Portuguesas formam aliança feminina de produção de vinho

Grupo une mulheres de várias regiões lusitanas, donas de adegas e quintas produtoras de uva

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Paulo Markun
Lisboa

Num universo machista —no qual garçons pedem só ao homem que aprove o produto antes de servi-lo ao restante da mesa—, um grupo de portuguesas resolveu somar forças e mostrar que o vinho pode ser feminino.

 

A aliança surgiu quase como uma brincadeira, a partir de uma reportagem publicada no fim de 2012, que classificou 12 delas como “as princesas do vinho”. Quatro ficaram pelo caminho, mas, para as oito remanescentes, há muito a conquistar em prateleiras, decanters e taças de todos os tamanhos e formas.

Quase todas as moças do D’Uva (ou Portugal Wine Girls) entraram no jogo por causa de pais ou avôs. Exercem funções diversas em torno de vinhos de várias regiões, mas acreditam que terão mais visibilidade e espaço no mercado ao se apresentarem como grupo.

Rita Nabeiro, solteira, 36, comanda a Adega Mayor. Não é um negócio antigo: as primeiras vinhas foram plantadas em 1997, e os primeiros vinhos são de 2007.

Hoje, soma um milhão de garrafas ao ano de tintos, brancos e rosés, vários premiados. Um dos seus primeiros desafios foi construir uma história para a marca nova.

Apelou para as artes, arquitetura inclusive. Daí o slogan (“abre os sentidos”), os rótulos com fotos antigas, instrumentos musicais e a sede da adega, obra do mais renomado arquiteto português contemporâneo, Álvaro Siza.

Por ali passam 10 mil pessoas anualmente, a maioria em visitas guiadas que culminam em degustações no terraço de onde se descortinam os vinhedos em volta e a serra próxima, que marca a fronteira com a Espanha.

O grande bloco branco, sem aberturas, destaca-se entre os 120 hectares da propriedade, em Campo Maior, 180 quilômetros a oeste de Lisboa, no Alentejo. Paredes de um metro de largura de concreto garantem a temperatura ideal, sem nenhum ar condicionado.

A quinta que Luísa Amorim, 45, comanda fica em Covas do Douro, 400 quilômetros ao norte de Lisboa, e só é nova no nome. A Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo tem 120 hectares debruçados sobre o rio e já produzia vinho do Porto no século 18.

A família Amorim, reis da cortiça, comprou a propriedade, em 1999. Em 2003, começou a reforma do casarão histórico, que dois anos mais tarde, transformou-se no primeiro empreendimento de enoturismo do Douro. Hoje restaurante e hotel, elogiados em publicações especializadas, representam 30% do negócio da Quinta Nova, cujas garrafas estão em 32 países.

Luísa entrou para o negócio aos 21 anos, quando a família adquiriu a Burmester, empresa alemã que produz vinho do Porto. Até então, sua relação com a bebida não ia muito além das rolhas e das garrafas que o pai, Américo Amorim, o homem mais rico de Portugal, compartilhava com amigos e clientes em casa.

Embora reconheça que as mulheres são mais adequadas ao trabalho com o vinho, Luísa teve um problema na equipe original, predominantemente feminina: “Resolveram todas ter filhos ao mesmo tempo”. Falando sério, explica que grandes carreiras não são compatíveis com a disponibilidade que a maternidade exige.

Mas também nota outras diferenças de gênero diante do produto: “Mulheres optam pelo vinho como socialização. Os homens escolhem pela cor da cápsula, elegância do rótulo, peso da garrafa. São mais detalhistas que as mulheres diante do vinho. Estas querem preço e qualidade. Bonito, bom e barato. Quem compra vinho caro é o homem”.

Quando conversou com a Folha, ainda aguardava a classificação do site do mais influente crítico do mundo para um de seus tintos. Alguns dias depois, Mark Squires, provador de vinhos portugueses na Robert Parker Wine Advocate, atribuiu 97 pontos ao Mirabilis Grande Reserva Tinto 2011, prevendo que a bebida ainda vai evoluir até 2041.

