Descrição de chapéu
Carlos Maranhão

A chama que se apaga

Roberto Civita errava em suas previsões, em geral com um otimismo que beirava a ingenuidade

Há pessoas que têm insights. São capazes de perceber, com sua intuição, o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer. Roberto Civita era uma delas. Errava em suas previsões, em geral com um otimismo que às vezes beirava a ingenuidade —seu pai achava isso dele–, mas não raro acertava na mosca.

Uma dessas ocasiões foi em nossa última conversa, no dia 8 de fevereiro de 2013. Havíamos combinado escrever juntos as suas memórias. Tivemos oito sessões de entrevistas gravadas, nas quais fiz perguntas sobre sua trajetória pessoal e profissional em ordem cronológica. Esse material serviria, mais tarde, como ponto de partida para a biografia independente Roberto Civita, o dono da banca (Companhia das Letras, 2016). 

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Roberto Civita, durante entrega do Prêmio da revista Cláudia, em 2012 - Zanone Fraissat/Folhapress

No nosso derradeiro encontro, o empresário e publisher —como gostava de ser chamado— que dirigira a lendária revista Realidade em seu primeiro e mais brilhante ano de vida, para depois participar diretamente da criação de Veja, em 1968, e de inúmeros empreendimentos, bem ou mal sucedidos, quebrou o padrão do depoimento que combináramos seguir.

Sem que eu lhe indagasse e avançando décadas na própria história, em uma súbita necessidade de queimar etapas, enquanto tomávamos café e bebíamos água ao lado de uma das imensas janelas de sua grande sala no 26º andar do Novo Edifício Abril, com vista para o Rio Pinheiros, ele começou a falar sobre o seu legado.

Quatro dias depois, ele se internaria no Hospital Sírio Libanês para o que seria um procedimento aparentemente simples e de baixo risco: a colocação de uma prótese via endovascular.

Ele estava tão confiante que, 48 horas antes da cirurgia, foi para o Rio de Janeiro com a mulher para assistir ao desfile das escolas de samba no camarote de “Caras”, publicação da qual era sócio. Ao voltar a São Paulo, na segunda-feira do Carnaval, foi comer peixe em um restaurante perto de casa, no Jardim Europa, tomou uma garrafa de vinho branco italiano e, na manhã seguinte, entrou no hospital, faceiro e confiante como sempre.

Não deu certo. RC, como era tratado, sofreu uma hemorragia devastadora , ficou internado durante 104 dias, quase sempre inconsciente, e morreu no dia 26 de maio.

Com ele, a Abril que o país conheceu —que chegou a ser a maior editora de revistas da América Latina e dona da segunda maior semanal de informações do mundo— começaria a agonizar de forma tão lenta e dolorosa como ele.

Passados menos de seis anos, parece cada vez mais claro que ele pressentia os riscos do fim no horizonte. Embora não dissesse, sabia que não conseguira, ao contrário dos patriarcas de outros conglomerados de comunicação, casos da Folha, do Estadão, do Grupo Globo e do The New York Times, transmitir aos três filhos o que herdara do pai, Victor Civita: a paixão, a imensa paixão pelo negócio, que na sua ótica se confundia com uma missão.

“Se você olhar o que acontece com as grandes empresas mundo afora, poucas sobrevivem muito tempo aos seus fundadores”, ele disse pausadamente, de forma articulada, como se ditasse um testamento.

“São absorvidas, vendidas, se fundem e perdem sua identidade. É difícil, especialmente difícil se não houver uma família envolvida, que queira manter a chama acesa.”

Pediu mais um café, colocou o adoçante e —sem parecer ​convicente—  disse esta frase:

“Espero que a Abril continue por décadas e décadas”.

Só então eu lhe perguntei:

“Acredita e confia nisso?”
Ele respondeu praticamente sem pensar:

“Não. Eu torço”.

O insight foi perfeito. A torcida, infelizmente, seria inútil. RC e aquela admirável empresa, que ajudou a se tornar um gigante do universo das revistas, são agora apenas uma lembrança para todos nós que colaboramos com eles.

Carlos Maranhão é jornalista, autor de “Roberto Civita, o dono da banca”, e trabalhou durante 42 anos na Editora Abril
 

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