Descrição de chapéu The New York Times

A vida no quarteirão mais sujo de San Francisco

Hyde Street fica a 15 minutos de distância a pé das sedes do Twitter e da Uber

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

San Francisco (EUA) | The New York Times

As seringas para heroína, o excremento entre os carros estacionados, a sopa amarela vazando de um saco plástico no meio-fio e o tapete falso persa largado em uma esquina.

É uma cena de detritos que desperta imagens de esqualidez dignas de um país empobrecido. Mas estamos em San Francisco, a capital do setor tecnológico dos Estados Unidos, onde um quarteirão da Hyde Street abriga uma feira livre de narcóticos durante o dia e de noite é ocupado por moradores de rua e por viciados em drogas, largados na calçada.

Há muitas outras ruas como ela, mas de acordo com pelo menos um indicador esse quarteirão da Hyde Street é o mais sujo da cidade.

O bloco de 300 da Hyde Street, em São Francisco, com lixos espalhados pelo chão, como andador quebrado, plásticos e embalagens
O bloco de 300 da Hyde Street, em São Francisco, recebeu 2.227 reclamações sobre a limpeza de ruas e calçadas - Jim Wilson/The New York Times

A 15 minutos de distância de lá, a pé, ficam as sedes do Twitter e da Uber, duas empresas que, em companhia dos demais grandes nomes da tecnologia, ajudaram a elevar o preço médio de venda de uma casa em San Francisco a bem mais de US$ 1 milhão (R$ 3,75 milhões).

Essa dicotomia de crimes de rua e tecnologia revolucionária, de edifícios residenciais de luxo e desabrigo sofrido e persistente, e os efeitos desumanizadores que isso exerce sobre as pessoas forçadas a viver nas ruas, despertam indignação entre os moradores da cidade. Para muita gente que vive aqui, é difícil conciliar as tendências políticas progressistas de San Francisco e a miséria que cerca os moradores.

De acordo com os estatísticos da cidade, o quarteirão 300 da Hyde Street, uma faixa de cerca de 100 metros de comprimento no coração do bairro do Tenderloin, gerou 2.227 queixas quanto à limpeza de suas calçadas e da via para veículos nos dez últimos anos, o maior número de queixas na cidade. O indicador é imperfeito –poder ser que haja quarteirões mais sujos que geram menos reclamações–, mas os moradores do quarteirão dizem que sua posição no ranking não os surpreende. 

É preciso tapar o nariz

Detritos humanos se tornaram problema tão grave em San Francisco que a prefeitura em setembro estabeleceu uma unidade especial para removê-los das calçadas. Rachel Gordon, porta-voz do Departamento de Obras Públicas, descreve a nova iniciativa como unidade pró-ativa para detritos humanos.

Às 8h de um dia recente, em meio a mães que estavam levando filhos para a escola, a reportagem conversou com Yolanda Warren, recepcionista que trabalha em um escritório em uma travessa da Hyde Street. A calçada diante de seu escritório mostrava manchas de fezes. A rua tinha cheiro de latrina.

"Em algumas áreas do Tenderloin, quando você caminha pelas ruas é preciso tapar o nariz para escapar do cheiro", ela disse.

Como faz a cada manhã, ela usou uma mangueira para lavar a urina diante de seu escritório. A cidade instalou cinco banheiros provisórios para as centenas de moradores de rua do Tenderloin, mas isso não basta para evitar que pessoas urinem e defequem nas ruas.

"Há pessoas sem abrigo em numero grande demais, por aqui", disse Warren.

Nos últimos cinco anos, o número de moradores de rua desprovidos de vagas em abrigos em San Francisco se manteve relativamente constante –cerca de 4,4 mil– e as calçadas do Tenderloin vieram a se parecer com um campo de refugiados.

A prefeitura substituiu mais de 300 postes corroídos por urina humana e canina, nos últimos três anos, de acordo com a Comissão de Utilidades Públicas de San Francisco. A substituição dos postes ganhou urgência depois que um deles desabou em 2015, esmagando um carro.

Perigo mais comum são as milhares de seringas usadas para consumir heroína e descartadas pelos usuários.

O Departamento de Obras Públicas e uma organização sem fins lucrativos que opera no Tenderloin recolheram 100 mil seringas das ruas nos últimos anos. O departamento municipal de saúde pública, que também opera um programa de recuperação de seringas, revela números mais assustadores: recuperou 164.264 agulhas apenas em agosto, por meio de um programa estimulado de descarte e do processo normal de limpeza de ruas.

