Descrição de chapéu Governo Bolsonaro DeltaFolha

Bolsonaro deputado contradiz perfil reformista da Previdência

No Congresso, presidente eleito se mostrava resistente a propostas

Anaïs Fernandes Marina Merlo
São Paulo

O perfil reformista da equipe econômica de Jair Bolsonaro (PSL) —sobretudo de seu liberal futuro superministro da Economia, Paulo Guedes— ajudou o então candidato a conquistar a confiança do mercado financeiro e ganhar musculatura para vencer a disputa presidencial.

Para que o voto de confiança não seja uma lua de mel passageira, porém, o presidente eleito deve provar que virou a chave e que a intenção de tocar a principal e mais imediata das reformas, a da Previdência, não ficará só no discurso de campanha.

Cientistas políticos apontam que a tarefa não é fácil. Isso porque seu discurso enquanto deputado federal —posição que ocupou por sete mandatos, de 1991 até este ano— foi contrário a mudanças substanciais no sistema previdenciário nas duas oportunidades em que debateu propostas amplas encabeçadas pelo Executivo.

“Dentro do plenário, Bolsonaro sempre teve uma posição conservadora em relação à reforma da Previdência, porque tinha de defender os interesses da sua principal base de eleitores, os militares. Claro que, hoje, ele virou um fenômeno eleitoral”, afirma Jorge Felix, professor de economia e política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Na sexta-feira (30), Bolsonaro voltou a falar sobre reforma em tom crítico à proposta feita pelo presidente Michel Temer. “Não podemos querer salvar o Brasil matando idoso”, disse durante visita a um centro católico em Cachoeira Paulista (SP).

Em 2003, o deputado federal Jair Bolsonaro segura um cartaz com a expressão "Partido dos Traíras", em alusão ao PT, no plenário da Câmara dos Deputados
Em 2003, o deputado federal Jair Bolsonaro segura um cartaz com a expressão "Partido dos Traíras", em alusão ao PT, no plenário da Câmara dos Deputados - Alan Marques/Folhapress

A Folha mapeou 943 discursos feitos por Bolsonaro em plenário e disponíveis no site da Câmara. Desde 2000 (primeiro ano em que o material foi sistematizado), 33 deles continham trechos sobre mudanças na Previdência.

A maior parte diz respeito às discussões em torno da reforma proposta pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu primeiro ano de mandato, em 2003, à qual Bolsonaro se opôs com veemência.

“Com tanta esperança o povo brasileiro elegeu Lula para presidente, mas em tão curto espaço de tempo o governo mostra sua verdadeira face: a da traição”, disse Bolsonaro, à época no PTB, em março daquele ano, destacando, no entanto, que não era oposição.


18 de março de 2003
“A reforma da Previdência, como está sendo proposta pelo governo do PT, visa apenas a duas coisas: fazer a alegria dos empresários do segmento da previdência privada a longo prazo e conseguir economia de caixa a curto prazo para fazer ​superávit primário; ou seja, retirar dos já miseráveis aposentados para pagar juros a banqueiros.”


“Lamento ver velhos companheiros do PT, que no passado lutavam contra o que ela [reforma] dispõe, agora mudarem radicalmente de posição e considerarem essa proposta pacote fechado”, comentou em maio daquele ano.

A emenda à Constituição aprovada em 2003 mexeu sobretudo na aposentadoria dos servidores públicos. Alterou o cálculo do benefício, que deixou de ser equivalente ao salário integral da ativa, criou um teto para funcionários estaduais e federais e passou a cobrar contribuição também do aposentado.

Na tribuna, Bolsonaro dizia que a proposta do governo petista era covarde, desumana e imoral e que massacrava os servidores. Ele criticava o fim da paridade de reajuste entre ativos e inativos e o teto para pensões.

“A proposta de reforma da Previdência é descabida do começo ao fim. E ninguém me fará votar favoravelmente a um só artigo dessa PEC”, afirmou em junho.

Em relação à proposta da era Lula, Bolsonaro disse que havia “grave ameaça de inclusão dos militares no regime do INSS” e de aumento do tempo mínimo de serviço de 30 para 32 anos.

Além de elevar o tempo de contribuição da categoria, o governo Lula pretendia acabar com resquícios das pensões vitalícias para filhas de militares. Desde 2001, o benefício não valia para os ingressantes nas Forças Armadas, mas quem entrou na vida militar até 2000 manteve o pagamento.

