevê a Embraer como parte ativa de sua cadeia produtiva.

Além de empregar engenheiros brasileiros em projetos de seus novos aviões, e ela precisa trabalhar em um modelo de tamanho médio que já está com seu desenvolvimento atrasado, o Brasil poderia virar exportador de componentes de aviões da Boeing, como ocorre hoje com Austrália e Reino Unido

No governo, isso esbarra novamente na questão do controle: os americanos podem tentar acordos pontuais, como muitos na Esplanada dos Ministérios acreditam que acabará a novela, mas insistem na ideia do controle total sobre a brasileira.

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