Descrição de chapéu Brexit

Brexit pode retirar montadoras no Reino Unido

Setor automotivo passa por reestruturação global

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Paris

Pense em um carro fora de linha, rodando com pneus carecas e falha nas pastilhas de freio. Acrescente então à cena uma pane seca.

É mais ou menos com isso que se parece agora a indústria automobilística britânica, sobre a qual ainda periga se abater, qual pá de cal, uma saída desordenada do Reino Unido da União Europeia (UE) —o brexit sem acordo.

O divórcio está marcado para 29 de março, mas o Parlamento britânico se recusa a aprovar os termos negociados por quase um ano e meio entre o governo local e as autoridades europeias. Isso aumenta a probabilidade de uma ruptura a seco, dura, sem período de transição.

Em um setor que depende da importação contínua de peças e componentes feitos na UE, uma separação litigiosa criaria travas ao processo industrial.

Dali em diante, ele ficaria sujeito a barreiras alfandegárias e controles de mercadorias na fronteira com o bloco; dada a desaceleração dos fluxos, as empresas seriam forçadas a ampliar sua capacidade de estocagem e armazenamento (o que, na dúvida, já estão fazendo). 

Para acomodar a alta de gastos nessa rubrica, precisariam cortar o borderô em outras.

Conhecido por marcas-fetiche como Jaguar, Rolls-Royce e Bentley, o segmento automotivo britânico gera 186 mil empregos diretos (considerando os fornecedores das montadoras) e mais de 850 mil indiretos, segundo uma das principais entidades nacionais de fabricantes.

Por causa da incerteza em torno das condições em que o brexit vai ocorrer (na última semana, aumentaram as chances de ele ser adiado por alguns meses), o executivo-chefe do grupo PSA, dono da inglesa Vauxhall, anunciou dias atrás que, “se for preciso tomar decisões impopulares, nós as tomaremos”.

As duas unidades em solo britânico empregam cerca de 2.300 trabalhadores.

Pouco antes, a Honda divulgara o plano de fechar a unidade em Swindon (sul inglês) em 2021. A empresa alegou que a medida se encaixava em sua nova estratégia global, de concentração da produção no Japão.
Porém, na melhor das hipóteses, o brexit foi a gota d’água para a descontinuação das atividades, que vai ceifar no mínimo 7.000 postos.

O mesmo refrão ressoa no quartel-general da Jaguar Land Rover, líder de produção no país. Em janeiro, a companhia avisou que cortaria 4.500 vagas, a maioria no Reino Unido.

Dito isso, cabe relativizar o peso do brexit e da opacidade que ainda envolve o pós-divórcio. Karel Williams, professor da Escola de Negócios da Universidade de Manchester, diz que as agruras da indústria automobilística britânica são bem anteriores à pane seca que abre este texto.

“Nos anos 1980, [a então primeira-ministra] Margaret Thatcher trouxe Nissan, Toyota e Honda para substituir o que via como montadoras britânicas incompetentes”, afirma. “Ela era contra sindicatos, os japoneses tinham medo deles, o Reino Unido integrava o mercado comum. Tudo confluiu.”

Em 2019, quando os japoneses já não são “os bárbaros à porta do castelo” (para Williams, os chineses assumiram o papel) e fecharam um acordo de livre-comércio com a UE que lhes permitirá trazer carros prontos da Ásia sem tarifas —arranjo do qual os britânicos, abandonando de fato o consórcio europeu, estarão excluídos.

“O pecado original foi achar que investimento estrangeiro e capital móvel, volátil poderia substituir firmas enraizadas”, avalia Williams.

“Nissan, Toyota e Honda não têm mais compromisso com a produção no Reino Unido do que Ford, Volkswagen e GM com o Brasil ou a Argentina, por exemplo. Só vão produzir onde fizer sentido.”

Hoje, aponta o professor, esse éden parece ser a Eslováquia, que oferece uma combinação de baixos salários, transações em euro (em oposição à flutuação do câmbio euro-libra para quem está nas ilhas britânicas, mas precisa de peças do continente) e praticidade logística (fornecedores em profusão nos países vizinhos).

Tanto é assim que a Jaguar abriu há pouco uma fábrica por lá. “A indústria está numa fase em que não pode se prestar ao sentimentalismo. Tem de lidar com a eletrificação dos carros, com a competição da Waymo [o carro autônomo do Google], com novas formas de compartilhamento e aluguel de veículos”, lista Williams.

Voltando ao brexit, ele diz que a hipótese ainda não descartada de uma despedida brusca põe a perder um trabalho de integração da cadeia produtiva continental que levou 40 anos. Além disso, enfatiza o pesquisador, o impasse atual ainda é só em torno do acordo de separação. Os termos da relação comercial futura entre Londres e a UE ainda não foram negociados.

Se a saída for mesmo intempestiva, prevê Williams, depois de um choque inicial, as atividades serão retomadas, sob a sombra de fechamentos periódicos de unidades.

“As coisas morrem devagar na indústria automobilística. Passa-se de dois turnos de trabalho a um, a linha de montagem opera com mais lentidão. Isso já está acontecendo.”

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