Descrição de chapéu Facebook

Depois da Cambridge Analytica, especialistas em privacidade têm direito ao 'eu não disse?'

Escândalo de vazamento de dados dá visibilidade aos pesquisadores das questões de privacidade

Nellie Bowles
Palo Alto | The New York Times

Alguns dias atrás, no Museu de História da Computação, em Palo Alto, Doc Searls se reuniu com um grupo de colegas especialistas em privacidade na internet. Na lousa, estavam escritas as palavras "indignação" e "aproveite", em maiúsculas, sublinhadas e cercadas por linhas que se estendiam em todas as direções como um "BOOM" numa história em quadrinhos.

 
Pela primeira em anos, o campo de trabalho do grupo ganhou destaque. O Facebook estava sob escrutínio intenso pelo uso indevido de dados sobre até 87 milhões de seus usuários pela consultoria política Cambridge Analytica.

Sentados em um amplo círculo de cadeiras dobráveis, os membros do grupo estavam conversando entusiasticamente sobre o que fazer a seguir.

"Muitos dos geeks desse mundo veem o Facebook como uma sequoia que está começando a cair", disse David Searls, mais conhecido como Doc, criador do ProjectVRM, um programa do Centro Berkman Klein para Internet & Sociedade, na Universidade Harvard, cuja missão é ajudar os usuários de internet na proteção de sua privacidade. "Para eles, é hora de agir".

O escândalo que surgiu em torno do Facebook e da Cambridge Analytica está dando início a uma nova era para essa comunidade, até recentemente ignorada, de pesquisadores e desenvolvedores que se concentram em questões de privacidade. Depois de anos de desdém quanto a seus alertas sobre o que exatamente empresas como o Facebook estavam fazendo - ou seja, recolhendo imensas quantidades de dados sobre seus usuários e fornecendo-os a terceiros com pouca ou nenhuma fiscalização -, o público mais amplo subitamente parece estar interessado naquilo que eles sempre disseram.

Os protestos quanto à privacidade de dados foram fortes a ponto de levar Mark Zuckerberg, o presidente-executivo do Facebook, ao Congresso americano para um depoimento esta semana, sobre os erros de sua empresa na proteção de informações sobre seus usuários. Manifestantes protestaram diante do Congresso enquanto ele depunha. Alguém apareceu para assistir ao depoimento vestido de troll russo.

Em casa, os especialistas em privacidade agora estão atendendo a um novo pico de chamadas de parentes que pedem conselhos sobre como proteger seus dados pessoais. Engenheiros discutem novos projetos de proteção de privacidade com eles. Até mesmo os adolescentes parecem estar prestando atenção ao que eles têm a dizer.

Para muitos desenvolvedores, esse é o momento certo para levar adiante o teste de novas soluções de privacidade, entre as quais recursos mais avançados de bloqueio de publicidade; navegadores peer-to-peer, que descentralizam a internet; novas técnicas de criptografia; e uniões de dados que permitem que usuários formem grupos, reúnam dados e os vendam diretamente. Outros preferem a ideia de tratar os gigantes da tecnologia como depositários formais de informações, que eles terão obrigação legal de proteger.

E pela primeira vez, muitos especialistas em privacidade acreditam que os usuários de internet possam se dispor a aceitar um pouco mais de inconveniência em troca de muito mais privacidade.
"Esse é o primeiro despertar do planeta para um perigo que existe há muito tempo, ou seja, para o fato de que estamos expostos", disse Searls. "A Cambridge Analytica não é novidade de jeito algum, para o pessoal que trabalha com privacidade".

John Scott-Railton, que pesquisa sobre direitos digitais e privacidade no Laboratório da Universidade de Toronto, disse que recentemente rememorou todas as apresentações em PowerPoint que fez e todos os estudos que redigiu para acautelar sobre o possível uso indevido de dados de usuários por terceiros.
"Até agora, nada disso fazia efeito", ele disse. "As coisas mudaram, ou pelo menos as pessoas indicam concordância, quando falamos a respeito hoje".

Neema Singh Guliani, assessora jurídica da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) para questões legislativas, recorda os anos de esforço da organização para que o Facebook verificasse que uso estava sendo feito de seus dados por terceiros. Mas pouca gente prestava atenção a isso, na época, ainda que a organização tenha alertado especificamente para os questionários que circulavam pelo Facebook, em 2009.(A Cambridge Analytica usou um questionário criado por um pesquisador independente para recolher dados sobre usuários do Facebook.)

A rede social disse que investigará quantos apps de terceiros tiveram acesso a grande volume de dados sobre usuários. Mesmo assim, a ACLU está pressionando para que os usuários exerçam mais controle sobre o que os apps do Facebook podem fazer, e argumenta que a empresa deveria auditar seus desenvolvedores. A organização também acredita que é preciso incorporar às leis dos Estados Unidos proteção maior para a privacidade.

"Estamos tendo agora a conversação que deveria ter acontecido uma década atrás", disse Singh Guliani.
Um dos motivos para que despertar o interesse dos consumidores por segurança e privacidade sempre tenha sido difícil é que os perigos pareciam vagos e difíceis de compreender. No caso do Facebook e Cambridge Analytica, os perigos são identificáveis e assustadores, disse Ashkan Soltani, pesquisador independente, especialista em privacidade, e ex-diretor de tecnologia da Comissão Federal do Comércio (FTC) americana.

"Mais ou menos como em um acidente de carro, os riscos da mídia social são eventos de baixa probabilidade, com resultados de alta variabilidade", ele disse. "Qual é o problema de o meu chefe ter visto uma foto em que apareço bebendo cerveja de cabeça para baixo? Mas de repente o 'qual é o problema' se torna mais grave - não consigo adquirir um plano de saúde por causa disso, ou me torno alvo de manipulação por agentes de outros países".

O trabalho da Cambridge Analytica, que incluía usar dados do Facebook para criar perfis psicológicos de eleitores, explorava a ansiedade que muitos norte-americanos já sentiam sobre o resultado da eleição presidencial de 2016.

"Dessa vez a coisa pegou, porque veio Trump, e queremos culpar alguém", disse Bruce Schneier, criptografista que mantém um blog sobre o assunto e é autor de "Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World" [dados e Golias: a batalha secreta para recolher dados sobre você e controlar seu mundo]. "Se a maionese Hellmann's fizesse isso, ficaríamos impressionados".
Para Rohit Ghai, presidente da RSA, uma empresa de segurança na computação, cuja tecnologia SecurID se tornou o padrão do mercado para empresas que desejam proteger o acesso a seus sistemas internos, a mudança se tornou evidente mesmo dentro de sua casa, em San Jose, Califórnia.

Antes, ele tentava conversar com sua filha de 13 anos sobre privacidade de dados e mídia social - chegando até a oferecer exemplos sobre o quanto as empresas de tecnologia sabem sobre as pessoas, e o que podem fazer com essas informações. Mas ela nem ligava.

Então surgiram as revelações sobre a Cambridge Analytica. Dessa vez, foi sua filha que o procurou para conversar.

"Ela acaba de me perguntar sobre Mark Zuckerberg", ele disse. "Isso é um sinal".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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