Larry Gothberg, administrador de um edifício que vive na Hyde Street desde 1982, mantém um registro fotográfico dos usuários de heroína que ele vê se injetando nas ruas. Ele mostrou em seu celular diversas fotos de usuários de drogas em estado de estupor imóvel.

"É o que chamamos de paralisia da heroína", disse Gothberg. "As pessoas ficam imóveis por horas".
 

Terra dos mortos vivos

A Hyde Street fica no coração do Tenderloin, um bairro de edifícios residenciais antiquados, com pequenos apartamentos, restaurantes vietnamitas e tailandeses, lavanderias self-service e organizações dedicadas a ajudar indigentes. Os apartamentos de um cômodo em Hyde Street tem aluguel mensal de cerca de US$ 1,5 mil (R$ 5,6 mil), de acordo com Gothberg, o que os torna baratos em uma cidade onde o aluguel médio de um apartamento é de US$ 4,5 mil (R$ 16,8 mil).

Diversas pessoas que encontramos na Hyde Street distinguem entre os moradores do Tenderloin, que incluem muitas famílias de imigrantes, e o que elas chamam de pessoas de rua –os usuários de drogas sem abrigo, que se reúnem e acampam nas calçadas, e os traficantes que lhes fornecem crack, heroína e diversas formas de metanfetamina.

Disputas são comuns entre os moradores de rua, e ocasionalmente resultam em violência. À noite, as calçadas são ocupadas por fileiras de pessoas adormecidas.

Rua de San Francisco com moradores de rua
Nos últimos cinco anos, o número de pessoas desabrigadas em San Francisco ficou em cerca de 4.400 - Jim Wilson/The New York Times

"É como a terra dos mortos vivos", disse Adam Leising, que mora em Hyde Street.

A reportagem conversou também com Leising no final da noite, depois que ele terminou seu turno como garçom em um restaurante. Caminhando pelo bairro, depois de passarmos por um homem caído no chão em meio ao lixo e a garrafas vazias de cerveja, Leising contou sobre os vislumbres diários de desespero que contempla, e que o deixam à beira da depressão.

"Somos o país mais avançado do mundo", disse Leising. "E é desse jeito que as pessoas precisam viver, aqui".

Leising, fundador da Lower Hyde Street Association, uma organização sem fins lucrativos que realiza operações de limpeza na rua, sente que a prefeitura não reprime o comércio de drogas no quarteirão porque não quer que ele se disperse por outras áreas.

"Fica evidente que essa é uma zona de confinamento", disse Leising. "Esses comportamentos não são autorizados em outros bairros".

A delegacia de polícia do Tenderloin postou em sua conta no Twitter que o tráfico de drogas "é a questão de maior impacto sobre a qualidade de vida". Até agora este ano, policiais da delegacia local realizaram mais de três mil detenções, 424 das quais por tráfico de drogas.

"Essa é uma de nossas áreas prioritárias", disse Grace Gatpandan, porta-voz da polícia, sobre o Tenderloin. Mas muita gente sente que as autoridades não fazem o suficiente.
 

Conhecemos todos eles

A prefeita de San Francisco, London Breed, eleita em junho, prometeu em sua campanha que limparia a área.

Ela anunciou planos para oferecer mil leitos adicionais para moradores de rua nos dois próximos anos, mas também tem entre suas prioridades um grupo relativamente pequeno de moradores de rua que, segundo ela, não são capazes de cuidar de suas necessidades. O conceito desse programa de remoção involuntária é definido como "conservadoria". Uma lei estadual foi aprovada recentemente em Sacramento (a capital da Califórnia) para reforçar os poderes de "conservadoria" da prefeitura, sob autorização judicial.

"Há entre 100 e 150 pessoas que são claramente doentes mentais e que passam pelo sistema recorrentemente; é preciso que as forcemos a viver sob conservadoria", disse Breed em entrevista.

Conhecemos todas elas

O gabinete da prefeita informa que 12% das pessoas que recorrem aos serviços do departamento de saúde pública municipal respondem por 73% de seus custos. A maioria desses pacientes recorrentes enfrenta problemas médicos, psiquiátricos e de abuso de substâncias, de acordo com o departamento.
Breed faz inspeções de surpresa nos bairros da cidade, às vezes carregando uma vassoura.

Em setembro, em uma manhã de sábado, ela passou por uma mulher que estava caída no pavimento da Hyde Street, se preparando para inserir uma seringa na mão.
"Largue isso", disse um policial que acompanhava a prefeita".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.