Temos um bichinho instável com dois pés, diz Armínio Fraga sobre tripé macroeconômico

Para um dos pais do sistema de metas, recuperar contas públicas agora é desafio sem precedente

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São Paulo

O Brasil está diante do maior desafio de arrumação das contas públicas de sua história. A opinião é de Armínio Fraga, 61, ex-presidente do BC e que ajudou a desenhar as políticas adotadas após a mudança forçada do regime cambial, em janeiro de 1999.

Segundo o economista, sócio da gestora Gávea Investimentos, o descontrole das contas públicas nos últimos anos levou o chamado tripé macroeconômico a virar um "bichinho instável, de dois pés só". 

 

Quando o sr. foi chamado para assumir o Banco Central?

No dia 30 [de janeiro de 1999], que foi um sábado, me ligaram. Eu já contei mil vezes essa história. Conversei no fim de semana com o Pedro Parente [então ministro-chefe da Casa Civil], com o Pedro Malan [então ministro da Fazenda] e com o presidente [Fernando Henrique Cardoso]. Me convidaram e eu topei. Na segunda, pedi demissão cedinho e voltei para o Brasil no mesmo dia.

Era 1º de fevereiro. Eu me lembro bem da data porque é o aniversário da minha filha.

O maior medo naquele momento era que o Brasil repetisse a experiência do México de quatro anos antes, de a inflação ir para dois dígitos.

Na crise da Tequila?

Isso. Se olhar os gráficos e as coisas que aconteceram lá, foi muito parecido. No nosso caso, existia o gene de indexação na cabeça das pessoas. Parecia um grande risco. Nosso desafio era estabilizar as coisas.

Para mim e para os colegas, não dava para voltar para o câmbio fixo, embora muitos pensassem nisso na época. Falava-se até em "currency board" [atrelar o câmbio à variação de outra moeda]. Então, o que surgiu como alternativa —e era um assunto que eu já vinha estudando— foi adotar o sistema de metas para a inflação.

Naquele momento, também repactuamos o acordo com o FMI, adotando as metas como critério, o que era, na época, uma grande novidade para o Fundo. Ninguém nunca tinha feito um programa com a instituição que não fosse um monetário mais tradicional.

O economista Armínio Fraga em evento em São Paulo
O economista Armínio Fraga em evento em São Paulo - Zanone Fraissat - 18.abr.2018/Folhapress

O que era o tradicional?

Um padrão no qual se olhava para metas monetárias, crédito bancário, metas para as reservas. A gente tinha uma história ruim com esse modelo. Nunca deu muito certo. Fomos direto para o sistema de metas. Deixamos claro que o câmbio ia flutuar e fizemos um trabalho de ancoragem do balanço de pagamentos para evitar um comportamento mais nervoso do câmbio, que teria consequências inflacionárias.

Demos um aperto forte nos juros e, no dia seguinte, quando o mercado abriu, recebemos um sinal positivo, a curva de juros inverteu, a taxa longa caiu. Era um sinal de que as coisas estavam se estabilizando. Já no meio do ano, lançamos as metas, de 8% para 1999, depois 6% [para 2000] e depois 4% [para 2001].

Fomos agressivos porque a inflação tinha saído de um nível muito baixo no ano anterior. Foi a aposta que fizemos, deu certo. As expectativas se estabilizaram facilmente.

A inflação do ano ficou em torno de 9% [8,94%], e a dos dois anos seguintes foram para a meta. Parecia até um pequeno milagre.

O que contribuiu para que desse certo?

Muito rigor nas várias áreas, particularmente na fiscal e na monetária. A inflação seguiu cravada na meta até as grandes crises de 2001, que foi um ano supercomplicado.

Qual foi a repercussão no desempenho da economia?

Em 1999, havia uma previsão de que o PIB cairia 4%. Acabou subindo 0,5%. Foi uma surpresa enorme. E a inflação voltou para um dígito. No final do governo FHC, foi mais difícil, porque nós estávamos pilotando esse sistema, mas era sabido que, no fim do ano, haveria uma troca de governo.

O mercado estava funcionando em cima de expectativas que, naquele momento, estavam muito desancoradas, porque havia um enorme receio de o PT seguir aquilo que prometeu a vida inteira.

Não era muito difícil acreditar, estava lá nos documentos do partido, no discurso. Mas, felizmente, como o câmbio dobrou, a inflação começou a subir bastante, até o próprio Lula, primeiro como candidato, mas especialmente já eleito, com a ajuda de [Antonio] Palocci [que viria a ser ministro da Fazenda], assumiu o compromisso de manter o tripé. E foi o que eles fizeram.

Aí começou um debate que não é a minha praia, de narrativa. O PT imediatamente depois de uma transição feita com muito carinho, cooperação, inventou, de maneira oportunista, a história da herança maldita. E vendeu essa ideia de que a crise tinha sido em razão do que eles herdaram, o que não é verdade.

Mas o governo Lula manteve as políticas nascidas em 1999?

Sim. Houve períodos de maior ou menor disciplina, mas, no geral, o sistema funcionou bem. Ele começou a fazer água quando a política ficou um tanto esquizofrênica, depois da saída de Palocci. Naquele momento, o governo [de Dilma Rousseff] procurava desfazer, com a política bancária e depois até com a fiscal, com toda contabilidade criativa, depois pedaladas, tudo que o BC tentava fazer. Foi uma fase muito confusa, mas mesmo assim o sistema deu razoável conta do recado. Hoje, o problema mudou porque houve uma depressão econômica.

O desarranjo fiscal ajuda a explicar a depressão?

Hoje a gente sabe que todo o lado feio do modelo da nova matriz hiperintervencionista não foi apenas um problema econômico, virou um problema político e institucional também. O fato é que isso foi minando a capacidade de crescimento da economia, depois derrubando o investimento também. Foi um desastre absoluto.

Mas, olhando para trás, o sistema funcionou. As inflações estavam meio desancoradas. A atual equipe do Banco Central atuou com muita competência e, pelo menos, fez uma limonada desse limão, já que tem a depressão, vamos arrumar logo a inflação, e foi feito.

O fato de algumas políticas, como as metas para inflação, terem sido institucionalizadas ajudou?

Sim, apesar de não ser mais um tripé. Virou um bichinho mais instável porque tem dois pés só. A parte fiscal está por vir. O governo Temer tinha a ideia da reforma da Previdência, mas não vingou.

O buraco continua. Tem um governo eleito sinalizando que pretende tomar providências nessa área, e isso é bom. Agora, o tamanho do desafio hoje é o maior da nossa história.

Por quê?

Porque o Brasil tem mais dívida do que jamais teve. Tem um déficit fiscal ainda próximo do maior da história. E já tem uma carga tributária bem elevada. Então o espaço político para aumentar a carga tributária parece limitado. É uma tremenda ameaça que precisa ser objeto de uma resposta muito crível e de natureza estrutural.

Você pode até ganhar tempo vendendo ativos para ajudar na dinâmica da dívida, mas não há como evitar esse ajuste. E é grande, é enorme.

 

Armínio Fraga, 61

Economista pela PUC-Rio, doutor pela Universidade de Princeton (EUA), trabalhou com o investidor George Soros (1993-1999), foi presidente do Banco Central (1999-2002) e fundador da gestora Gávea Investimentos (2003)

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