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Cifras & Letras

Trambique em investidores no Vale do Silício vira thriller

Elizabeth Holmes era espécie de mágico de Oz com nada por trás da cortina

Paula Leite
São Paulo

Bad Blood

  • Preço R$ 40,40 (320 págs.)
  • Autor John Carreyrou
  • Editora ed. Picador

No filme “O Mágico de Oz”, Dorothy descobria que o personagem titular, que todos imaginavam ser um poderoso feiticeiro, nada mais era que um homenzinho escondido usando efeitos especiais. “Não preste atenção no homem atrás da cortina”, dizia ele quando estava prestes a ser descoberto.

Startups emprestaram a ideia para inventar o chamado protótipo Mágico de Oz: algo que ao usuário final parece um produto inovador e acabado, mas que na verdade é operado por seres humanos por detrás da “cortina”. Por exemplo, um aplicativo de transporte em que o usuário clica para chamar um carro, mas é um ser humano quem liga para o motorista e o manda ao local.

Longe de servir para enganar o cliente, esse tipo de protótipo serve para testar o interesse dos usuários no serviço e estudar como pessoas comuns interagem com o possível produto antes de gastar milhões desenvolvendo a tecnologia por trás dele.

Elizabeth Holmes na sede da Theranos na Califórnia em 2015 - Carlos Chavarria-4.dez.15/The New York Times

Só que, às vezes, a coisa vai longe demais. O livro “Bad Blood: Secrets and Lies in a Silicon Valley Startup”, de John Carreyrou, repórter do Wall Street Journal, conta a história de Elizabeth Holmes, que, com um protótipo e muito marketing, enganou praticamente todo o Vale do Silício, região que concentra as empresas de tecnologia na Califórnia, nos EUA.

Essa “mágica de Oz” dos anos 2000, que aos 20 anos fundou a empresa Theranos depois de largar a faculdade em Stanford, tinha como visão criar uma máquina pouco maior que uma torradeira e que, com algumas gotas de sangue do dedo dos pacientes, faria na hora centenas de exames.

A tecnologia, que poderia revolucionar o segmento de exames laboratoriais, com a perspectiva de diagnósticos rápidos, baratos e em qualquer lugar, encantou investidores e potenciais clientes.

A figura de Holmes, jovem, visionária e carismática, de camisa de gola rolê preta como seu ídolo Steve Jobs, também ajudou a vender a Theranos a investidores respeitados como Larry Ellison, fundador da Oracle, e o fundo de “venture capital” Draper Ficher Jurvetson.

No conselho da empresa estavam Henry Kissinger e George Schultz, ambos ex-secretários de Estado dos EUA; James Mattis, que hoje é secretário de Defesa; e os ex-senadores Sam Nunn e Bill Frist.

Com esse pedigree e uma máquina preta brilhante, com tela sensível ao toque no qual bastaria inserir um cartucho com as gotas de sangue para que resultados fossem exibidos em minutos, a Theranos chegou a ser avaliada em US$ 9 bilhões.

Enquanto isso, atrás da cortina, dez anos tinham se passado desde a fundação da empresa e a visão de Holmes ainda estava muito longe de se tornar realidade.

Apesar de operar projetos-piloto em parceria com grandes fabricantes de medicamentos como a Pfizer e com a rede de farmácias Walgreens, a Theranos na verdade não fazia a maior parte dos testes em suas máquinas, que funcionavam mal e entregavam resultados incorretos. Quase todos eram feitos em máquinas comerciais de análise laboratorial, sem inovação nenhuma, longe do que era mostrado a clientes e investidores.

Além disso, o laboratório da empresa tinha problemas como erros na manipulação das amostras e uso de reagentes vencidos, situações denunciadas por ex-funcionários que acabaram levando à perda da licença da empresa para realizar exames laboratoriais.

O livro de Carreyrou é praticamente um “thriller” que prende a atenção do leitor ao contar a história de anos de problemas na Theranos. Com Holmes e seu namorado, Sunny Balwani, como chefes tiranos, funcionários iam e vinham com velocidade inacreditável; os que ficavam tinham que participar de procedimentos eticamente questionáveis, quando não criminosos.  O repórter vai descrevendo como Holmes construiu a empresa com mentira em cima de mentira, num castelo de cartas que inevitavelmente ruiria um dia.

O próprio Carreyrou escreveu a reportagem que, em 2015, causou o início da derrocada da Theranos. Por isso, em determinado momento, a narração do livro muda da terceira pessoa para a primeira, já que o jornalista passou a ser personagem. Apesar de a escolha do autor ser compreensível, a transição é abrupta.

A Theranos ameaçou Carreyrou e o Wall Street Journal com advogados até o limite do aceitável, tentando derrubar a reportagem. Holmes pediu até mesmo a Rupert Murdoch, que tinha investido na Theranos e é dono do Journal, que deixasse de publicar a história, mas o magnata preferiu não se envolver.

Ainda que não fosse pela mão de Carreyrou, a desgraça da Theranos era inevitável, o que não tira o mérito da impecável investigação feita pelo jornalista. 

A empresa continua atuando, ainda que Holmes tenha sido acusada de conspiração e de fraude. Resta saber se um dia terá algo a mostrar que não seja um homenzinho por detrás de uma cortina.

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