A pressão da categoria foi tamanha que os militares não entraram na reforma de Lula. 
Entre 2003 e 2016, ano em que o governo recém-assumido pelo até então vice Michel Temer iniciou tentativas para emplacar uma nova reforma, Bolsonaro não titubeou na defesa persistente para manter os militares de fora.

“Ele sempre soube que, depois de alterações aos servidores públicos civis, os militares seriam os próximos. Por isso, vinha adotando a estratégia de ir atrasando cada passo da reforma”, afirma Felix.
Em agosto de 2016, Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil, anunciou que os militares seriam poupados de uma reforma da Previdência, desta vez na de Temer.


18 de março de 2003
“Hoje desfaz-se o mito do PT: tudo o que eles defendiam no passado nada mais era que uma enganosa propaganda para chegar ao poder. Afirmo que não sou oposição, mas jamais sentir-se-ia à vontade em ser situação num governo em que a palavra nada vale.”


O governo queria unificar os sistemas dos setores privado e público, aumentando, por exemplo, idades mínimas para se aposentar.

Um dia após o anúncio de Padilha, Bolsonaro, então no PSC, disse que o governo mandava aos militares um sinal de “fiquem tranquilos”. “Ficar tranquilos como?”, questionou.

Como deputado, Bolsonaro usou argumentos caros às Forças Armadas para preservar o status quo da categoria. Disse, por exemplo, que “não existe Previdência militar”.

Tecnicamente, militares não se aposentam, vão para a reserva, o que significa que eles podem ser convocados novamente a qualquer momento. Além disso, militares não recolhem para a Previdência, e toda a contribuição é feita pela União.

Em 2017, a Previdência Social registrou um déficit recorde de R$ 268,8 bilhões, considerando os resultados do INSS e do regime dos servidores públicos.


8 de maio de 2003
“Confesso que, se essa reforma fosse proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso, já seria difícil acreditar, mas apresentada por este governo, massacrando os servidores civis, logo essa classe que, em quase sua totalidade, votou no governo Lula, assim como os militares da União, é ainda pior.”


Só o resultado do funcionalismo apresentou um déficit de R$ 86,3 bilhões, sendo R$ 37,7 bilhões dos militares.

“Os militares representam cerca de 45% do rombo da Previdência do setor público. Se a grande justificativa para  defender a reforma é a fiscal, esse ponto deveria ser abordado”, diz Felix.

Até poucas semanas atrás, Bolsonaro e Guedes diziam alimentar a esperança de que ao menos alguma coisa da reforma de Temer fosse aprovada em 2018. A expectativa subiu no telhado, e a equipe deve apresentar um novo texto em 2019. Procuradas, as assessorias de Bolsonaro e Guedes não se manifestaram.


21 de maio de 2003
"Posso não ter grande história, mas não vou manchar a pequena que tenho; não vou trair minha consciência, tampouco sujar minhas mãos, para não dizer meus dedos, votando favoravelmente a qualquer um dos itens da PEC nº 40.”


Antes do segundo turno, o coronel Elias Miler da Silva, diretor de Assuntos Legislativos da Feneme (Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais), chegou a dizer que os militares poderiam aceitar uma idade mínima.

Em outra frente, no entanto, governadores eleitos sinalizaram ressalvas a possíveis mudanças e indicaram que podem não dar suporte integral à proposta. Esse apoio é considerado importante porque eles têm poder de negociação com deputados e senadores.


9 de julho de 2003
“Por mais que discorde historicamente das posições do PT, tenho certeza de que ninguém pode praticar estelionato eleitoral para chegar ao governo. Não é possível mandar cartas, discursar contra a reforma da Previdência e, quando aqui chega, apresentar uma proposta mais draconiana ainda do que seu antecessor!”


Para Maria do Socorro Sousa Braga, do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), o rumo das discussões dependerá das interlocuções que Bolsonaro conseguir travar com categorias.

“Hoje, vejo uma tendência de setores do centro e do centro-direita formarem uma base de apoio ao governo. Mas vemos um realinhamento de forças político-partidárias grande, então precisamos acompanhar que novo desenho do sistema será esse”, afirma.


8 de agosto de 2016
“Eu não posso admitir que o governo anuncie um pacote de maldades contra nós. Isso é inadmissível! É uma covardia! É por isso que eu sou candidato a presidente em 2018, entre outras coisas. Não estou preocupado em me eleger, não, mas eu quero, mais bem preparado, discutir os assuntos ao vivo.”

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