Carlos Ghosn busca desafiar estatísticas e execração pública do Japão

Judiciário japonês autoriza a Promotoria a manter um suspeito preso indefinidamente

Angelo Ishi
Tóquio

Uma chance em 3.333, ou 0,03%. Esta seria, segundo as estatísticas, a probabilidade de Carlos Ghosn ser inocentado pela Justiça japonesa. Segundo o relatório anual do Ministério da Justiça, de 320.488 julgados em 2016, somente 104 foram inocentados.

O sistema judiciário japonês autoriza a Promotoria a manter um suspeito encarcerado por 23 dias (três dias de procedimentos burocráticos da polícia e da Promotoria, mais 20 dias de cárcere), mas o período pode ser estendido de forma ilimitada.

O atual recordista da detenção antes do julgamento é o parlamentar Muneo Suzuki. Acusado de corrupção em 2002, Suzuki continuou negando as acusações. Ficou preso por 437 dias.

Entrevistado em um programa do canal Abema TV, Suzuki recordou que a pressão psicológica dos interrogatórios é descomunal. "Descobriram que o meu ponto fraco era a minha filha, e o interrogador trouxe um recorte de jornal em que ela falava o quanto estava aflita com meu encarceramento. Tudo para eu assinar logo uma confissão."

No mesmo programa, o advogado Toru Hashimoto, ex-governador de Osaka, criticou o sistema, em que o suspeito não pode contar com um advogado no interrogatório.

A palavra enzai (condenar inocentes) é tão popular no Japão que virou tema de um filme de grande repercussão: "Mesmo assim eu digo: sou inocente" (título em inglês "I just didn't do it"). Baseado em fatos reais, o filme de 2007 do cineasta Masayuki Suo questionava a condenação de um acusado de assédio sexual.

Em debate publicado no site analítico Nippon, o professor emérito da Universidade Hitotsubashi, Toshio Murai, afirma que é excessivamente forte na Promotoria japonesa a ideia de que "não se deve deixar de condenar nenhum culpado". "Isso faz com que o princípio de jamais condenar um inocente mesmo que se deixe escapar cem criminosos seja negligenciado."

Além da teoria segundo a qual a Nissan desejaria expulsar Ghosn para evitar que ele levasse avante a unificação com a Renault, circula na imprensa japonesa a tese de que o executivo é o bode expiatório em uma tática da Promotoria para divulgar o potencial da "delação premiada", introduzida em junho no Japão.

Uma pessoa da Promotoria rebate as críticas. Diz que nenhum promotor deseja estender o período de interrogatórios além do necessário.

A mesma pessoa diz ainda que os interrogatórios são gravados em áudio e vídeo, de modo a permitir a checagem posterior por terceiros. Os interrogatórios de Ghosn estão sendo feitos por um promotor fluente em inglês, sem presença de tradutor-intérprete.

A repercussão internacional do caso pode pesar tanto a favor como contra Ghosn.

O ponto que o beneficia é que, mesmo com a opinião pública japonesa favorável, dificilmente a Promotoria poderia estender indefinidamente a prisão de Ghosn como fez com o parlamentar Suzuki.

O ponto contrário é que, com os olhos do mundo voltados para o caso, condenar Ghosn virou questão de honra para a Promotoria. Como têm alertado vários analistas, se Ghosn terminar inocentado, não é só a Nissan que vai sair desgastada, a Justiça japonesa ficará desmoralizada.

O caso Ghosn está sendo um teste de fogo também para a imprensa japonesa.

Como afirma o tablóide Nikkan Gendai, "os jornais se reduziram a porta-vozes das informações vazadas pela Promotoria e pela Nissan".

Mesmo os diários de maior prestígio têm soltado uma notícia para, logo em seguida, desmenti-la. Foi o caso do jornal econômico Nihon Keizai, que se apressou a dar como certo o nome do presidente da Nissan Hiroto Saikawa como sucessor de Ghosn, o que não se concretizou.

Desde as primeiras manchetes, jornais e tevês têm alimentado a execração pública de Ghosn. O primeiro a publicar editorial a respeito foi o Tokyo Shimbun: "Em um país onde o abismo social aumenta, a punição severa dos ricos que roubam é bem-vinda".

O editorial do Mainichi Shimbun estampou o título: "As distorções decorrentes de uma longa ditadura", criticando o longo reinado de Ghosn.

O Yomiuri, diário de maior circulação no país, foi mais longe: enquanto os outros tratam Ghosn como "suspeito" (yoogisha), o jornal tem se referido a ele como "réu" (hikoku), termo usado para quem já está sendo julgado.

Na televisão, vários canais entrevistaram funcionários que perderam o emprego porque trabalhavam nas fábricas fechadas por Ghosn, logo que ele assumiu o comando da Nissan e cortou custos.

Só se encontram vozes destoantes nos tabloides e semanários. O mais contundente é o Jitsuwa Bunka: "Empresa apodrecida Nissan crucifica o inocente Ghosn".

O Toyo Keizai, por sua vez, traz a opinião do advogado Nobuo Kohara, segundo o qual Ghosn seria inocente porque "o que houve foi um acordo sobre pagamento futuro, algo que poderia não se concretizar caso a Nissan caísse no vermelho".

E o Shukan Diamond faz uma simulação de todos os desfechos possíveis, que variam desde uma pena de até dez anos de prisão para Ghosn até a sua total absolvição, com direito a requerer indenização e pagamentos retroativos à Nissan. 

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