Descrição de chapéu The New York Times

Impedidas de ter jornada menos exaustiva, funcionárias têm aborto espontâneo nos EUA

Projetos que protegem mulheres grávidas no mercado americano estão paralisados

Memphis (EUA) | The New York Times

Se você é cliente da Verizon na costa leste dos Estados Unidos, há boa probabilidade de que seu celular ou tablet tenha chegado às suas mãos passando por um armazém bege e sem janelas perto da fronteira entre o estado do Tennessee e o do Mississipi.

Dentro do armazém, centenas de trabalhadores, muitos dos quais mulheres, erguem e arrastam caixas com peso de até 20 quilos, repletas de iPhones e outros aparelhos. Não existe ar condicionado no piso do armazém, que é propriedade de uma empresa terceirizada, também encarregada de operá-lo. A temperatura pode passar dos 38ºC. É comum que trabalhadores desmaiem, de acordo com 20 atuais e antigos empregados do armazém entrevistados para este artigo.

Certa noite em janeiro de 2014, depois de oito horas de esforço físico, Erica Hayes correu para o banheiro. Seu jeans estava manchado de sangue.

Ela tinha 23 anos e estava no segundo trimestre de sua primeira gestação. Tinha passado boa parte da semana levando as maiores caixas do depósito de uma esteira para outra. Desde o momento em que descobriu que estava grávida, ela vinha pedindo ao supervisor que permitisse que trabalhasse com caixas mais leves, disse Hayes em entrevista, acrescentando que o chefe negou o pedido repetidamente.

Tasha Murrell,  que teve um aborto enquanto trabalhava no armazém da Verizon em 2014, em Barlett, Tennessee, 8 de outubro de 2018
Tasha Murrell, que teve um aborto enquanto trabalhava no armazém da Verizon em 2014, em Barlett, Tennessee - NYT

Naquele dia, ela desmaiou a caminho do banheiro. O bebê, que crescia dentro dela e que ela esperava que fosse uma menina, não sobreviveu.

"Foi a pior coisa que experimentei em minha vida", disse Hayes.

Três outras mulheres que trabalhavam no armazém sofreram abortos espontâneos em 2014, quando o local era controlado por uma empresa chamada New Breed Logistics. Naquele mesmo ano, uma companhia de maior porte, a XPO Logistics, adquiriu a New Breed e o armazém. Os problemas continuaram. Mais uma mulher sofreu aborto espontâneo no começo do terceiro trimestre daquele ano. Em seguida, em agosto, Ceeadria Walker sofreu um aborto espontâneo.

Todas as mulheres haviam pedido por tarefas menos exaustivas. Três delas disseram ter apresentado atestados médico, com recomendações de que realizassem tarefas mais leves e tivessem jornadas de trabalho reduzidas. Elas disseram que seus chefes ignoraram as recomendações médicas.

No Brasil, a nova lei trabalhista permitiu que mulheres grávidas passassem a trabalhar em locais com insalubridade média ou mínima, podendo ser realocadas se apresentarem atestado de saúde pedindo afastamento. Quem está amamentando pode mostrar atestado independentemente do grau de insalubridade.

Críticos afirmam que a redação da lei abre brecha para grávidas e lactantes trabalharem em ambientes de risco à saúde da mãe e do bebê.

A discriminação contra gestantes é frequente nas empresas dos Estados Unidos. Alguns empregadores negam promoções ou aumentos de salários a gestantes, e outros as demitem antes que possam se beneficiar da licença-maternidade. Mas para mulheres que têm empregos fisicamente exigentes, a discriminação contra gestantes coloca ainda mais coisas em jogo.

A reportagem revisou milhares de páginas de documentos judiciais e outros registros públicos sobre trabalhadoras que afirmaram ter sofrido abortos espontâneos e partos prematuros; uma delas teve um bebê natimorto. Todas haviam pedido sem sucesso a seus empregadores que fossem dispensadas de tarefas pesadas como arrastar caixas grandes, virar colchões, pesados e empurrar carrinhos de carga lotados.

Elas trabalhavam em um hospital, uma agência de correio, um supermercado, uma penitenciária, uma estação de bombeiros, um restaurante, uma companhia farmacêutica e diversos hotéis.

Mas em muitos casos, a recusa de atender aos pedidos de mulheres grávidas é completamente legal. Nos termos das leis federais dos Estados Unidos, as empresas não necessariamente precisam ajustar o trabalho das mulheres grávidas, mesmo quando existam tarefas mais leves disponíveis e que os médicos que as atendem lhes forneçam atestados médicos nesse sentido.

A Lei contra a Discriminação na Gestação é a única lei federal cujo objetivo é proteger gestantes em seus locais de trabalho. O texto tem quatro parágrafos e foi promulgado há 40 anos. Afirma que uma empresa só tem a obrigação de atender aos pedidos das mulheres grávidas se já fizer o mesmo no caso de outros trabalhadores que sejam semelhantes em sua capacidade ou incapacidade de trabalhar.

Isso significa que empresas que não aliviem a situação de qualquer trabalhador não têm a obrigação de fazê-lo quanto às mulheres grávidas. Empregados dizem que é assim que a atual dona do armazém, a XPO Logistics, opera.

Em todas as sessões legislativas federais desde 2012, um grupo de legisladores dos Estados Unidos vem propondo um projeto de lei que faria pelas mulheres grávidas a mesma coisa que a Lei dos Americanos Portadores de Deficiência faz pelos deficientes: exigiria que os empregadores acomodassem as necessidades daqueles cuja saúde depende disso. O projeto de lei jamais entrou em pauta.

