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Número de bilionários cresce na Ásia e inspira filme 'Podres de Ricos'

Longa oferece uma visão sobre a maneira pela qual a riqueza do planeta está migrando para o leste

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James Crabtree
Financial Times

Depois de chegar ao aeroporto em Ferraris e Lamborghinis nada discretas, a noiva e suas acompanhantes embarcam em um jatinho particular para uma ilha tropical. Enquanto isso, o noivo e seus amigos recorrem a uma frota de helicópteros e voam para um navio porta-contêineres que navega ali por perto, com os conveses repletos de dançarinas e modelos importadas e transformado em uma casa noturna flutuante. Quando as celebrações da noitada chegam ao zênite, um dos convidados despreocupadamente dispara uma bazuca para o alto.

Essa festa de despedida de solteiro é apenas uma das cenas de luxo absurdo dispersas ao longo do filme "Podres de Ricos", que estreou nos Estados Unidos em 15 de agosto. Também representa uma cena de excesso que lembra algumas das que encontrei nos meus cinco anos de cobertura jornalística sobre as hierarquias empresariais asiáticas, e as vastas fortunas que elas acumularam.

Cena do filme 'Podres de Rico'
Cena do filme 'Podres de Rico' - Divulgação/

Morei em Mumbai, e há poucos símbolos mais poderosos da nova riqueza asiática que o Antilia, um arranha-céu residencial naquela cidade que costuma ser descrito como a primeira casa de US$ 1 bilhão (R$ 4,13 bilhões) do planeta. O edifício avulta por sobre os notórios cortiços da capital financeira da Índia, e é propriedade do magnata da indústria Mukesh Ambani, agora coroado como homem mais rico do continente.

A riqueza relativamente velha e visível em Singapura, que serve de cenário a "Podres de Ricos" e onde moro há três anos, pode ser ligeiramente mais discreta. Mas a escala da afluência acumulada nas últimas décadas é bastante evidente também por aqui. "É importante lembrar que essas pessoas não são só ricas: são loucamente ricas", nas palavras de um personagem do filme.

Desde a crise financeira de 2008, muito se escreveu sobre o poder crescente dos ultrarricos. O poderio crescente dos bilionários do planeta –havia 2.208 deles no ranking da revista Forbes este ano, ante 1.062 uma década atrás– exacerbou problemas que variam da crescente desigualdade ao populismo político engendrado em parte por ela.

Mas a atenção que vem sendo dedicada aos muito ricos é tamanha que se poderia argumentar que isso significa menos atenção às mudanças no elenco da riqueza, especialmente à ascensão dos gigantes orientais. Os Estados Unidos ainda têm mais integrantes do que qualquer outro país no "clube dos bilionários", mas a região Ásia-Pacífico hoje supera com facilidade a Europa e a América do Norte. A China, sozinha, deve certamente superar a liderança americana nas listas de bilionários, e o mesmo pode acontecer no caso da Índia, mais tarde. E é aí que entra Hollywood.

Baseado no best seller "Crazy Rich Asians","Podres de Ricos" é uma história na qual Jane Austen e Jimmy Choo se encontram –uma comédia romântica tradicional que se passa em meio à aristocracia endinheirada de Singapura. O filme conta a história de Rachel Chu, professora de economia na Universidade de Nova York, interpretada por Constance Wu. (O personagem dela é descrito como "ABC", ou "American-born Chinese", americana nascida na China.)

No começo do filme, ela está namorando Nicholas Young (Henry Golding), um singapurense sedutor radicado nos Estados Unidos e seu colega no corpo docente da universidade, descrito no livro como "um homem de traços cinzelados e cara de ídolo pop cantonês, com sobrancelhas impossivelmente espessas". Young convida Chu para uma visita à sua terra, onde ele será o padrinho no casamento de um velho amigo dos tempos de escola, mas omite o fato de que é herdeiro de uma das mais ricas famílias asiáticas. A mãe de Young, Eleanor, a matriarca da família, interpretada com férrea elegância pela atriz malásia Michelle Yeoh, não vê com bons olhos a intrusa americana.

