Trump mina OMC e ameaça travar tribunal de arbitragem

Desde 2017, governo americano bloqueia indicação de árbitros de órgão

Raquel Landim
São Paulo

Sob o comando do presidente Donald Trump, os Estados Unidos ameaçam paralisar o instrumento mais eficaz da OMC (Organização Mundial de Comércio): seu tribunal de solução de controvérsias, responsável por arbitrar disputas comerciais bilionárias entre os 150 países-membros.

Desde junho de 2017, o governo americano vem bloqueando seguidamente a indicação de novos árbitros para o órgão de apelação da OMC --uma espécie de segunda instância do sistema, cuja decisão é final-- e agora a situação chegou a um ponto crítico.

Dos sete membros originais, restarão apenas três a partir do fim deste mês, quando Shreee Baboo den Bossche, representante da África no tribunal, terminar o seu mandato.

 

Em reunião no dia 27 de agosto em Genebra, sede da OMC, os EUA indicaram aos demais países que não vão apoiar a escolha de um novo árbitro, cujo nome deveria ser aprovado por consenso para um mandato de quatro anos.

Pelas regras da OMC, o órgão de apelação precisa de três membros para funcionar, ou seja, a partir de 30 de setembro, se algum dos árbitros se declarar impedido por conflito de interesse, não haverá julgamento.

Pior: se o impasse não for solucionado até o fim de 2019, quando mais dois árbitros se aposentam, o tribunal vai deixar de funcionar.

A paralisia do órgão de apelação representa uma crise sistêmica para toda a OMC.

O xerife do comércio internacional perde seus "dentes", ou seja, não poderá punir países que concedem subsídios ou colocam barreiras protecionistas.

Sem punição, não faz sentido negociar novas regras ou acompanhar se as já existentes vêm sendo obedecidas --os outros dois pilares principais da entidade.

"A OMC é baseada em regras, e o mecanismo de solução de controvérsias garantem que essas regras sejam aplicadas. É muito importante superar o impasse atual o quanto antes", afirmou à Folha Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC.

Criado em 1995, com a OMC, o sistema de solução de controvérsias já recebeu cerca de 600 reclamações dos países e julgou 308 casos, dos quais 156 foram levados até a última instância: o órgão de apelação.

Mesmo em meio à atual confusão, a entidade continua sendo altamente demandada.

De janeiro até setembro deste ano, já foram iniciadas 31 novas disputas, o maior patamar desde 2002.

Um grupo de 64 países, incluindo o Brasil, vem pressionando os Estados Unidos a apresentar soluções concretas para uma reforma do órgão de apelação de forma que os americanos se sintam confortáveis para indicar novos árbitros. Até agora, no entanto, os EUA não disseram o que querem.

Desde que assumiu o cargo em janeiro de 2017, Trump vem ameaçando retirar os Estados Unidos da OMC como parte de sua "guerra comercial", mas ainda não tomou uma decisão definitiva.

Enquanto isso, enfraquece a entidade com medidas unilaterais, como as tarifas sobre a importação de aço ou as sobretaxas para produtos chineses.

Na sexta-feira (7), Trump elevou o tom e ameaçou sobretaxar todos os produtos importados da China. Além de colocar US$ 200 bilhões (R$ 829 bilhões) na mira de tarifas, citou mais US$ 267 bilhões (R$ 1,1 trilhão).

Presidente Donald Trump em evento na Casa Branca, em Washington
Presidente Donald Trump em evento na Casa Branca, em Washington - NICHOLAS KAMM/AFP

Segundo o governo americano, os EUA importaram da China US$ 505 bilhões (R$ 2,1 trilhões) em 2017.

Pessoas que acompanham as discussões em Genebra contam que as críticas dos americanos ao sistema multilateral são antigas, mas que a atual administração elevou o tom porque não aceita que uma entidade internacional tenha poder de punir suas barreiras protecionistas.

Para Pablo Bentes, diretor-executivo de comércio internacional e investimento do escritório Steptoe, baseado em Washington, a estratégia de Trump ao paralisar o tribunal de solução de controvérsias é colocar a OMC em xeque para depois negociar mudanças em condições mais favoráveis.

"Os EUA vêm adotando esse tipo de postura em todos os temas", afirmou o especialista.

Ele citou como exemplo o Nafta, acordo de livre-comércio da América do Norte.

Trump ameaçou deixar o Nafta até conseguir a renegociação dos seus termos com o México e agora, com o aval dos mexicanos, pressiona o Canadá.

Nas reuniões em Genebra, os diplomatas dos EUA argumentam que seu país está insatisfeito porque a OMC não estabelece regras claras para coibir práticas desleais de alguns países, principalmente da China, em temas como propriedade intelectual ou na atuação de empresas estatais, que distorcem o comércio por terem acesso a dinheiro público barato.

Também argumentam que o tribunal de solução de controvérsias interfere na soberania dos países.

Segundo eles, o órgão acaba legislando sobre novos temas e criando jurisprudência em assuntos que ainda não foram negociados entre os membros da OMC por causa do longo impasse em torno da Rodada Doha.

Diego Bonomo, gerente-executivo de comércio exterior da CNI (Confederação Nacional da Indústria), argumenta que as reclamações dos EUA fazem sentido, mas que essa pressão deveria estar sendo canalizada para produzir reformas e não para implodir o sistema.

Ele está receoso do impacto do assunto para a indústria brasileira.

Segundo uma fonte do Itamaraty, que pediu anonimato, a situação preocupa o governo, porque o Brasil tem muito a perder se o tribunal de controvérsias deixar de funcionar, uma vez que é o país em desenvolvimento que mais usa o sistema para reclamar contra subsídios e barreiras ilegais de outras nações.

"As regras da OMC beneficiam os países ricos, mas é melhor ter regras ruins do que não ter regra nenhuma", diz Pedro de Camargo Neto, mentor do "painel do algodão" contra os subsídios concedidos pelos Estados Unidos, disputa mais importante já vencida pelo Brasil na OMC.

"O comércio internacional vai virar uma terra sem regra, onde vai valer a lei dos mais forte", resume.

Procurado, o governo americano não deu entrevista.

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