Descrição de chapéu Entrevista da segunda

Privacidade digital é base para democracia e deve ser protegida, diz parlamentar alemã

Birgit Sippel, membro alemã do Parlamento Europeu, é relatora de legislação sobre o tema

Estelita Hass Carazzai
Washington

Relatora de uma legislação sobre privacidade digital na Europa, a parlamentar alemã Birgit Sippel disse, em entrevista à Folha, que proteger os dados e as comunicações digitais é fundamental para garantir a democracia e o direito à livre escolha, a fim de evitar situações de manipulação.

"Você precisa ter o direito à livre escolha. É a base para qualquer democracia, e isso hoje passa necessariamente pela privacidade digital."

O tema ganhou notoriedade com as recentes revelações sobre a Cambridge Analytica, processadora de dados que distribuiu conteúdo nas redes sociais em favor do americano Donald Trump e que é suspeita de ter violado a privacidade de milhões de usuários do Facebook.

Birgit Sippel, membro alemã do Parlamento Europeu
Birgit Sippel, membro alemã do Parlamento Europeu - Stephanie Lecocq/Divulgação

Na entrevista, a alemã criticou a falta de ação do Facebook no caso e disse que modelos de negócios baseados no desrespeito à privacidade não deveriam existir.

Sippel esteve em Washington na semana passada para participar de um congresso da Associação Internacional de Profissionais de Privacidade, no qual falou sobre a nova lei de proteção de dados da União Europeia, a GDPR (Regulamentação Geral de Proteção de Dados), que entra em vigor em maio e exige o consentimento dos usuários para a coleta de dados.

A alemã trabalha atualmente em uma nova iniciativa legal, que quer proteger a comunicação digital. A lei foi aprovada no Parlamento Europeu, mas ainda precisa ser discutida no Conselho Europeu, que reúne os líderes dos países-membros.

 

 

Folha - A sra. iniciou sua apresentação dizendo que "precisamos conversar". Não falamos o suficiente sobre privacidade digital?

Birgit Sippel - Eu acho que, por algum tempo, nós subestimamos a importância de falar disso. Nós tomamos a privacidade como algo dado. As novas tecnologias evoluíram tão rapidamente que só agora muitos se deram conta de que, sim, existem coisas muito boas derivadas dessa tecnologia, mas também desdobramentos perigosos, que colocam em risco não só a nossa privacidade mas também a democracia, com todas as notícias falsas e manipulações que temos visto. Eu espero que, com o triste caso do Facebook e da Cambridge Analytica, tomemos mais consciência e comecemos a falar mais sobre a importância da privacidade. Porque já é hora.

Ficou surpresa com o vazamento de dados pessoais no caso da Cambridge Analytica?

Eu não diria que fiquei surpresa. Nós sabíamos que havia a possibilidade de que algo assim acontecesse. Mas, caso as acusações se provem verdadeiras, é chocante pensar a que ponto isso chegou e como as pessoas responsáveis por isso, como [Mark] Zuckerberg [presidente e fundador do Facebook], simplesmente ignoraram o problema.

O que parece é que ele não estava prestando atenção ao que estava acontecendo com os dados repassados a terceiros e não pensou nas consequências. A reação [do Facebook], a princípio, para ser honesta, foi uma completa falta de reação.

Eu espero que, com a perda financeira que a empresa está sofrendo agora, talvez ele [Zuckerberg] comece ao menos a mudar algumas coisas.

A sra. compara a privacidade digital a um direito fundamental. Por quê?

Para nós, na Europa, a privacidade é um direito fundamental. Porque, se você não tem direito a proteger sua privacidade, qualquer um pode controlá-lo, manipulá-lo.

A privacidade é uma condição fundamental, por exemplo, para que você tenha sua própria opinião, expresse sua opinião e se certifique de que ninguém está te influenciando. É parte importante de uma democracia livre. Portanto, precisa ser protegida.

As companhias de tecnologia argumentam que os usuários assinam termos de consentimento, concordando com a coleta de dados pessoais.

Sim, até certo ponto, nós damos consentimento, mas não é um consentimento verdadeiro, completamente informado. Eu acho que muitos usuários não entendem a extensão com que abrem mão de sua privacidade e o que é feito com esses dados.

Quando o Facebook ou a Amazon dizem "queremos coletar seus dados, isso vai ser bom para você e vai aprimorar nosso serviço", isso não é consentimento informado. Você não pensa que eles vão passar essa informação para terceiros ou que podem usá-la para outras coisas além de melhorar seus serviços. Para mim, da forma como as coisas funcionam, não existe hoje na internet um consentimento informado e específico.

