Com degelo ártico, Rússia e China se unem por gás, petróleo e novas rotas

Francesa Total investe em GNL na Península de Iamal, e Pequim estuda alternativa para comércio

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Murmansk (Rússia)

Como toda má notícia, o degelo recorde da calota polar registrado no Ártico neste ano também encerra oportunidades de negócios.

Há alguns dias, uma cena condensava dois aspectos centrais da revolução econômica potencial naquela remota região: os interesses russos e chineses combinados.

No fiorde que liga o porto russo de Murmansk ao mar de Barents, rebocadores locais encaminhavam uma sonda de prospecção de petróleo e gás chinesa rumo à bacia da península de Iamal.

É o segundo ano em que estatal chinesa COSL (China Oilfield Services) opera naquelas águas, 1.500 km a leste de Murmansk. Desde então, já prospectou 1,9 trilhão de metros cúbicos de gás.

Em Murmansk, rebocadores levam sonda de prospecção de hidrocarbonetos chinesa da estatal COSL em direção ao mar de Barents
Em Murmansk, rebocadores levam sonda de prospecção de hidrocarbonetos chinesa da estatal COSL em direção ao mar de Barents - Igor Gielow/Folhapress

O produto será liquefeito na primeira usina russa a operar na região, aberta em janeiro.

A Rússia, que já era a maior exportadora de gás do mundo, do dia para a noite tornou-se uma potência na versão líquida, que dispensa gasodutos e pode ser transportado por navios para mais mercados.

O projeto Iamal é estimado em US$ 27 bilhões (R$ 100 bilhões), US$ 12 bilhões (R$ 44 bilhões) dos quais vieram de Pequim. Mas há parceiros ocidentais importantes, como a francesa Total.

Tal associação explica muito da boa relação entre Paris e Moscou em tempos de crise permanente entre o Kremlin de Vladimir Putin e o Ocidente. A empresa-mãe é russa e privada, chamada Novatek. "Vamos virar globais", diz a assessoria da firma.

O mundo consome mais de 3,5 trilhões de metros cúbicos de gás por ano. Há 208 poços de gás (44,5 trilhões de metros cúbicos) e petróleo (5 bilhões de toneladas) em Iamal.

Em 2019, a usina de GNL (gás natural liquefeito) deverá processar 16,5 milhões de toneladas anuais, triplicando a capacidade atual russa. Destino? A China.

O degelo do Ártico significa também rotas menos obstruídas. Durante anos se falou na ampliação do uso da Ponte Ártica, que liga Murmansk a Churchill (Canadá) por quatro meses do ano.

Mas o objeto do desejo do Kremlin e da ditadura chinesa é outro: a Rota Setentrional, hoje aberta por apenas 3,5 meses por ano, ligando Murmansk ao porto de Dalian, o maior do norte chinês.

Ela serve tanto para levar gás à China quanto para, na mão reversa, enviar produtos de Pequim para a Europa.

Hoje o caminho é mais longo, até 40% mais dos cerca de 30 dias da Rota Setentrional até o maior porto europeu, o holandês Roterdã.

Os chineses usam mais seus portos ao sul, como Xangai, o maior deles, para exportar pela rota que passa por dois lugares espinhosos.

O primeiro é o estreito de Malaca, na Indonésia, sempre uma preocupação estratégica por ser facilmente bloqueável. O outro é o canal de Suez, que já esteve no centro de uma guerra em 1956.

Com isso, o governo Putin assinou memorando com a China de Xi Jinping para estimular projetos na região.

Segundo a consultoria Guggenheim Partners, há 900 iniciativas na região, um terço delas russas. O valor projetado de investimento é de US$ 1 trilhão na próxima década.

Estatais russas como a Gazprom, líder do mercado mundial de gás, estão na região também atrás do petróleo. Não por acaso, aviões que saem de Murmansk são abastecidos com querosene da subsidiária petrolífera da empresa.

Apesar dos números grandiloquentes, há dúvidas envolvendo operações na região.

O movimento no porto de Murmansk, segundo o governo local, subiu 60% de 2016 para cá. Em 2017, foram 9,8 milhões de toneladas pela Rota Setentrional —embora só 200 mil toneladas tenham feito todo o caminho até a China.

A Atomflot, estatal russa que opera quatro quebra-gelos de propulsão nuclear únicos no mundo, afirma que pode multiplicar isso por dez até 2029. Ainda assim, o volume atual é cem vezes menor do que aquele transportado pelo canal de Suez anualmente.

A própria Novatek sugere que a Rota Setentrional será navegável mais de seis meses por ano, com navios-tanque reforçados para o gelo, só no fim do século.

Essas embarcações conseguem romper até 1,5 m de gelo. Mais do que isso, só com o auxílio dos enormes navios da Atomflot. A frota total de quebra-gelos convencionais russos é de 40, disparada a maior do mundo (Noruega tem 12).

Adicionalmente, há o risco do desprendimento de maiores e mais perigosos icebergs, além de erosão costeira com efeitos imprevisíveis sobre comportamento do mar.

Os Estados Unidos e o Canadá têm sua própria versão da rota, do outro lado do polo Norte, mas a disputa do governo Donald Trump com a China parece inviabilizar quaisquer desenvolvimentos.

Do ponto de vista energético, contudo, Trump já deu aval à exploração de áreas antes sob reserva no Alasca.

Gerou muito protesto, com a lembrança de um dos maiores desastres ecológicos da história, o vazamento do petroleiro Exxon Valdez na região, em 1989.

Seja como for, os dados estão rolando e a aposta de Moscou e Pequim já foi feita. Como sua costa abarca aproximadamente metade do Ártico, a Rússia já está reforçando suas defesas na região.

Antes protegida pelo gelo quase eterno e agora uma mina a ser explorada, a área agora tem um novo comando das Forças Armadas e seus 13 aeroportos e 11 bases navais deverão ser modernizados.

Erramos: o texto foi alterado

A região de Iamal, na Rússia, sedia uma usina que exporta gás natural liquefeito, e não gás liquefeito de petróleo, como escrito na primeira versão deste texto.

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