Até que ponto o aquecimento da economia americana é positivo?

Embora a área de Las Vegas esteja florescendo, a classe média está sob pressão

Nova York | The New York Times

Uma silenciosa comunidade de classe trabalhadora, distante do brilho da Strip de Las Vegas, ajudou a deflagrar a crise financeira mundial dez anos atrás. As consequências foram inescapáveis: quase um terço das casas locais tiveram suas hipotecas executadas.

Hoje, a cidade de North Las Vegas, definida pelo código postal 89031, é um modelo da recuperação que varreu os Estados Unidos. A economia está crescendo, empresas estão contratando pessoal, o mercado da habitação está aquecido, e a comunidade suburbana está se estendendo ainda mais pelo deserto de Mojave.

Mas a recuperação não é igual para todos. Embora a área de Las Vegas esteja florescendo, a classe média está sob pressão.

O crescimento firme em todo o país causou alta nos mercados de ações e nos lucros das empresas. Mas esses ganhos não beneficiaram a maior parte dos trabalhadores. A renda dos trabalhadores mal subiu, e as dívidas dos consumidores estão em alta de novo.

A comunidade Sun City Aliante, no norte de Las Vegas
A comunidade Sun City Aliante, em North Las Vegas ORG XMIT: XNYT194 - NYT

Os preços das casas em North Las Vegas estão subindo tão rápido que diversas áreas da região já não são acessíveis. Boa parte das construções novas é de alto padrão, o que restringe o acesso das pessoas interessadas em comprar sua primeira casa. Algumas delas não conseguem dinheiro para pagar a entrada, e outras hesitam em voltar ao mercado do qual um dia saíram queimadas.

Para muita gente, o sonho americano está fora de alcance. Os Estados Unidos são cada vez mais um país de rentistas.

Angela Guthrie, 51, viveu em três casas diferentes, nos últimos 12 anos. Em 2006, ela comprou uma casa de três dormitórios, com o marido. Mas não conseguiu manter em dia os pagamentos de sua hipoteca, um empréstimo subprime [ou seja, de risco], com taxas de juros sujeitas a aumentos fortes. Ela optou por declarar falência pessoal, perdeu a casa e se divorciou.

Guthrie tentou comprar uma casa a alguns quilômetros de distância, em um condomínio que oferece opção de compra aos inquilinos, e fez um pagamento inicial de US$ 3 mil (R$ 12,5 mil). O negócio deu errado porque ela não conseguiu uma hipoteca, e perdeu o dinheiro que havia depositado como entrada.

No momento, Guthrie vive em uma casa alugada a alguns quarteirões de distância de sua antiga residência. O bairro é seguro, e uma empresa de segurança particular patrulha as ruas à noite. Mas o novo proprietário da casa em que ela mora, um investidor de fora do estado, acaba de aumentar seu aluguel em algumas centenas de dólares por mês, e de exigir mais US$ 1 mil (R$ 4,18 mil) em depósito de segurança.

Com quatro filhos, ela não tinha muita escolha. Sua filha de 15 anos é aluna de uma escola de boa qualidade, e ela não queria ameaçar a vaga da menina se mudando para outro bairro.

Guthrie trabalha em uma empresa de distribuição de suvenires, e não planeja comprar uma casa. Para ela, as lembranças da hipoteca executada são muito próximas. "Como construir riqueza?", ela questionou. "Minhas visões sobre a propriedade de uma casa mudaram".

Angela Guthrie na sua terceira casa em doze anos
Angela Guthrie na sua terceira casa em doze anos - NYT

Nos 10 últimos anos, uma casa na avenida Osiana mudou de mãos cinco vezes, duas delas por execução de hipotecas.

A primeira compradora adquiriu a casa por US$ 400 mil (R$ 1,6 milhão) em 2005, e fez dívidas de mais de US$ 1,3 milhão (R$ 5,4 milhões) para comprar o imóvel e outros três. Ela perdeu os quatro imóveis por não manter em dia as hipotecas, e pediu falência.

Os estragos da crise na habitação - uma combinação tóxica de empréstimos frenéticos e predatórios e excesso de investimento - foram amplos. Das 23 mil residências unifamiliares no CEP 89031, mais de 7,4 mil passaram por pelo menos uma execução de hipoteca, de 2006 para cá, de acordo com a Attom Data Solutions.

A enfermeira Sandra Francescon adquiriu a casa na avenida Osiana por US$ 227 mil (R$ 948 mil), em 2008. Quatro anos depois, teve sua hipoteca executada, porque a administração do condomínio apresentou queixa contra ela por atraso nos pagamentos de manutenção. Cerca de 10 mil casas no CEP 89031 foram penhoradas a pedido de credores, por seus proprietários não estarem mantendo as contas em dia.

