Descrição de chapéu

Revista NME era a bíblia e o evangelho da música

Publicação deixa de circular em papel, depois de 66 anos, para ter apenas formato online 

Música: cartaz do seminário "New Musical Express" sobre os lançamentos de singles de Blur e Oasis
Música: cartaz do seminário "New Musical Express" sobre os lançamentos de singles de Blur e Oasis - Reprodução
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
São Paulo

Imagine uma Redação em que dois jovens criam um espaço próprio e cercam tudo com arame farpado e vidro. Na parede, picham: "Morte aos Hippies". Essa Redação existiu. Ficava em Londres, era a New Musical Express do fim dos anos 1970, o punk quebrando tudo.

Os jovens revoltados se chamavam Tony Parsons, então com 22 anos, e Julie Burchill, de... 17. Os hippies que eles queriam ver mortos eram o restante da Redação, onde ninguém tinha mais de 30.

NME, em papel, deixou de existir nesta quarta-feira (7). Era uma revista feita em papel-jornal e, na maior parte de sua existência, com formato tabloide. Circulou por 66 anos. Agora, sobrevive só online.

No auge, o NME foi o templo do cool. Não se limitava a cobrir as bandas e artistas do momento --porque ele mesmo determinava quem seriam as bandas e artistas do momento.

Os Smiths foram "inventados" pela NME. Na década seguinte, o Oasis. Depois, os Strokes e os Libertines. Uma máquina de "hypes".

Em Londres, o NME era bíblia. No restante do mundo, um evangelho. Tinha influência global, com os reflexos até neste distante Brasil. As inovações do caderno "Ilustrada", da Folha, nos anos 1980, por exemplo, são filhas diretas do que acontecia no NME, captadas por brasileiros sintonizados com a modernidade da época.

O que NME fazia era jornalismo musical, mas também era jornalismo político, era crítica de arte, filosofia, embate social. Seus jornalistas podiam tanto ser bacaninhas sofisticados de Oxford e Cambridge quanto proletários que não tinham nem feito faculdade, mas liam Shakespeare desde o ensino básico e traziam a luta de classes correndo nas veias.

Nos últimos anos, a NME veio perdendo relevância, como de resto todo tipo de crítica (exceto, talvez, a gastronômica, um fenômeno ainda por explicar). Em um ambiente pulverizado, no qual todo o mundo é crítico e todo o mundo tem certezas e todo o mundo grita, mesmo sem nenhuma qualificação, veículos norteadores de tendências, como NME, perderam a razão de ser.

Um de seus ex-editores-chefes, Danny Kelly, sentenciou nesta quarta-feira (7) no Twitter: "Se é que alguém se importa, sei o dia exato em que o NME entrou em decadência. O dia em que passou a ser um admirador pago da indústria da música, em vez de um amigo levemente alucinado dos fãs de música do mundo todo".

Avaliação precisa, mas que não aponta um caminho que poderia ter levado a NME a uma sobrevida maior.

Em música, e em papel, só restam as revistas totalmente focadas no público mais velho, nostálgico, como Uncut e Mojo.

Danny Kelly reproduziu no Twitter algumas capas. Duas delas refletem exatamente a visão de mundo do NME, um mix sagaz de referências pop e eruditas.

Uma traz os Stone Roses (hypados pelo NME), fotografados de cima, banhados em tinta azul. A manchete: "Never Mind the Pollocks". Alusão a "Never Mind the Bollocks", clássico dos Sex Pistols, e a Jackson Pollock, o pintor abstrato que se sujava todo por suas técnicas extremas.

Na outra capa, ao lado um jovem Morrissey sem camisa, o título: "Morrissey gets it off his chest", que significa tanto "Morrissey desabafa" quanto "Morrissey de peito nu".

O NME de papel veio, viu e venceu. Que descanse em paz.

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