Descrição de chapéu

Livro aponta raízes da cultura machista do Vale do Silício

Autora revisita casos de assédio e apresenta executivas de sucesso

Emily Chang, autora de 'Brotopia'
Emily Chang, autora de 'Brotopia' - Jim Wilson/The New York Times
Silas Martí
Nova York

Festas em mansões de San Francisco, cassinos de Las Vegas e praias de Malibu turbinadas por banheiras de champanhe, drogas sintéticas, banquetes servidos sobre mulheres nuas e reuniões de trabalho em boates de strip-tease são só a ponta do iceberg do "clube do bolinha" que domina o Vale do Silício.

Num esforço de dissecar as desvantagens enfrentadas pelas mulheres no coração do "big tech", a jornalista Emily Chang passou os últimos anos construindo seu "Brotopia", livro que acaba de lançar nos Estados Unidos e em que tenta mostrar as raízes do que revela ser a cultura machista por trás da tecnologia.

Um produto da era #MeToo, o movimento feminista que vem denunciando casos de assédio em Hollywood e também entre gigantes da internet e dos aplicativos, o livro revisita casos de abuso sexual que jogaram na lama a reputação de executivos poderosos do Google, da Uber e de uma série de outras firmas.

Mas o lado mais revelador desse longo estudo é talvez o esforço de Chang em mergulhar nas origens dessa indústria para explicar como o estereótipo do nerd perdedor se metamorfoseia no do executivo misógino e devorador de mulheres que domina uma indústria agora no centro da economia de todo o planeta.

Ela parte de como os primeiros computadores nas casas americanas sempre iam parar no quarto dos meninos e nunca no das meninas. Também lembra uma série de testes vocacionais que pareciam filtrar mais homens para cursar engenharia e computação nas universidades.

Um desses questionários, que, segundo Chang, orientou a contratação de trabalhadores na indústria tecnológica ao longo de décadas, nem era aplicado a mulheres, chegando ao ponto de identificar até padrões de estilo nos garotos antissociais em busca dessas carreiras --eles gostam de chinelos e têm o rosto barbado.

Todas essas presunções sobre o que talha alguém para o trabalho no Vale do Silício, aliás, pareceram vir à tona num malfadado relatório em que um engenheiro de software do Google dizia com todas as letras que homens são dominantes nessa indústria porque enfrentam melhor o estresse e não têm as "neuroses" que afetam as mulheres.

Quando o documento vazou, no ano passado, seu autor, James Damore, virou alvo da ira das --poucas-- mulheres com alguma voz no setor e detonou um intenso debate sobre gênero que incendiou San Francisco e as redes sociais. Ele acabou demitido, mas o assunto nunca morreu.

XADREZ DA EXCLUSÃO

Nesse ponto, Chang perfila algumas das executivas que despontaram como exceções no xadrez da exclusão do "big tech", entre elas Sheryl Sandberg, diretora do Facebook que virou quase celebridade.

O lado infeliz da história, no entanto, é que algumas dessas mulheres com trajetórias brilhantes na indústria também acabaram vítimas de assédio sexual e caíram fora.

Não faltam relatos de executivas que se ofenderam com comentários machistas de colegas que nem disfarçavam o fato de passar o dia vendo pornografia ou que foram alvo de cantadas e mãos-bobas nas festas e reuniões.

Mas, mesmo com riqueza de detalhes, "Brotopia", talvez pela natureza delicada dos fatos que narra, às vezes se torna enfadonho, com um ar de relatório acadêmico que esvazia o poder da narrativa.

O livro, a não ser pelas passagens sobre as festas épicas do Vale do Silício, que ainda esbarram em certo moralismo, resulta um tanto seco, austero e bastante repetitivo.

Isso não desmonta, no entanto, a monumentalidade da pesquisa de Chang nem o mérito de jogar luz sobre os bastidores de uma indústria que costuma se mostrar só nas interfaces reluzentes de seus computadores e dispositivos.

"Brotopia" ainda ganha força ao tentar iluminar como pode ser o futuro de um mundo dominado pela tecnologia, imaginando que a exclusão de mulheres pode erodir o potencial revolucionário do que está no horizonte.

Quando pergunta se o ódio que domina redes sociais como Reddit e Twitter não poderia ser neutralizado caso mulheres tivessem participado mais da criação dessas plataformas, Chang parece desenhar parte do destino de um "big tech" que já não pode se dar ao luxo de excluir e maltratar metade do mundo.

Brotopia

  • Preço R$ 44,90 (e-book; 317 págs.)
  • Autor Emily Chang
  • Editora Portfolio
Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.