Descrição de chapéu

Manobra na intervenção seria 'desvio de finalidade'

Calcanhar de Aquiles jurídico pode ser facilmente explorado pela oposição

O presidente Michel Temer gesticula durante assinatura de decreto de intervenção no Rio
O presidente Michel Temer gesticula durante assinatura de decreto de intervenção no Rio - Eraldo Peres/AP
RUBENS GLEZER

Os esforços do governo para aprovar a reforma da Previdência são diretamente afetados pela decretação da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Como em outras tantas situações inéditas enfrentadas ao longo dos últimos anos, a incerteza geral impera.

A situação problemática já foi reconhecida e exposta prontamente pelo governo: a Constituição proíbe que ela seja emendada durante a vigência de intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa e, portanto, poderia impedir a aprovação da reforma --uma proposta de emenda à Constituição.

Esse problema já havia sido discutido durante o governo FHC, em 1997, no qual a possível intervenção em Alagoas poderia prejudicar a tramitação da reforma da Previdência de então. Na época foi aberta uma divergência entre os que entendiam que a Constituição impedia a votação de PECs e aqueles para quem as propostas poderiam ser votadas, mas não aprovadas. Porém, à medida que não houve intervenção federal (ao menos formal) no Estado tampouco houve decisão judicial sobre o alcance da proibição constitucional.

Diante do cenário de incerteza a respeito da interpretação da norma constitucional, o governo anunciou em coletiva à imprensa estratégia supostamente conservadora: pretende não votar a reforma da Previdência durante a intervenção federal para evitar ter de passar por uma batalha judicial justamente a respeito de qual é a interpretação correta da proibição constitucional, após uma eventual vitória no Legislativo.

A solução encontrada e exposta seria então revogar o decreto de intervenção quando houver votação da reforma da Previdência e promulgar um novo enquanto não houver votação. Enquanto não houvesse decreto de intervenção, o governo promulgaria decreto para Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Com esse revezamento entre intervenção e GLO, o governo pretende manter sob controle a situação da segurança pública no RJ enquanto consegue também manter sua agenda de votação da reforma da Previdência.

Esse plano, porém, também tem fragilidades que levarão à judicialização de uma eventual votação da reforma da Previdência.

O direito não tolera que alguém faça um ato ilícito só pelo fato de estar travestido de um ato lícito.

No campo privado, por exemplo, a lei determina que um contrato de compra e venda realizado com um "laranja" seja anulado, ainda que o contrato seja regular. No campo público, por exemplo, é nula a nomeação de ministro de Estado realizada exclusivamente com a finalidade de obstruir a Justiça, ainda que a nomeação respeite os critérios formais.

No campo privado essa manobra é chamada de "simulação", enquanto no campo público pode ser chamada de "desvio de finalidade" ou "motivação falsa/ilegítima".

A estratégia poderá ser facilmente acusada de revogar os decretos com desvio de finalidade ou motivação falsa, ou seja, de que não houve um encerramento real da intervenção, mas apenas uma manobra para burlar a proibição constitucional. Isso é base suficiente para que se declare a nulidade da revogação dos decretos de intervenção e, por consequência, a nulidade da eventual votação da reforma da Previdência.

Esse calcanhar de Aquiles jurídico pode ser facilmente explorado pela oposição, que poderá questionar a votação parlamentar a juízes de primeira instância ou para que ministros do Supremo Tribunal Federal decidam liminarmente. Com isso, a estratégia do governo aposta todas as fichas na loteria do Judiciário; nada mais imprevisível.

RUBENS GLEZER é professor da graduação e do mestrado profissional e coordenador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP

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