Símbolo do alcance da globalização, reinado de Ghosn na Renault chega ao fim

Executivo rompeu barreiras que antes mantinham as montadoras atracadas nos países de origem

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Nick Kostov
Paris | The Wall Street Journal

A renúncia de Carlos Ghosn como presidente-executivo e do conselho da Renault representa o final de uma carreira que durou décadas e fez dele um símbolo do alcance da globalização, e de seus percalços.

Nesta quinta-feira (24), o conselho da Renault apontou Jean-Dominique Senard, presidente-executivo da Michelin, para suceder Ghosn na presidência do conselho da montadora e promoveu Thierry Bolloré, seu presidente-executivo-assistente, para a presidência-executiva. 

A decisão surgiu depois que o ministro das Finanças da França anunciou que Ghosn havia renunciado aos seus cargos, da cela de prisão japonesa em que está confinado desde novembro.

Ghosn foi acusado pelos procuradores públicos japoneses de declarar remuneração inferior à recebida, nos relatórios financeiros da Nissan, por oito anos, e de ordenar que a Nissan fizesse um pagamento à companhia de um amigo saudita que o ajudou quanto a um problema de finanças pessoal. Ele nega qualquer delito.

Durante seu mandato no comando da Renault e de sua parceira de aliança, a Nissan, Ghosn rompeu barreiras culturais e operacionais que antes mantinham as montadoras de automóveis atracadas em seus países de origem —um feito que muita gente considerava impossível, na época. 

Ao decifrar esse código, ele se tornou exemplo para os executivos automotivos e passou a personificar a globalização, viajando em jatos executivos de continente a continente e ditando metas cada vez mais ambiciosas.

Ghosn é visto por muitos como o salvador da Nissan, mas no mundo empresarial francês, onde sua carreira começou, ele era encarado de modo menos lisonjeiro. 

Nos corredores do governo e nas cidades fabris que pontuam o cenário rural da França, a ascensão de Ghosn veio a ser vista como sinal dos excessos da globalização. 

Ele recebia pagamentos vultosos, pelos padrões franceses, ainda que alinhados aos de muitas empresas multinacionais. Mantinha um foco inflexível em extrair cortes de custos da aliança entre a Renault, a Nissan e a Mitsubishi Motors. E suas viagens constantes significavam que ele dedicava menos tempo a conhecer os operários nas fábricas francesas da montadora.

“Administrar um império tão vasto era um trabalho impossível”, disse Louis Schweitzer, que foi presidente-executivo da Renault por muito tempo e contratou Ghosn em 1996.

Jean-Dominique Senard, novo presidente do conselho da Renault, e Thierry Bollore, novo presidente-executivo, em Boulogne-Billancourt, perto de Paris
Jean-Dominique Senard, novo presidente do conselho da Renault, e Thierry Bollore, novo presidente-executivo, em Boulogne-Billancourt, perto de Paris - Philippe Wojazer/Reuters

O executivo, detido em novembro, diz que sua remuneração era justificada pelo seu desempenho. Seus defensores afirmam que sua personalidade avantajada e sua disposição de trabalhar o dia inteiro eram a cola que mantinha a aliança entre a Renault e a Nissan e Mitsubishi.

“Se você passa seu tempo não falando sobre os benefícios da globalização e em lugar disso se concentrando em alguns dos excessos”, disse Ghosn ao The Wall Street Journal em uma entrevista em 2017, “termina em uma situação na qual as pessoas ficam sem entender.”

A Renault é uma empresa muito diferente do que era quando de sua contratação, 23 anos atrás. Mais internacional e mais lucrativa, ela é a peça central de uma aliança de alcance mundial que produziu mais de 10 milhões de veículos em 2017, ainda que a montadora francesa não venda veículos nos Estados Unidos. 

A Renault detém 43% da Nissan, bem como o poder de indicar alguns dos membros do conselho da montadora japonesa, que, por sua vez, detém 15% das ações da Renault, sem direito a voto.

A saída de Ghosn exacerbou as tensões, e representantes da Nissan estão exigindo uma mudança no balanço de poder dentro da aliança.