A história que vem depois é perfeitamente conhecida dos leitores de "Orgulho e Preconceito", com uma protagonista de raízes humildes mas moralmente virtuosa batalhando para encontrar seu lugar nos escalões mais altos da sociedade. O filme inverte um padrão estabelecido de Hollywood, ao escalar um elenco 100% asiático –a primeira produção hollywoodiana a fazê-lo desde "O Clube da Alegria e da Sorte", de 1993. O resultado foi definido como um marco histórico, tanto ao retratar as minorias de ascendência asiática que costumam ter pouco espaço nas telas quanto ao relatar a fábula da ascensão econômica asiática.

Os filmes de sucesso costumam escalar atores asiáticos para papéis menores, selecionando atores chineses famosos para funções secundárias, como uma forma de conquistar as audiências de Pequim e Xangai. Mas Kevin Kwan, o autor singapurense de "Crazy Rich Asians", publicado em 2013, tinha ideia diferente. "Para mim era muito importante fazer esse projeto do jeito certo", ele disse no ano passado. "No começo, havia muita preocupação de que [Hollywood] tentasse mudar aqueles asiáticos podres de ricos [...] que Reese Witherspoon fosse escalada para o papel principal".

Kwan, 44, critica mais amplamente os estúdios de Hollywood, tanto por seu fracasso em desenvolver os atores americanos de origem asiática quanto por sua incapacidade de produzir roteiros que permitiriam que eles florescessem. Ele rejeitou uma oferta lucrativa da Netflix por seu romance, e cedeu uma opção para adaptação da obra por US$ 1 (R$ 4,13), sob um contrato que lhe permitia reter controle sobre o projeto e entregava o comando da produção a Jon Chu, um cineasta americano com origens na China e Taiwan. Cientes da escassez de atores asiáticos no sistema existente dos estúdios de Hollywood, os dois realizaram um processo aberto de seleção de elenco, e selecionaram alguns atores desconhecidos, com destaque para Golding, que eles escolheram para o papel masculino central.

Prédio em Mumbai (Índia)
Antilia é um arranha-céu residencial em Mumbai que costuma ser descrito como a primeira casa de US$ 1 bilhão - Danish Siddiqui/Reuters

Os esforços deles podem ser comparados facilmente a "Pantera Negra", um filme pioneiro sobre super-heróis lançado este ano com elenco majoritariamente negro e dirigido por um cineasta negro. Mas o filme tinha alguns coadjuvantes caucasianos, entre os quais Martin Freeman em um papel cômico como agente da Agência Central de Inteligência (CIA), como que para oferecer alguma medida de familiaridade cultural confortável à audiência predominantemente branca do cinema americano. Já o filme de Chu não tem qualquer personagem caucasiano.

Que isso tenha acontecido é ainda mais notável se considerarmos o passado racial dúbio de Hollywood quanto aos americanos de origem asiática, que costumam ser relegados a papéis em filmes de artes marciais ou interpretam veneráveis professores de sabedorias milenares - ou ambos, no caso do Sr. Miyagi em "Karate Kid". Em seus piores momentos, a tendência resultou na escalação de atores brancos para papéis asiáticos, como o notório Sr. Yunioshi, interpretado por Mickey Rooney com "maquiagem asiática" em "Bonequinha de Luxo" (1961). Alguns filmes mais recentes também foram acusados de "whitewashing" [escalar brancos para papéis asiáticos], por exemplo "A Vigilante do Amanhã - Ghost in the Shell", remake de um animê clássico japonês com Scarlett Johansson no papel central.

Além da ousadia na seleção do elenco, "Podres de Ricos" é significativo precisamente por expor o poder crescente do dinheiro asiático. A alta sociedade de Kwan é dominada por chuppies (yuppies chineses) e por henwees (pronúncia fonética de HNWI, sigla em inglês para pessoas de alto patrimônio). O livro começa por um provérbio do estudioso muçulmano Ibn Batuta, do século 14, que afirma que "em lugar algum do mundo existem pessoas mais ricas que os chineses" - uma pérola da sabedoria do passado que em breve voltará a ser verdade. A região Ásia-Pacífico já ultrapassou a América do Norte como principal paradeiro para os HNWIs, ou seja, pessoas com mais de US$ 1 milhão (R$ 4,13 milhões) em ativos, sem contar o valor de sua principal residência. Coletivamente, esse grupo detinha ativos de US$ 22 trilhões (R$ 90,86 trilhões) em 2017, de acordo com a consultoria Capgemini.

