Em Mato Grosso, carros de polícia ficam parados em pátio por falta de pagamento

Locadoras com as quais o governo tem oito contratos para uso de 1.127 veículos cobram R$ 13,5 milhões

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Rodrigo Vargas
Cuiabá

Em Mato Grosso, o agronegócio privado foi símbolo de prosperidade até na recessão, mas a má gestão do caixa público do estado levou à calamidade financeira. 

Hoje, não apenas o pagamento dos servidores está comprometido. A prestação de serviços básicos começa a colapsar, principalmente nas áreas de saúde e segurança.

O retrato mais contundente da crise fiscal está nas centenas de carros policiais recolhidos em um pátio particular, a céu aberto, em Várzea Grande (município vizinho à capital Cuiabá).

As empresas de locação, com as quais o governo mantém oito contratos para uso de 1.127 veículos, cobram cerca de R$ 13,5 milhões em parcelas atrasadas desde a gestão anterior.

Do total, 90 veículos foram retirados das ruas pelas locadoras e outros 70 foram devolvidos pelo novo governo como medida de contenção das despesas.

dezenas de carros de polícia estacionados em pátio, vistos do alto
Carros de polícia em pátio em Várzea Grande; 14% dos veículos estão fora das ruas em Mato Grosso porque o estado não paga o aluguel - Edson Rodrigues/Folhapress

Ou seja, o estado deixou de contar em 2019 com 14% da frota que estava disponível para atividades administrativas e operacionais das forças de segurança do estado.

Nos hospitais regionais, a falta de repasses e o acúmulo de dívidas com fornecedores prejudica o abastecimento de itens básicos, como gaze e esparadrapo.

​Em dezembro passado, médicos do Hospital Regional de Rondonópolis (220 km de Cuiabá) decidiram paralisar o atendimento na unidade em decorrência, segundo afirmaram, de condições precárias de trabalho e atrasos salariais de até quatro meses.

No mesmo período, em Sinop (500 km de Cuiabá), a falta de recursos para o atendimento no Hospital Regional levou à superlotação da UPA (Unidade de Pronto Atendimento), que passou a receber pacientes com quadros de alta complexidade.

Há duas semanas, 60 profissionais que atuam no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) na região metropolitana de Cuiabá ameaçaram cruzar os braços. Eles afirmaram ter mais de três meses de salários atrasados a receber.

A perspectiva de melhora significativa no curto prazo é remota, conforme admitiu o recém-empossado secretário estadual de Saúde, Gilberto Figueiredo. Segundo ele, 25% do Orçamento deste ano está comprometido com restos a pagar.

No decreto de calamidade financeira, aprovado na Assembleia Legislativa nesta semana, o governador Mauro Mendes (DEM) chamou de “gravíssima” a situação fiscal do Estado.

Ele defendeu a necessidade de garantir “a continuidade da atuação estatal”, diante do que chamou de “incapacidade de sustentar, minimamente, a prestação de serviços de qualidade ao cidadão”.

Entre os fatores citados pelo governador está o aumento nominal de quase 700% nas despesas com pessoal efetivo entre 2003 e 2017. A receita corrente líquida, no mesmo período, cresceu 381%.

O cenário de caos financeiro e administrativo contrasta com a expectativa positiva gerada no dia 31 de maio de 2009, quando Cuiabá foi anunciada como uma das 12 sedes da Copa do Mundo de 2014.

Quase dez anos depois, as dívidas contraídas para viabilizar o evento são mencionadas como fatores que contribuem para a calamidade.

A maior parte dos empréstimos, que comprometem R$ 250 milhões anuais dos cofres estaduais, foi empregada nas obras da Arena Pantanal, estádio hoje subutilizado e com elevados custos de manutenção, e do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), que jamais foi concluída.

Autor de relatórios que alertavam para a insustentabilidade do quadro fiscal de Mato Grosso, o conselheiro Luiz Henrique Lima, do Tribunal de Contas (TCE-MT), vê a gastança da Copa do Mundo com o início de uma “sequência desastrosa” para as contas estaduais.

O quadro, segundo Luiz Henrique Lima, foi agravado em 2012 pela decisão de “vender” parte da dívida pública com a União ao Bank of America Merrill Lynch.

A operação envolveu empréstimo de US$ 479 milhões a ser pago em parcelas semestrais corrigidas pelo câmbio.

“Não havia nenhuma cláusula com uma trava cambial. E, quando o contrato foi celebrado, o dólar estava a R$ 2,30.”

Sindicalistas e servidores públicos invadiram o plenário da Assembleia Legislativa na terça-feira (22) para protestar contra pacote - João Vieira/A Gazeta

Seis anos depois, tendo pago ao banco americano R$ 930 milhões, Mato Grosso ainda deve o equivalente a R$ 1 bilhão. “Ou seja, estamos devendo, em valores nominais, mais do que antes da operação.”

O desastre se completou, diz, com a aprovação de leis de planos de cargos e carreiras.

As leis, que previam aumentos reais ao longo de dez anos, foram propostas pelo então governador Silval Barbosa (à época no MDB) nos últimos dias do seu mandato e passaram a vigorar na gestão do sucessor, Pedro Taques (PSDB).As medidas coincidiram com a queda na atividade dos setores industrial e de serviços, as principais fontes de ICMS.

“A agricultura, que cresceu muito, é basicamente voltada à exportação, que é desonerada. Ou seja, nossas despesas subiram e a arrecadação despencou”, disse Lima.Mantido pelo novo governador, o secretário da Fazenda, Rogério Gallo, chefiou a pasta no último ano de Taques.

À Folha disse que Taques assumiu um “estado arrasado” e que fez “o possível” para enfrentar a situação.

“No caso das leis de carreira, por exemplo, existe entendimento consolidado no STF de que se trata de direitos adquiridos.”

Como consequência dessas medidas, a folha salarial cresceu 106% de 2014 a 2018, e as receitas, 43%.

“Houve um descolamento entre o que se arrecada e o que se paga. E isso em gastos obrigatórios.

”Para completar o quadro, a previdência dos servidores fechou 2018 com um déficit superior a R$ 1 bilhão.

Na quinta-feira (24), a Assembleia aprovou um pacote de medidas para recuperar a saúde fiscal do estado.

Além da reedição ampliada do fundo sobre operações sobre produtos como a soja e o algodão, até para a exportação, o governo foi autorizado a extinguir secretarias e empresas públicas e a impor critérios para a concessão de reajustes.

Houve protestos de servidores e ruralistas. Segundo Gallo, as medidas foram pensadas para que, em dois anos, seja alcançado o mínimo de equilíbrio entre receitas e despesas.

Enquanto isso, o governo terá de buscar alternativas para manter a máquina. No curto prazo, buscará o repasse, pelo governo federal, de recursos do FEX, fundo para compensar os estados exportadores dos efeitos da desoneração.“O decreto de calamidade tem um efeito que permite à União repassar a compensação do FEX. Já estivemos com o ministro Paulo Guedes, que nos prometeu colocar o tema como prioridade.

”Outra medida será a renegociação da dívida dolarizada com o Bank of America e o alongamento de empréstimos para obras da Copa.

Procurado, Taques disse, via assessoria, que está em viagem até o fim de janeiro e que não iria se pronunciar até lá.

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