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Esqueçam o carro autônomo e tragam de volta o câmbio manual

O fato de nossos cérebros delegarem tarefas tranquilamente à tecnologia causa preocupação

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Vatsal G. Thakkar
Nova York

Eu estava manobrando o carro de minha mulher na entrada de casa quando percebi que não estava vendo as imagens da câmera de ré, e tampouco olhando pelo vidro traseiro. Minha atenção toda estava concentrada naqueles alertas audíveis de proximidade –os apitos esganiçados que meu carro emite quando estou dando ré e me aproximo de um objeto. O problema era que o carro de minha mulher, um modelo mais antigo, não tem os apitos.

Passei a confiar nessa tecnologia a tal ponto que parei de prestar atenção, um problema com consequências potencialmente perigosas.

As câmeras com visão de ré se tornaram obrigatórias em todos os carros vendidos nos Estados Unidos, desde o ano passado. Entre 2008 e 2011, a porcentagem de carros zero equipados com essas câmeras dobrou, nas estatísticas de vendas, mas o número de mortes causadas por colisões com o veículo em marcha a ré caiu em menos de um terço, e os ferimentos causados por esse tipo de colisão se reduziram em apenas 8%.

Talvez um dos motivos seja, como aponta a Administração Nacional de Segurança no Tráfego Rodoviário, que muitos motoristas ainda não estão cientes das limitações da tecnologia. O relatório também constatou que 20% dos motoristas eram como eu –passaram a confiar tanto nos sistemas de apoio que passaram, ou quase, por colisões quando estavam dirigindo outros veículos.

O fato de que nossos cérebros deleguem essa tarefa tão tranquilamente à tecnologia causa preocupação sobre as aspirações do setor de tecnologia –tudo completamente autônomo. Será que tecnologias projetadas para nos salvar de nossos lapsos de atenção podem nos tornar menos atentos, na prática?

A marcha da Uber na direção de um carro autoguiado encontrou um grande quebra-molas em Tempe, Arizona, no no passado, quando um de seus Volvos autoguiados atropelou e matou uma pedestre. Os relatos do incidente se concentravam em tentar descobrir como é que um carro dotado de câmeras e sensores por radar havia ignorado completamente a presença de um ser humano no meio da rua. No entanto, a falha do sistema programado mais complexo que existia no veículo –o cérebro do motorista humano– não foi tão comentada.

Uma investigação revelou que o motorista estava assistindo a programas do serviço de streaming Hulu até o momento do atropelamento. Porque o cérebro humano é impecável em sua capacidade de filtrar informações irrelevantes, esse tipo de comportamento deveria ter sido previsto. Quando estamos ao volante em modo normal, nossos cérebros vivem em estado de constante vigilância. Mas se alguém ou alguma coisa estiver dirigindo para nós, essa vigilância se esvai facilmente.

Algo semelhante parece ter acontecido em diversos acidentes que causaram mortes envolvendo carros que estavam usando o sistema Autopilot, da Tesla. Ao que parece, os motoristas fizeram pouco ou nenhum esforço para intervir.

A introdução de tecnologia de segurança resultou em acidentes imprevistos também em outros contextos. Em dezembro de 2017, uma paciente morreu em um grande centro médico quando uma enfermeira procurou um remédio de combate à ansiedade, em um sistema automatizado de estoque, digitando apenas as duas primeiras letras do nome do produto. Ela escolheu o primeiro remédio que apareceu na lista –Vecuronium, em vez de Versed. Vecuronium é uma droga que causa paralisia, às vezes usada durante execuções. Sua aplicação causou um colapso nos sinais vitais da paciente, que morreu dois dias mais tarde.

A tecnologia parece ter se voltado contra nós mais uma vez nas quedas mortíferas de dois Boeing 737 Max 8. Em outubro, os pilotos do voo 610 da Lion Air, na Indonésia, parecem ter enfrentado problemas com a tecnologia supostamente salvadora do avião. Os investigadores suspeitam de que os sensores tenham interpretado indevidamente a ascensão do aparelho, classificando-a como muito acentuada, o que colocou em ação o sistema de ampliação das características de manobra com que o modelo está equipado. O sistema forçou o nariz do aparelho para baixo, e ele terminou por cair no Mar de Java, a uma velocidade de 720 km/h.

A Boeing começou a desenvolver uma solução para o problema de software, mas ela ainda não estava pronta em tempo para o voo 302 da Ethiopian Airlines, que caiu no mês passado possivelmente pelo mesmo problema, matando as 157 pessoas que estavam no avião. Nesses casos, ninguém criticou os pilotos por deixarem de prestar atenção. Mas as quedas foram um sinal de alerta, especialmente porque os pilotos não eram obrigados a treinar com a nova tecnologia.

Embora um supercomputador deva sempre superar o cérebro humano em termos de velocidade pura, o cérebro opera de modo muito mais complexo, em sua capacidade de alterar a prioridade de dados recebidos de múltiplas fontes. Se um fluxo de dados se torna menos relevante, nossos sistemas cognitivos desviam a atenção para a fonte relevante que vem a seguir (hoje em dia, usualmente o celular).

Mas existe um recurso, disponível em alguns carros hoje, que pode intensificar a vigilância do motorista em lugar de reduzi-la: o câmbio manual.

Um carro com câmbio manual e pedal de embreagem requer o uso dos quatro membros do motorista, o que dificulta que ele coma ou use o celular enquanto guia. Com isso, lapsos de atenção se tornam raros, especialmente no trânsito urbano, no qual o motorista pode ter de mudar de marcha 100 vezes em um percurso até o supermercado.

Há 20 anos todos os meus carros têm câmbios manuais. O primeiro foi comprado assim que me formei em medicina –um BMW 325i, ano 1994, que comprei usado. Anos mais tarde, meu padrinho escreveu "recém-casado" no vidro traseiro desse carro, e um ano depois minha mulher e eu o usamos para levar nosso filho recém-nascido da maternidade para casa.

Infelizmente, as vendas de carros com câmbio manual estão em queda, e muitas montadoras, entre as quais a Audi, deixaram de oferecer essa opção nos Estados Unidos. Parece que vou ter que manter meu modelo S4 de 2013 pelo menos até 2026, se quiser ensinar meus filhos a dirigir carros de câmbio manual.
Quando comprei meu primeiro BMW de cinco marchas, meu pai me acautelou sobre segurança, afirmando que dirigir um carro de câmbio manual causaria mais distrações e seria mais perigoso. Ele estava errado.

Ainda que não haja muitas pesquisas sobre a segurança do câmbio manual, um estudo sobre o desempenho ao volante de meninos adolescentes portadores de deficiência de atenção revelou que carros com transmissão manual resultavam em direção mas atenta e segura do que carros automáticos. Isso sugere que a cura para nossos vácuos de atenção talvez seja menos tecnologia, e não mais.
 
The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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