Qualquer que seja sua importância cultural, "Podres de Ricos" deve conquistar audiências por seu retrato descontraído dos novos ricos asiáticos. Uma das personagens não vê coisa alguma de estranho em comprar um par de brincos por mais de US$ 1 milhão (R$ 4,13 milhões) e depois correr para casa e ordenar que os criados escondam as joias de seu marido resmungão. Outra gasta US$ 30 mil (R$ 123,9 mil) em uma cirurgia plástica para um peixe de estimação. Outro personagem tem cachorros chamados Astor e Rockefeller, um dos muitos acenos do filme à ostentação da "Era Dourada" do capitalismo americano no século 19. "Ouvi dizer que esse casamento custou US$ 40 milhões (R$ 165 milhões)", diz uma matriarca idosa lá pela metade do filme, ao entrar em uma igreja decorada exoticamente para se parecer com uma lagoa tropical. "Pois é, caro demais", diz sua companheira, chocada. "Nosso limite é de US$ 20 milhões (R$ 82,6 milhões)".

O filme lida com as ansiedades dos imigrantes quanto a identidade, e não deveria surpreender que os efeitos dessas mudanças financeiras às vezes se façam sentir com mais intensidade entre os emigrados. As duas maiores economias emergentes do planeta, Índia e China, também são origem de duas das maiores e mais ricas diásporas, especialmente para os Estados Unidos. As famílias que se transferiram desses países aos Estados Unidos desfrutaram por muito tempo de uma posição de superioridade financeira. Mas agora que seus países de origem estão prosperando, o jogo está virando, e a riqueza dos países que eles deixaram se equipara a, e pode até mesmo superar, a riqueza acumulada pelos emigrantes.

O protagonista mais importante nessa virada de riqueza do ocidente para o leste será inegavelmente a China, e "Podres de Ricos" é intrigante quanto a isso por conta da natureza especificamente chinesa da riqueza que exibe. O filme pode se passar em Singapura, mas todos os seus personagens são de origem chinesa, o que oferece ao espectador ocidental uma visão sobre as interconexões da elite empresarial chinesa emigrada, que domina a vida comercial não só da China mas de boa parte do leste e do sudeste da Ásia. No começo do filme, Chu é apresentada a um grupo de amigos ricos de Young. Isso causa um jogo com uma ponta de desespero, no qual eles tentam adivinhar a qual dos clãs de famílias muito ricas com o sobrenome Chu ela estaria ligada. Ela é parte da família Chu das embalagens, na Malásia? Ou dos Chus que trabalham com eletrônica em Taiwan? Os Chus que fabricam macarrão instantâneo na China?

Há um padrão semelhante visível na Índia, nação cuja classe de altíssimo patrimônio vim a conhecer bem ao pesquisar para "The Billionaire Raj", um livro recente. A lista de bilionários da Índia hoje tem mais integrantes que a de qualquer outro país exceto os Estados Unidos e a China. De fato, apesar de ainda continuar relativamente pobre, a Índia criou riqueza nos escalões mais altos de sua sociedade em velocidade muito maior do que aconteceu na China quando ela estava nesse mesmo estágio de desenvolvimento, e hoje sofre de um nível de desigualdade que em muitos aspectos supera o do gigante asiático vizinho. Mas mesmo na elite da Índia existem padrões que não são bem compreendidos por observadores externos, com constelações específicas de famílias ou grupos regionais e castas dominando redes de riqueza que se estendem de Nova Déli a Mumbai e de lá a grandes polos financeiros como Londres e Singapura.

Super-árvores movidas a energia solar nos Jardins de Singapura - AFP

A ausência de indianos em "Podres de Ricos" causou alguma controvérsia em Singapura. Depois da publicidade que o encontro entre o presidente Trump e o líder norte-coreano Kim Jong-il valeu para a ilha no ano passado, o filme serve como um suntuoso comercial de duas horas de duração sobre o mais rico país da Ásia, em termos de ativos financeiros per capita. Mas isso não bastou para evitar críticas à política racial do filme, especialmente pela ausência de personagens de etnia indiana ou malaia - dois grupos que respondem por um quarto da população de Singapura. "Embora eu compreenda que 'Podres de Ricos' é muito importante para os americanos de origem asiática, os produtores não parecem reconhecer que seu filme pratica a mesma forma de exclusão de minorias raciais que a Hollywood branca pratica", diz Kirsten Han, jornalista radicada em Singapura.