"Essas acusações nos incomodam profundamente", disse Rich Young, porta-voz da Verizon. "Não temos tolerância para com o tipo de comportamento mencionado". Ele disse que a empresa havia iniciado uma investigação interna, em resposta a pedidos de informações apresentados pela reportagem.

"Nenhuma das acusações é compatível com nossos valores ou as expectativas e exigências que temos quando aos prestadores de serviços que trabalham diretamente conosco ou têm qualquer forma de afiliação conosco".

"Estamos surpresos pelas afirmações sobre conduta que ou precede a aquisição das instalações de Memphis pela XPO ou não foi reportada à direção da empresa depois que as adquirimos em 2014", disse Erin Kurtz, porta-voz da XPO. 

Chasisty Bee segura um cobertor de bebê em memória do aborto espontâneo de 2014, em Memphis, Tennessee, 8 de outubro de 2018
Chasisty Bee segura um cobertor de bebê em memória do aborto espontâneo de 2014, em Memphis, Tennessee, 8 de outubro de 2018 - NYT

Ela disse que as afirmações não foram substanciadas, estão eivadas de imprecisões e não refletem a maneira pela qual nossas instalações em Memphis operam. A empresa também contestou a descrição de que o armazém não tem janelas, afirmando que existem algumas janelas internas.

Kurtz disse que a XPO priorizava a segurança de seus trabalhadores, não tolerava qualquer comportamento discriminatório e havia melhorado os salários e benefícios de seus trabalhadores nos últimos anos.

As melhoras não ajudaram Ceeadria Walker quando ela engravidou. Walker, 19, disse que entregou ao seu chefe na XPO um atestado médico da clínica OB/GYN Centers of Memphis, afirmando que ela não estava autorizada a erguer pesos de mais de sete quilos. Ela disse que pediu para ser transferida a uma área com itens mais leves. Walker diz que seu chefe a encaminhava frequentemente a uma esteira de transporte onde ela precisava erguer peso superior ao autorizado. Ela sofreu um aborto espontâneo um dia depois de passar seu turno de trabalho erguendo caixas pesadas.

"O aborto espontâneo sofrido por Walker meses atrás nos entristece", disse Kurtz. "Estamos investigando as mais recentes reclamações".
 

Os riscos de levantar peso

Para a maioria das mulheres, é seguro trabalhar durante a gestação.

Mas existe um risco ligeiro ou modesto de aborto espontâneo para as mulheres que precisem levantar peso frequentemente em seus trabalhos, de acordo com normas publicadas este ano pelo Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas. As recomendações da organização servem para recomendar as melhores práticas aos médicos da área.

Os perigos potenciais são maiores para as mulheres cujas gestações já são classificadas como de alto risco, o que explica por que os médicos muitas vezes aconselham que elas recebam tarefas mais fáceis.

"Quando os empregadores ignoram as recomendações médicas, eles podem estar colocando em risco a saúde da paciente", disse Rachel Jackson, chefe de ginecologia e obstetrícia no San Francisco General Hospital. "É especialmente incômodo para nós que isso esteja acontecendo com mulheres cujos empregos requerem esforço físico, já que elas sofrem o maior risco de se ferirem ou de prejudicar sua gestação".

Os armazéns estão entre os locais de trabalho que mais crescem nos Estados Unidos, e empregam mais de um milhão de americanos. O varejo, que concorre com empresas como a Amazon, exige alta velocidade a baixo custo.

O armazém da Verizon, cujo controle passou à XPO quando esta adquiriu a New Breed Logistics em 2014, é o único no qual o The New York Times entrevistou trabalhadoras sobre discriminação na gestação. Os turnos de trabalho podem durar até 12 horas, na instalação. Os trabalhadores têm uma pausa de 30 minutos para o almoço, e um máximo de três outras pausas de 15 minutos.

O manual de empregados da XPO para 2017 alerta que fazer pausas não autorizadas, chegar atrasado ou sair mais cedo podem resultar em demissão imediata, a menos que o motivo da ausência seja protegida pela lei. A Lei contra a Discriminação na Gestação não garante esse tipo de proteção às mulheres.
 

Impasse

Um grupo bipartidário de legisladores propôs atualizar a Lei contra a Discriminação na Gestação, que data de 1978. O novo projeto de lei compeliria empresas a acomodar as necessidades das mulheres grávidas –por meio de mais pausas ou tarefas mais leves, por exemplo– desde que isso não imponha dificuldades indevidas aos seus negócios. É a mesma formulação usada na Lei dos Americanos Portadores de Deficiência.

As mulheres não deveriam ser forçadas a escolher entre ir a uma consulta médica ou perder o emprego, disse o deputado Dean Heller, republicano de Nevada, um dos 125 signatários do novo projeto de lei na Câmara dos Deputados e no Senado.

Em 2015, o projeto parecia estar ganhando força. A Suprema Corte havia acabado de decidir em favor de Peggy Young, motorista da UPS que solicitou deveres mais leves quando grávida, mas teve seu pedido negado.

No entanto, alguns republicanos, entre os quais o senador Lamar Alexander, do Tennessee, onde fica o armazém da XPO, consideraram que o projeto aumentava e confundia ainda mais a regulamentação, de acordo com senadores do Senado. Alexander, que preside o comitê de saúde e trabalho do Senado, copatrocinou um projeto alternativo, que expandiria as proteções a mulheres grávidas em alguns casos. Mas o texto ainda permitiria que os empregadores recusassem os pedidos das gestantes caso não atendessem a pedidos de outros trabalhadores, em condições semelhantes.

"Foi um recurso útil a fim de reduzir o ímpeto que o primeiro projeto vinha ganhando", disse Emily Martin, do National Women’s Law Center, uma organização que defende os direitos das mulheres.

Ambos os projetos de lei estão paralisados.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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