A morte do pai guindou Luísa a acionista do grupo, com as duas irmãs e três primos de outro ramo da família. Formada em hotelaria e marketing, é casada com um engenheiro, tem duas filhas de 10 e 12 anos e mora no Porto. Vai à quinta pelo menos uma vez por semana.

Em Alenquér, a 50 quilômetros a noroeste de Lisboa, Rita Cardoso Pinto, 42, quatro filhos, ar de quem está acostumada com a lida no campo, recebe a Folha de camiseta branca e calça jeans e propôs começar a conversa com um passeio num velho jipe, pelas suaves colinas dos 120 hectares da quinta —ela mesma conduz, nem sempre seguindo a estrada.

Estacionada num ponto alto do terreno, aponta para a serra do Montejunto, barreira para os ventos frios do Atlântico Norte, a 25 quilômetros. Diante de nós, apenas pasto para ovelhas —parte da terra está descansando, para mais tarde receber outra cultura, pera rocha, provavelmente. A região conhecida como Extremadura era famosa por seus grandes vinhos, premiados na exposição de Londres em 1890 e é hoje uma das onze denominações de origem controlada de Lisboa.

O pai de Rita, Antonio Cardoso Pinto, industrial do ramo metalúrgico, comprou a propriedade há 15 anos, com o sonho de garantir um teto no campo para juntar a família e produzir vinhos como os do passado na Quinta do Anjo.

Na juventude, a urbana Rita não gostava nem entendia de vinho. Formou-se em gestão e trabalhou em duas multinacionais, desenvolvendo shampus e alimentos, mas cedeu ao apelo do pai e mergulhou de cabeça no negócio —fez mestrado em enologia e conhece muito mais que as 27 castas existentes na propriedade da família. “A conversão à terra puxou por mim.”

A irmã Ana, arquiteta, acabou por converter-se também e hoje cuida da área comercial, ajudando a colocar os vinhos da Quinta do Pinto em 11 países —49% da produção é exportada.

Elas recebem visitas guiadas, duas vezes por semana, embora não seja um espaço turístico e sim um local de trabalho, semelhante a outras vinícolas tradicionais —a adega fica num prédio comum, atrás do casarão do século 18, ocupado pela família em fins de semana e nas férias. Doze pessoas trabalham na quinta, que produz até 140 mil garrafas por ano. Em grande parte, mulheres.

Vinho é experiência, diz Ana, lembrando um fim de tarde em que abriu uma garrafa para brindar com um grupo de amigas e gostou tanto que ligou para o pai, entusiasmada, para informar a marca do tinto. Espantou-se ao descobrir que nada tinha de especial. “Foi a primeira vez que uma taça me tocou. Mas era o momento, não aquele vinho, em particular.”

Ela, Luísa e a outra Rita, Nabeiro, alinham o discurso ao falar do D’Uva, onde trocam experiências, promovem em conjunto seus vinhos, apesar das diferenças regionais, castas, preços, sabores. Com outras cinco mulheres, sonham alto. Querem acrescentar mais valia aos projetos, a partir de eventos conjuntos em Portugal e no exterior, e, quem sabe, de um vinho interregional.

Nenhuma das três se diz feminista, contudo. Rita Nabeiro condiciona o rótulo a luta contra a remuneração desigual. Luísa Amorim concorda, mas diz que homens e mulheres são diferentes e condena o que classifica de exagero feminista —“por muitas coisas não queria ser homem nem que me pagassem”.

Nenhuma consegue prever em quanto tempo as D’Uva alcançarão seus objetivos, que ainda são bastante genéricos. Afinal, como dizia a precursora duquesa Philippine de Rothschild (1933-2014), que reinou no mundo onde elas hoje atuam, “fazer vinho é quase simples. O problema são os primeiros 200 anos”.

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