Descrição de chapéu Financial Times

Morre Sergio Marchionne, executivo responsável pela recuperação da Fiat

Presidente da Jeep substitui o executivo à frente da empresa

Sergio Marchionne
Sergio Marchionne - Rebecca Cook/Reuters
Londres | Financial Times

Sergio Marchionne, o presidente-executivo ítalo-canadense que salvou a montadora italiana Fiat da falência e a fundiu com a deficitária montadora americana Chrysler, era um dos líderes empresariais mais audaciosos de sua geração. Ele morreu aos 66 anos, de complicações posteriores a uma cirurgia, e era um negociador consumado, conhecido por sua capacidade de trabalhar sem parar e pela sua mente aguçada.

Jogador de pôquer, seus colegas de trabalho falam de voos transatlânticos insones nos quais o chefe queria sempre jogar —e vencer— mais uma mão.

A mesma paixão definiu seu improvável resgate da Fiat, por meio de uma audaciosa fusão com a Chrysler que salvou ambas as empresas e criou o sétimo maior grupo automobilístico do planeta.

Ele persuadiu a General Motors a pagar US$ 2 bilhões para escapar de um contrato que a forçaria a adquirir a Fiat, quase falida, em 2005, e em seguida capturou a problemática Chrysler, em 2009, da qual tomou controle pleno em 2014.

 

Marchionne jamais perdeu o apetite pela próxima transação ousada - e quanto mais complicada melhor; desde o começo, se retratou como um sujeito original, disposto a fazer o inesperado, o que incluía sua rejeição aos tradicionais ternos dos executivo, substituídos por macacões e camisas sociais, Ele costumava dizer que se vestir de um jeito mais simples o ajudava a poupar tempo de manhã.

"Ele era extremamente duro, extremamente exigente", diz Luca di Meo, antigo presidente das marcas Fiat e Alfa Romeo, e hoje presidente-executivo da Seat, parte do grupo Volkswagen. "Mas sempre pedia mais de si mesmo do que dos outros. Quando você age assim, se torna mais que um chefe - se torna um líder".

Para os investidores na Fiat Chrysler, especialmente a família italiana Agnelli, a maior acionista do grupo, ele fez fortunas. O valor de mercado da Fiat, incluindo subsidiárias cuja cisão ele promoveu, como a Ferrari, subiu em 1.000% sob o comando de Marchionne.

A Exor, a holding dos Agnelli, confirmou a morte de Marchionne na quarta-feira.

John Elkann, herdeiro da família Agnelli, disse que "infelizmente o que temíamos veio a se confirmar. Sergio Marchionne, o homem, o amigo, se foi. Creio que a melhor maneira de honrar sua memória será expandir o legado que ele nos deixou, continuar a desenvolver os valores humanos da responsabilidade e abertura, dos quais ele era o mais ardente defensor".

Nos últimos anos, o líder da Fiat, cujo sotaque tipicamente canadense atraía multidões às suas palestras em salões de automóveis e às suas entrevistas coletivas, todo mundo ansioso por ouvir seus comentários de humor ácido ou o anúncio de uma nova grande transação, foi o precursor das grandes fusões entre montadoras de automóveis de primeira linha, com o objetivo de reduzir o excesso de capacidade do setor e combater a disparada nos custos de capital.

Dois meses atrás, no que se esperava fosse sua reunião final com os investidores da Fiat Chrysler antes da aposentadoria, ele alertou sobre a necessidade de o setor confrontar a ameaça dos carros autoguiados e da eletrificação.

"Não há nada de nobre em ser superior aos demais seres humanos; a verdadeira nobreza está em superar o seu eu passado", disse Marchionne, citando Ernest Hemingway, o clássico escritor macho alfa.

Na atual geração de líderes do setor automobilístico, só Carlos Ghosn, da Renault, esteve no poder por mais tempo. Marchionne ia se aposentar, depois de postergar a data diversas vezes, em abril de 2019.

"Para muita gente, Sergio foi um líder esclarecido, e um ponto de referência incomparável", disse Elkann, presidente do conselho da Fiat Chrysler, depois que ficou claro que Marchionne não se recuperaria,

Nascido em 1952 em Chieti, na região de Abruzzo, uma área na época empobrecida do sul da Itália, Marchionne emigrou quando jovem para Toronto, com sua mãe e pai. Lá, aos 14 nos, e se reuniu com membros de sua família que haviam fugido da Itália depois de sobreviver a atrocidades nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Ao concluir os estudos, ele tinha diplomas em direito e contabilidade, duas disciplinas que colocaria em uso mais tarde ao negociar transações em pessoa, expulsando os consultores financeiros da sala, frequentemente.

Marchionne entrou na órbita dos Agnelli quando foi descoberto por Umberto Agnelli, irmão de Gianni Agnelli, o patriarca da Fiat, morto havia pouco tempo; Umberto Agnelli estava em busca de um executivo capaz de salvar a empresa.

Agnelli havia reparado que Marchionne, que estava trabalhando na Europa, havia conquistado "enorme sucesso" na recuperação do grupo de serviços industriais suíço SGS, de acordo com Franzo Grande Stevens, advogado da dinastia Agnelli. Marchionne se tornou parte do conselho da Fiat em 2003.