Ghosn começou na Renault em 1996, quando a companhia estava a ponto de reportar o maior prejuízo de sua história. Foram seus cortes de custos que ajudaram a Renault a sair do vermelho e acumular as reservas de caixa que usou para cobrir um investimento de US$ 5 bilhões na Nissan em 1999.

Schweitzer enviou Ghosn ao Japão, onde seu trabalho na recuperação da montadora japonesa adquiriu proporções lendárias no setor e lhe valeu a Legião da Honra, uma das maiores comendas francesas, em 2002. Ele logo se tornou conhecido por um estilo de gestão no qual resultados eram o mais importante, e especialmente por sua disposição de revelar metas de lucro e vendas ao mercado —e cumpri-las. 

Ghosn estava no auge quando voltou à Renault, em 2005, como presidente-executivo. A montadora precisava de reestruturação, mas não enfrentava dificuldades financeiras tão graves quanto a Nissan havia enfrentado. Isso tornou a empresa mais resistente a mudanças, e tanto o governo francês quanto os sindicatos se opuseram a cortes de pessoal.

Mesmo assim ele começou a promover cortes de custos, lançando muitos modelos novos e elevando a proporção de vendas da empresa fora da Europa significativamente, e tudo isso sem demissões. 

Ghosn tentou acrescentar a General Motors à aliança Renault-Nissan, mas as negociações com a companhia americana fracassaram.

Quando a crise financeira de 2008 começou, ele postergou a construção de fábricas na Índia e abandonou os planos de construir carros maiores e com margens de lucro superiores. As sinergias com a Nissan, no entanto, permitiram que a Renault sobrevivesse aos anos de desaceleração econômica que se seguiriam na Europa, o que valeu elogios a Ghosn dentro da empresa.

Embora o executivo fosse celebrado no Japão por ter salvado a Nissan, a elite dos negócios francesa, muito excludente, o encarava com suspeita.

“Na França ele não tem o status que tem no Japão”, disse Christophe Sirugue, ex-ministro francês da Indústria. “Ele era visto como um excelente presidente-executivo, mas as pessoas não sabiam por quê.”

Também havia frustração por Ghosn passar tanto tempo longe, comandando a Nissan. As companhias operam em fusos horários com oito horas de diferença, e a uma distância de cerca de 10 mil quilômetros. 
Ghosn carregava duas pastas, uma para cada empresa, e mantinha agendas e documentação separadas. Também recebia remunerações separadas.

Em 2011, ele foi forçado a se desculpar com três executivos importantes que a Renault demitiu, por tê-los acusado falsamente de vender segredos associados ao programa de carros elétricos da companhia.

O episódio erodiu sua credibilidade e despertou questões sobre se era possível que uma só pessoa dirigisse as duas gigantes.

Mais recentemente, Ghosn entrou em choque com o governo francês. Em 2015, a participação do governo na montadora cresceu a quase 20%, ante os 15% originais, o que fazia do Estado o maior acionista. A manobra permitiu que o governo aplicasse uma lei recentemente aprovada que dobrava os direitos de voto do Estado e dos demais investidores de longo prazo.

Para atenuar as preocupações dos japoneses com a influência francesa, Ghosn negociou para que a Nissan conquistasse o direito de elevar sua participação na Renault caso a montadora francesa interfira demais em seus negócios.

A concessão irritou a Renault. “A Renault, na prática, perdeu parte de sua capacidade de ação na Nissan”, disse um antigo executivo da Renault.

Pressionando a preparar um plano de sucessão, Ghosn apontou um vice na Renault no ano passado e se afastou um pouco dos negócios cotidianos, para se concentrar na estratégia e na aliança com a Nissan. Também negociou o acréscimo da Mitsubishi à aliança, em 2016.

“Quando duas empresas têm um só líder, não se pode impedir que as pessoas digam que ele favorece uma ou a outra”, disse um executivo que trabalhou em estreito contato com Ghosn nas duas empresas. “Mas ele não dava importância às queixas e fazia seu trabalho.”

Traduzido do inglês por Paulo Migliacci

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