Descrição de chapéu The New York Times

Como o vídeo de retrospectiva anual do YouTube deflagrou guerra na internet

Questão que incomodou tantos usuários tinha a ver com aquilo que o vídeo não mostrava

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Nova York | The New York Times

Você talvez imagine que a melhor maneira de fazer um vídeo de sucesso no YouTube seja reunir um elenco de YouTubers muito famosos, filmá-los falando sobre alguns dos temas mais comentados do ano no site, e lançar o resultado como um vídeo de retrospectiva anual.

Não é bem assim.

O YouTube testou a teoria esta semana, lançando sua retrospectiva anual "YouTube Rewind". O vídeo de oito minutos estava repleto dos momentos de meta-humor que caracterizam o serviço de vídeo, estrelados por alguns dos YouTubers mais conhecidos (Ninja! The Try Guys! Bongo Cat!) e por celebridades convencionais (Will Smith! Trevor Noah! John Oliver!). O vídeo é ágil e limpinho, com muitas referências ao popular videogame "Fortnite", menções a formatos populares de vídeo, e elogios sentimentais à diversidade e inclusão que caracterizam o YouTube.

Cena do vídeo de retrospectiva anual do YouTube
Vídeo de retrospectiva anual do YouTube deflagrou uma guerra nas redes - Reprodução

A ideia era celebrar de um jeito positivo as coisas mais criativas que rolaram no YouTube este ano, mas o vídeo deflagrou uma tempestade e gerou uma campanha entre os usuários pedindo votos contra ele, que se tornou meme por direito próprio. Em 48 horas, mais de quatro milhões de pessoas haviam votado para expressar seu "dislike" pelo vídeo. Na quinta-feira, ele bateu o recorde de "dislikes" na história do site, ultrapassando a marca dos 10 milhões de votos negativos, e superando o detentor anterior da marca, o vídeo de "Baby", de Justin Bieber.

A questão que incomodou tantos usuários do YouTube tinha a ver com aquilo que o vídeo não mostrava.

Muitos dos momentos mais notáveis do YouTube este ano –como a luta de boxe entre KSI e Logan Paul, dois YouTubers famosos que se enfrentaram em um combate muito divulgado em agosto– não foram mencionados. E alguns YouTubers conhecido estiveram ausentes, entre os quais Felix Kjellberg, mais conhecido como "PewDiePie", um dos mais populares entre os criadores de vídeos na história do YouTube, incluído nas retrospectivas do site até 2016.

Alguns YouTubers gostaram do vídeo. Mas, para muitos deles, a retrospectiva parecia uma prova de que o YouTube como empresa estava esnobando o YouTube como comunidade, ao destacar celebridades convencionais, além dos criadores que se desenvolveram na própria plataforma, e ao desconsiderar momentos importantes do site este ano em troca de cenas mais palatáveis para os anunciantes.

"O vídeo não tem qualquer conexão com a comunidade e seus criadores",disse Kjellberg, que definiu a retrospectiva  como "um desastre", em um vídeo que postou no YouTube.

Ethan Klein, outro YouTuber popular, postou um vídeo intitulado "é hora de acabar com o YouTube Rewind".

Marques Brownlee, criador de vídeos para o YouTube que fez parte da retrospectiva e subsequentemente produziu um vídeo intitulado "O problema do YouTube Rewind", explicou, com mais calma, que a questão primária do vídeo era que ele tentava satisfazer duas audiências incompatíveis - os criadores de vídeos, que queriam que a retrospectiva refletisse a amplitude das produções disponíveis no serviço, e os anunciantes, que precisavam ser reassegurados de que a plataforma é um lugar seguro em que investir suas verbas.

Andrea Faville, porta-voz do YouTube, afirmou em comunicado que "superar 'Baby' nas rejeições não era exatamente o nosso objetivo este ano". Ela acrescentou que "feedback honesto pode ser doloroso, mas estamos atentos, e apreciamos o fato de que as pessoas se importem tanto. Tentar capturar a magia do YouTube em um só vídeo é como tentar guardar um relâmpago dentro de uma garrafa. Também aprendemos que criar conteúdo pode ser realmente difícil, e isso sublinha nosso respeito e admiração pelos criadores do YouTube que o fazem a cada dia".