Ela contestou a queixa do condomínio no tribunal, sem ajuda de um advogado, e perdeu a causa. "Isso me incomoda até hoje", disse Francescon, 59. "O que mais me incomoda é que o banco confirmou o tempo todo que meus pagamentos eram regulares".

Como outras pessoas na mesma situação, Francescon se viu forçada a se mudar. Agora ela vive no Illinois.

No começo da crise, investidores que tinham dinheiro em caixa correram para adquirir casas de proprietários endividados, por preços baixos. Grandes empresas, com apoio de Wall Street, e pequenas companhias compraram milhares de casas cujas hipotecas haviam sido executadas pelos bancos, por bem menos de US$ 100 mil (R$ 418 mil). O investidor que comprou a casa da avenida Osiana depois do despejo de Francescon pagou apenas US$ 6 mil (R$ 25,08 mil).

As pechinchas desapareceram. Os preços subiram em mais de 135% desde o ponto mais baixo da crise, em North Las Vegas, com alta quase três vezes superior à média nacional, de acordo com a Black Knight, que acompanha estatísticas do mercado imobiliário.

Jasmine Ricks e sua irmã, Portia Reed, estavam entre as pessoas afortunadas que conseguiram comprar uma casa a um preço que lhes era conveniente. As duas irmãs, ambas na casa dos 20 anos, estavam cansadas de desperdiçar dinheiro, e queriam uma casa em que seus três filhos pudessem brincar.

Depois de visitar dois imóveis, nas últimas semanas, encontraram uma casa de cinco quartos por US$ 300 mil. Para comprar sua primeira casa, elas recorreram a um programa de assistência financeira. O pagamento de entrada que fizeram foi de menos de US$ 1 mil;

"Isso nos surpreendeu. Foi a coisa mais fácil que fizemos em nossas vidas", disse Ricks, que trabalha em uma empresa que administra históricos médicas. "A casa tem um quintal enorme. As crianças adoram".
A recuperação no setor de habitação foi acompanhada por uma recuperação mais ampla, e a área está atraindo novos empregadores.

A Amazon abriu duas grandes centrais de distribuição de produtos e recepção de produtos devolvidos, em North Las Vegas, criando milhares de empregos. Uma terceira central está a caminho. A rede de cosméticos Sephora recentemente começou a construção de um grande armazém na área.

Com quase 250 mil moradores, North Las Vegas é uma das cidades de mais rápido crescimento nos Estados Unidos. Também é uma cidade jovem -a idade média dos moradores é de 33 anos.

Como boa parte da região, North Las Vegas é uma paisagem de contrastes, onde lojas de penhores são tão comuns quanto pistas de golfe bem cuidadas. Condomínios residenciais simples e casas luxuosas equipadas com gramados verdejantes - uma raridade em uma área na qual pedras e deserto são a norma - dividem o espaço da comunidade.

Em um mercado que se movimenta muito rápido, há gente que não tem como comprar casas. North Las Vegas é considerada como um dos mercados mais supervalorizados dos Estados Unidos.
Hoje, 45% das residências unifamiliares da cidade são ocupadas por inquilinos, ante 33% em 2008. Os aumentos de aluguéis em North Las Vegas estão entre os mais altos do país.

Jazzmine Guiberteaux se mudou para a cidade alguns anos atrás, vinda de Oakland, Califórnia - uma dentre os muitos californianos que se dirigiram a Nevada em busca de mais espaço e de moradias mais baratas. Mas ela vem encontrando cada vez mais dificuldade para acompanhar a alta de preços. Aos 35 anos, com dois filhos e grávida do terceiro, ela trabalha em uma loja de roupas e é motorista da Uber, para ganhar algum dinheiro a mais. Guiberteaux teve de se mudar três vezes nos últimos cinco anos.

A concentração dos incorporadores de imóveis no extremo mais elevado do mercado não ajuda muito.

A Pardee Homes está construindo casas de US$ 400 mil (R$ 1,6 milhão) ou mais à beira do deserto. As casas de luxo oferecidas no condomínio Villages, em Tule Springs, vêm em três estilos: Deserto Contemporâneo.

Espanhol Moderno e Nevada Living. A Lennar está construindo casa de preços moderados e condomínios, com Nova York como tema. Os modelos de casas oferecidos são conhecidos como Brooklyn, Manhattan e Rochester.

As casas em North Las Vegas "estão vendendo muito bem", disse Trish Nash, corretora de imóveis que mora na área há muito tempo. "Elas estão sendo vendidas em apenas três dias, e em alguns casos em apenas um dia".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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