E "Podres de Ricos" também incomodou a alguns por conta dos detalhes de sua natureza asiática, gerando críticas à escalação de Golding - que tem mãe malásia e pai britânico - para o papel de um personagem supostamente chinês. Mas as ascensão dos ricos asiáticos que o filme retrata importará no futuro também por suas consequências econômicas.

O filme e o livro começam com um flashback remete à década de 1980. Nick Young, ainda criança, assiste horrorizado a uma cena em que o gerente de um hotel londrino elegante recusa a entrada de sua mãe. Ela retalia ligando para o marido, que compra o hotel na hora - um prenúncio da onda de compras de propriedades luxuosas ocidentais, de cadeias de hotéis de luxo a clubes de futebol, por magnatas chineses.

As reações a desdobramentos como esses dificilmente ficarão confinadas ao Ocidente. Até agora, a Ásia não viu a virada ao populismo que veio a dominar a política do Ocidente nos últimos anos, em parte talvez porque as economias da região continuam a crescer vigorosamente. Mas nas próximas décadas, se a disparidade de renda entre ricos e pobres continuar a crescer no ritmo dos 10 últimos anos, uma sensação de ressentimento quanto à distância que separa a elite dos cidadãos comuns pode bem começar a fervilhar.

O cerne do filme, portanto, é um dilema mais amplo para aqueles que se dividem entre os valores ocidentais e orientais, mais visível na matriarca Eleanor Young. Ainda que ela envie seu amado filho para estudar primeiro em Londres e depois nos Estados Unidos, teme que os valores com os quais ele retorna venham a destruir a dinastia, e a riqueza que ela acumulou.

"Os americanos só pensam em sua felicidade. É uma ilusão", ela diz, com repulsa evidente. Em referência aos asiáticos de origem chinesa, ela prossegue:"Nós sabemos como construir as coisas para que durem".

"Essa tensão entre os valores ocidentais e os valores asiáticos é algo que todos os jovens na minha situação enfrentaram", disse Aun Koh, singapurense que fala inglês com forte sotaque americano e se criou principalmente nos Estados Unidos, ainda que ele tenha voltado para casa para criar o Straits Clan, um clube privativo para a elite. "Nosso país agora está extremamente ocidentalizado, mas muitos dos meus amigos têm avós que não falam inglês, e ainda acreditam em um conjunto de valores muito diferente".

Esse tipo de sentimento costuma ser comum entre os integrantes da elite financeira asiática, De um lado, apesar da riqueza ainda resta alguma insegurança e desconforto, por conta da ansiedade causada pelo senso de inferioridade ante o Ocidente. De outro, há o medo de que, apesar de seu crescente poder, as culturas tradicionais asiáticas estejam sendo corrompidas por influências externas perniciosas, seja em forma de namoradas estrangeiras, seja em forma de consumo perdulário.

E em companhia disso existe também um senso inegável de confiança asiática cada vez mais forte, e com ele um reconhecimento das falhas cada vez mais evidentes dos países da Europa e da América do Norte, antes tão admirados. "Não acredito que esse lugar tenha um cinema e um jardim de borboletas", diz Chu ao contemplar com espanto o reluzente aeroporto de Changi, em Singapura. Comparando o cenário ao terminal decrépito do qual ela partiu em Nova York, ela diz que "o [aeroporto] JFK é só salmonela e desespero". Durante um jantar suntuoso, mais adiante no filme, um personagem tenta convencer seus filhos mimados a comer: "Há muitas crianças passando fome na América", ele diz.

Ainda que "Podres de Ricos" possa encantá-los pelo romance, os espectadores ocidentais dificilmente se sentirão confortáveis diante da alteração no equilíbrio geopolítico que embasa a crescente segurança asiática, argumenta Parang Khanna, de Singapura, que está para lançar um livro intitulado "The Future is Asian". "É uma grande mudança, e o Ocidente começará a perceber que antes os asiáticos faziam coisas para nós, e agora nós fazemos coisas para eles", ele diz. "O ponto é que mais e mais asiáticos podres de ricos surgem a cada dia. O filme despertará as pessoas para essa realidade".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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