Mercado editorial teme efeito cascata de dívida bilionária de Saraiva e Cultura

Pequenos e médios editores têm alta dependência dos negócios com as megarredes de livrarias

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São Paulo

Editoras pequenas e médias temem ser arrastadas pela crise financeira das duas maiores livrarias do país, Cultura e Saraiva.

As empresas, que pediram recuperação judicial em outubro e novembro, respectivamente, acumulam, juntas, dívidas de quase R$ 1 bilhão.

A avaliação é que as gigantes do varejo concentraram negócios demais, deixando uma parte da cadeia editorial dependente, com impactos sobre distribuidores de livros.

Algumas editoras chegavam a ter 40% de seus faturamentos focados na Saraiva.

Para Marcos da Veiga Pereira, sócio da editora Sextante e presidente do Snel (sindicato dos editores), mesmo conscientes do crescente endividamento na Cultura e na Saraiva, havia entre os fornecedores de livros a sensação de que eram "grandes demais para quebrar".

Para empresas de menor porte, pequenas e médias distribuidoras, o cenário é delicado. A editora Ladmark entrou com um processo judicial contra a Saraiva, que lhe deve R$ 169,7 mil.

Na ação, aberta antes do pedido de recuperação, o selo afirma que a sua maior preocupação são os 10.126 mil livros em consignação que ainda estão em posse da livraria.

A editora tem em seu catálogo livros de Charles Dickens, Júlio Verne, Virginia Woolf e Joseph Conrad. "Caso não consiga recuperar seus livros deixados em consignação, sofrerá severos prejuízos", afirma a editora no processo.

A editora Oficina de Textos tem a receber R$ 295,8 mil da Saraiva. Especializada em livros universitários e profissionais, diz no processo judicial que move contra a livraria que, em razão da inadimplência, se encontra em uma situação de risco.

"A experiência jurídica mostra que esse tipo de processo beneficia somente a empresa recuperada e as instituições bancárias, em detrimento da vasta maioria dos credores", diz.

A presidente da Editora Gente, Rosely Boschini, prevê falências de editoras pequenas que estiverem com crédito elevado. "Antes da recuperação judicial, havia uma aposta de que estavam recuperando o fôlego. Então, pegaram muito livro consignado", diz.

Além do peso das dívidas que deixaram com editores ao pedir recuperação judicial nos últimos meses, as grandes redes varejistas Saraiva e Cultura ainda mantêm em seus estoques milhares de livros cedidos em consignação.

Esse é o sistema pelo qual o editor disponibiliza suas obras às livrarias, mas só recebe o pagamento depois da venda ao consumidor final. O que não é vendido pode ser devolvido ao fabricante.

O modelo de consignação é uma especificidade do varejo de livros e revistas que não é praticado em outros setores, como vestuário, alimentos, farmacêuticos ou outros bens de consumo, segundo Eduardo Terra, presidente da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo).

Sem ter de comprar seu próprio estoque, as varejistas de livros não precisam empatar capital de giro, uma condição favorável que se soma a outras características do segmento, como bons prazos para pagar aos fornecedores, de acordo com Terra.

Esses fatores permitiram a preservação da saúde dos negócios e um período de expansão das duas líderes de mercado, que durou mais de uma década.

No período, Cultura e Saraiva obtiveram financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a abertura de novas lojas em shoppings e em outros estados, além de São Paulo.

O cenário mudou quando a Amazon ingressou na venda de livros físicos no Brasil, em 2014, com musculatura financeira para não precisar fazer consignação com editores.

A nova concorrente instalou uma guerra de preços entre livrarias físicas e o comércio online.

"A Amazon não consignava. Ela comprava e ainda pagava mais para os editores. E depois vendia barato ao consumidor final. Saraiva e Cultura foram, então, atacadas em um momento em que houve um outro complicador: a crise econômica", diz Terra.

O Ebtida (lucro antes de juros, impostos, amortizações e depreciações) da Livraria Cultura caiu de R$ 21 milhões em 2013 para um Ebtida negativo de R$ 77 milhões em 2017.

Os primeiros sinais de fragilidade das varejistas brasileiras começaram em 2016, com o atraso de pagamentos e tentativas de renegociação. A despeito disso, muitas editoras mantiveram o sistema de consignação com as duas.

"Ao acreditar que a Saraiva seria capaz de se recuperar, nós aumentamos nossa exposição na empresa e estamos hoje tendo de assumir um prejuízo 80% maior do que se tivéssemos tomado a decisão, em abril, de passar a fazer só fornecimento à vista", disse Marcos da Veiga Pereira, sócio da Sextante, uma das maiores do setor.

Em julho de 2017, a Cultura assumiu as lojas da Fnac no Brasil, quando a francesa decidiu deixar sua subsidiária no país após sucessivas perdas.

Para isso, a Cultura recebeu cerca de R$ 130 milhões da multinacional francesa, uma operação que gerou esperanças no mercado, mas se mostrou malsucedida. Um ano depois, todas as lojas da Fnac foram fechadas.

O espaço para reagir ao impacto de tamanho endividamento de Cultura e Saraiva é maior entre as editoras de grande porte, que têm mais acesso a crédito, e podem se readequar reduzindo o volume de lançamentos.

Foi o que fez o grupo Companhia das Letras, que passou de 350 títulos anuais para 300 e deve cortar mais 15% ou 20% dos livros programados no próximo ano, segundo afirmou o presidente do grupo, Luiz Schwarcz, em entrevista à Folha na segunda-feira (3).

A Gente Livraria e Editora disse à Justiça ter 135.553 exemplares de obras consignadas com a Saraiva, o que, em valores de mercado, significaria R$ 2 milhões.

Considerando ainda os livros já vendidos e não pagos, a dívida da Saraiva com a editora seria de cerca de R$ 3,6 milhões. Aproximadamente 40% do seu faturamento, de acordo com informações que prestou à Justiça, estava concentrado na mão da livraria.

Outra empresa muito preocupada com a situação é a Ciranda Cultural, especializada em livros infantojuvenis.

À Justiça declarou que a Saraiva lhe deve cerca de R$ 1,5 milhão e ainda retém, em consignação, cerca de R$ 2,3 milhões em mercadorias.

"A perda de tal valor pode incidir em prejuízo que inviabilize a continuidade de sua atividade", disse no processo, acrescentando que já amarga prejuízos da ordem de mais de R$ 730 mil com a recuperação judicial da Cultura.

O rombo trazido pelas recuperações judiciais das duas livrarias também atingiu distribuidores, que agora precisam se entender com as editoras para compartilhar os prejuízos.

Roberto Novaes, diretor da Catavento Distribuidora, credor da Saraiva em cerca de R$ 2,6 milhões, diz que "segurar o baque sem o apoio das editoras seria suicídio". Ele calcula que os negócios com Cultura e Saraiva correspondam a 25% de seu faturamento.

"Temos de negociar com as editoras porque sempre somos cobrados para colocar os livros delas nas grandes redes. Se recebermos [da livraria] uma proposta de pagamento em dez anos com deságio, essa vai ter de ser a proposta que teremos que passar para o editor", diz Novaes.
 

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