Um ano mais tarde, foi selecionado por Elkann, o herdeiro dos Agnelli, que então tinha 28 anos, como presidente-executivo da Fiat. Ele foi o quinto presidente-executivo da montadora em um caótico período de dois anos.

Contrariando as probabilidades, ele conseguiu tirar a montadora, que havia sofrido um prejuízo de seis bilhões de euros em 2003, do vermelho em dois anos, com medidas de corte de custos e demissões de pessoal.

A aquisição da Chrysler abriu seu apetite por transações complexas e de alto risco. Em 2009, Marchionne obteve o apoio do presidente americano Barack Obama, que entregou à Fiat uma participação acionária de 20% na problemática montadora americana, em lugar de permitir sua falência.

Marchionne completou a aquisição da empresa em 2014, e fez com que a Chrysler pagasse por sua própria aquisição com um dividendo especial de 4,35 bilhões de euros. Com sua desfaçatez característica, ele venceu a mão, argumentando que o valor da Fiat e da Chrysler dependia de que continuasse a liderá-las. A união deu às empresas a escala de que necessitavam para sobreviver.

Quando o Financial Times afirmou que ele tinha tirado férias depois de fechar o acordo em Vero Beach, Flórida, Marchionne respondeu com uma mensagem: "Nunca tiro férias". Seu plano seguinte não deu certo: uma oferta à GM que resultaria na criação da maior montadora de automóveis do planeta não foi adiante em 2015.

Em lugar disso, ele se concentrou em reforçar suas  marcas, dando presença mundial à marca Jeep e promovendo a cisão da Ferrari, cujo valor de mercado atingiu 10 bilhões de euros. Sua última grande vitória, em junho, foi anunciar que a Fiat Chrysler tinha zerado suas dívidas.

"Ele é um rock star. Mas o problema é que quando um rock star sai do palco, os holofotes se apagam. Isso aterroriza a família", disse uma pessoa que trabalhou por muitos anos para a família Agnelli ao Financial Times, certa vez.

Nos Estados Unidos, seu jeito brusco e direto conquistou muitos fãs, entre os quais Obama, mas irritava os colegas do setor automobilístico. Na quarta-feira, todas as rivalidades do passado foram esquecidas.

Mary Barra, presidente-executiva da General Motors, disse que Marchionne havia "criado um legado notável na indústria automobilística", e Dieter Zetsche, o líder do grupo Daimler, disse que "a indústria automobilística perdeu um verdadeiro gigante, e muitos de nós perdemos um amigo muito querido: Sergio Marchionne".

Carlos Tavares, presidente-executivo da PSA, descreveu Marchionne como "um grande capitão de indústria que permanecerá como exemplo para todos nós". O relacionamento de Marchionne com a Itália tinha um lado complicado. Um dos executivos mais bem remunerados do país, ele dominava a vida da indústria e as conversas. Foi demonizado por Beppe Grillo, o humorista que fundou o movimento político Cinco Estrelas, por seu fechamento de fábricas e demissões de operários. Em um comício político em Milão, Grillo puxou o coro de "vá se f***r, Marchionne".

No plano pessoal, Marchionne era muito consciente do estrago causado pela globalização. Em uma reunião privada com líderes empresariais americanos e italianos em Veneza, dois anos atrás, ele desafiou o primeiro-ministro italiano Mario Monti, chocando-o e o colocando na defensiva, ao questioná-lo sobre a surdez de Bruxelas diante das preocupações das pessoas comuns.

"Populismo é só uma palavra que banqueiros usam para jogar a culpa nos outros", recorda um executivo que o encontrou três semanas atrás de ouvir Marchionne dizer. Fã de música, apaixonado por jazz, ópera e Bruce Springsteen, ele certa vez recorreu a um verso de Springsteen para definir a situação da Fiat em uma reunião com analistas: "a meio caminho do céu e mal saídos do inferno".

Marchionne trabalhava sem parar, e descartava sem piedade os subordinados que não cumprissem suas imensas expectativas. Para manter seu ritmo incansável, com viagens constantes entre Turim, Detroit, Londres e muitas vezes a Ásia, ele bebia cafés expressos sem parar, e fumava cigarros Muratti incessantemente, até um ano atrás, quando teve de abandonar os dois hábitos por ordens médicas.

Em um almoço na sede da Fiat em Lingotto, Turim, em 2013, ele falou sobre o que faria quando não tivesse de pensar em carros 24 horas por dia. "Quero estudar física teórica", disse. O atrativo?

"É uma das coisas mais difíceis que existem". Ele pediu um computador.

A máquina chegou em segundos, e Marchionne mostrou um vídeo no YouTube de Tsung Tsung, um prodígio chinês do piano, aos quatro anos de idade, tocando "O Voo do Besouro" [de Nikolai Rimsky-Korsakov]

"Fiquei assistindo ao vídeo de madrugada", ele disse. "Você consegue imaginar alguém com um cérebro assim?" Marchionne deixa dois filhos de seu primeiro casamento, e sua companheira de longa data.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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