Muitas empresas condicionam o oferecimento do seu serviço à concordância com esses termos. Não deveria ser assim. Se eu quero comprar uma passagem de trem ou um ingresso para um museu, isso não significa que eu necessariamente queira vender a minha privacidade.

Ou, se você quer oferecer um serviço gratuito, então ele deveria ser de fato gratuito, e não depender de que eu abra mão de minha privacidade. Por isso, eu defendo que nós precisamos não apenas de regras rigorosas mas também trabalhar com a conscientização dos usuários e melhorar a alfabetização digital ["media literacy"].

A sra. também mencionou que quer acabar com a "propaganda baseada em vigilância". Qual é o problema com ela?

Em primeiro lugar, qualquer que seja a qualidade do seu serviço, ele não deveria depender da minha boa vontade em abrir mão de todos os meus dados e informações pessoais, de forma que não exista mais nenhuma privacidade. Da forma como funciona hoje, se eu concordo em abrir meus dados, eu perco o controle de quem recebe minhas informações. Há ferramentas que me seguem o tempo todo, que oferecem meus dados a outros aplicativos. Não deveria ser assim.

De novo, se eu quero comprar um livro, eu quero apenas comprar um livro! Ponto. Eu não quero abrir mão da minha privacidade, não quero nenhum tipo de controle sobre quem vai receber essa informação, de que forma ela será interpretada e quais as consequências disso.

A sra. se preocupa com os efeitos econômicos dessa medida? Há muitos modelos de negócio baseados nesse tipo de informação.

Bom, vamos supor que o Facebook não existisse. Eu teria de achar outras formas de manter contato com meus eleitores. É assim que as coisas funcionam. Eu tenho de encontrar outros caminhos. Não é porque alguns modelos de negócios podem desaparecer que não vai mais existir desenvolvimento tecnológico.

As revoluções industriais sempre levaram ao desaparecimento de alguns serviços e ao surgimento de outros. Se um modelo de negócios é extinto simplesmente porque é baseado em vigilância, em ignorar completamente a minha privacidade, então talvez isso seja bom. Por outro lado, eu estou convencida de que outros modelos de negócios podem surgir nesse ambiente. Para proteger melhor os usuários, por exemplo. Precisamos ser criativos.

A Europa já tem a GDPR [Regulamentação Geral de Proteção de Dados, que entra em vigor em maio]. Por que ainda é necessária uma legislação sobre privacidade digital?

Porque a GDPR, como o nome já diz, é muito ampla. Ela diz respeito a qualquer tipo de dado, não importa a forma como ele foi coletado. Já a lei sobre privacidade digital fala especificamente da comunicação entre as pessoas. Seja por emails, mensagens de texto, WhatsApp, Skype. Qualquer que seja o tipo de comunicação, ela precisa ser estritamente protegida e confidencial.

Se você manda uma carta a alguém, pelos correios, essa carta obviamente será confidencial. É a mesma coisa para ligações telefônicas, mensagens eletrônicas ou qualquer outra coisa. Para nós, é muito claro que, se queremos proteger a privacidade dos cidadãos, nós precisamos de regras rigorosas, mais do que apenas proteger os dados.

O que se pode tirar de lição sobre a influência da internet nas eleições americanas e no "brexit"?

Eu acho que esses episódios mostram o quão importante é que trabalhemos, em nível global, em algumas regras conjuntas para proteger a democracia, a liberdade, a privacidade. Debater quais são as soluções técnicas para que esse tipo de manipulação, seja para ganhos comerciais, seja para fins políticos, não aconteça mais. Nós estamos vivendo numa vila globalizada, quer gostem disso ou não.

Hoje, é perfeitamente possível que meus dados atravessem o continente e acabem em outra parte do mundo. Então, nós precisamos de colaboração. A GDPR tem um mérito, que foi dar o pontapé inicial nesse debate. Eu estou muito satisfeita com isso e espero que, ao final, cheguemos a um padrão mundial de proteção de dados.

O Brasil terá eleição presidencial neste ano, assim como outros países da América Latina. Deveríamos estar especialmente preocupados com a privacidade digital?

A ideia por trás do conceito de privacidade digital é algo que deveria ser levado em conta no mundo todo. As pessoas devem ter a possibilidade de se expressar livremente, de trocar opiniões, de debater questões críticas, em especial num contexto eleitoral.

Se queremos proteger a democracia, temos de ser determinados. Temos de proteger qualquer indivíduo contra a vigilância e a manipulação, para que ele realmente possa fazer uma livre escolha, seja na área comercial, como consumidor, seja na esfera política, como eleitor.

Você precisa ter o direito à livre escolha. É a base para qualquer democracia. E isso hoje passa necessariamente pela privacidade digital.

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