Faville também incluiu como parte da mensagem uma imagem animada do SpongeBob SquarePants. A decisão do YouTube de restringir o vídeo a conteúdo seguro para menores é compreensível. Os anunciantes estão preocupado com a plataforma desde que surgiram revelações, no ano passado, de que os algoritmos do YouTube haviam colocado alguns anúncios ao lado de conteúdo extremista e racista. Isso levou diversos grandes anunciantes a retirar anúncios do YouTube. A empresa então adotou normas severas de monetização, limitando os vídeos autorizados a faturar dinheiro por meio de publicidade, e gerando outro conflito com os criadores, que definiram o momento como "adpocalypse" [combinação entre "ad", anúncio, e apocalipse].

Desentendimentos entre o YouTube e os criadores de vídeos do site não são novidade. Mas a controvérsia sobre a retrospectiva deste ano indica problemas maiores no serviço de vídeo, que vem tentando se promover como um baluarte da criatividade e inclusão, e ao mesmo tempo sofre acusações de radicalizar toda uma geração de jovens ao encaminhá-los a conteúdo extremista, e de permitir que falastrões reacionários e proponentes de teorias de conspiração dominem a plataforma.

Os esforços do YouTube são complicados pelo fato de que a plataforma de fato abriga muitos criadores diversos e interessantes, que produzem vídeos persuasivos. Mas há momentos em que se torna difícil ouvir essas vozes por sobre o rugido de figuras incendiárias. A retrospectiva não menciona Alex Jones, fundador do site de teorias de conspiração Infowars, que construiu um império no YouTube com milhões de assinantes, gerando mais de 1,6 bilhão de views para seus vídeos. Tampouco houve menção ao grupo de YouTubers políticos que formam aquilo que Rebecca Lewis, do Data & Society Research Institute, define como uma "rede de influência alternativa" no YouTube, um conjunto influente de criadores de vídeos que usam a plataforma da empresa para promover ideias associadas à extrema direita.

O YouTube tomou medidas admiráveis nos últimos 12 meses para limpar sua plataforma. Alguns meses atrás, excluiu Jones e o Infowars por retórica do ódio, e tentou manter os vídeos de teoria da conspiração fora de seus resultados de busca e de suas listas de vídeos mais visitados, principalmente nos momentos que sucedem a veiculação de notícias urgentes.

Mas pessoas como Kjellberg e Paul - astros que se tornaram famosos no YouTube e continuam a atrair dezenas de milhões de visitantes a cada mês –têm um relacionamento persistentemente disfuncional com a plataforma. O YouTube não quer endossar o comportamento deles em suas promoções oficiais, mas tampouco deseja alienar as audiências grandes e apaixonadas que atraem. E porque não existem outras plataformas capazes de rivalizar com as grandes audiências e o potencial de faturamento que o YouTube oferece a esses criadores, eles ficam presos em uma espécie de purgatório insatisfeito, e produzem vídeos magoados sobre como o YouTube os maltrata, mas ao mesmo tempo cuidam de não cruzar linhas que possam resultar em sua exclusão do site, ou os impeçam de ganhar dinheiro com seus vídeos.

Essa tensão –entre a autoimagem do YouTube como um espaço tolerante e empoderador e as pessoas por trás de boa parte do conteúdo mais popular na plataforma– tem posição central na controvérsia sobre o vídeo de retrospectiva do YouTube. Se o serviço de vídeo estivesse tentando criar um retrato acurado dos rostos mais visíveis em sua plataforma, teria de incluir extremistas, reacionários e moleques cujo único objetivo é chocar. Uma retrospectiva do YouTube que inclua apenas imagens de tolerância e pluralismo é mais ou menos como se o Weather Channel incluísse apenas imagens de dias ensolarados em suas reportagens sobre meteorologia - ainda que essas imagens sejam muito mais agradáveis, elas não refletem a realidade do clima.

Não há coisa alguma de errado em que o YouTube use seu vídeo de final de ano para mostrar o bom trabalho que vem sendo feito em sua plataforma. Mas é lamentável que, para fazê-lo, a plataforma precise excluir do roteiro parte tão grande de sua história recente. Talvez, em lugar de buscar contentar a todos com seu vídeo de retrospectiva, a melhor resposta, no ano que vem, seja agir de forma a tornar a empresa mais parecida com a versão de si mesma que ela escolheu exibir na retrospectiva deste ano, a plataforma que ela claramente desejaria ser.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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