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The New York Times

Capitalismo que permitiu privacidade agora quer arruiná-la

Forças da criação de riqueza no passado fomentavam o direito à privacidade, mas isso mudou

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Nova York | The New York Times

Por boa parte da história humana, o que hoje chamamos de "privacidade" era mais conhecido como "ser rico". A privacidade, como a riqueza, estava pouco ou nada presente nas vidas da maioria das pessoas.

Agricultores, escravos e servos residiam em moradias simples, usualmente divididas com outras pessoas, e em alguns casos também com animais. Não tinham a expectativa de que uma porção significativa de suas vidas transcorresse distante dos olhares alheios, ou que houvesse limites que os outros devessem respeitar. Isso teria requerido moradias com aposentados privados. E só pessoas ricas as tinham.

A difusão da privacidade em escala maciça, com certeza uma das realizações mais impressionantes da civilização moderna, dependeu, assim, de outra realização, ainda mais impressionante: a criação da classe média. Só nos últimos 300 anos, ou pouco mais, quando cada vez mais pessoas obtiveram os meios necessários a controlar seu ambiente físico, por meio da aquisição de riqueza ou propriedade privada, as normas - e eventualmente os direitos - de privacidade vieram a surgir.

Não pode haver direito a privacidade se a pessoa não tem um quarto só seu. A conexão histórica entre a privacidade e as forças da criação de riqueza ajuda a explicar por que a privacidade está sob ataque hoje. A situação nos faz recordar, primeiro, que a privacidade não é um traço básico da existência humana, mas sim um subproduto de um determinado arranjo econômico - e portanto um estado de coisas contingente e transitório. E em segundo lugar nos faz recordar que, em um país capitalista, nossa definição básica de privacidade depende de onde está o dinheiro. E isso agora mudou.

As forças da criação de riqueza já não favorecem a expansão da privacidade, mas trabalham para solapá-la. Testemunhamos a ascensão daquilo que chamo de "mercadores de atenção" e do que a socióloga Shoshanna Zuboff define como "capitalismo de vigilância" - a transformação de nossos dados pessoais em mercadoria por gigantes da tecnologia como o Facebook, o Google e seus imitadores, nos setores de telecomunicação, eletrônica e outros.

Encaramos um futuro no qual a vigilância ativa é uma parte tão rotineira dos negócios que, para a maioria das pessoas, ela se tornou quase inescapável. Quanto a isso, estamos voltando à servidão. Mas o futuro não é predeterminado, porque a maioria esmagadora dos americanos deseja proteção maior à sua privacidade. No entanto, isso requererá leis que não se limitam a alterar detalhes, e sim mudem fundamentalmente o aspecto econômico da privacidade.

É claro que a nossa era não é a primeira na qual a privacidade passou a sofrer ataque. No auge do movimento pela temperança, moralistas americanos pressionaram por leis que conferiam poderes amplos à política para invadir casas e prender pessoas por consumo de bebidas alcoólicas, adultério e homossexualidade.

Estados autoritários e totalitários, inseguros de seu poder, sempre combateram a privacidade das massas por meio de espiões e de redes extensas de polícia secreta, e o mesmo pode ser dito sobre países democráticos em tempos de guerra ou inquietação.

Mas nenhum desses oponentes da privacidade contava com o capitalismo como um aliado poderoso. É seguro dizer que, nos Estados Unidos, a privacidade "venceu" no século 20. Seu momento de triunfo foi o reconhecimento pela Suprema Corte, em 1965, do direito constitucional à privacidade, mas essa vitória legal não deve obscurecer as forças econômicas que embasaram a vitória.

Pela metade da década de 1960, a ascensão da classe média dotada de propriedades havia dado a cada homem o seu "castelo", a cada bebedor o seu bar, a cada trabalhador seu escritório, e a cada criança seu quarto.

Espaços físicos privados, acompanhados por espaços semiprivados como os motéis, casas de banho e clubes de dança, criavam outras expectativas de privacidade (e o mesmo pode ser dito sobre espaços virtuais surgidos mais tarde, como os computadores e discos rígidos de armazenagem pessoais). Foi com base nessas fundações que pensadores jurídicos e ativistas começaram a falar sobre o direito das massas a desfrutar da privacidade, a existir sem vigilância - o direito de "ser deixado sozinho". O capitalismo era aliado da privacidade.

No passado, a vigilância não era especialmente lucrativa, mas, nas duas últimas décadas, novas tecnologias, acopladas a novas teorias de valor, transformaram os aspectos econômicos da privacidade.

Um declínio drástico no custo da vigilância em massa (graças à internet) elevou o valor de dois tipos de ativo: nossos dados e nossa atenção. A corrida de grandes e pequenas empresas para maximizar esses ativos fez da vigilância uma indústria em crescimento. É nesse sentido que o capitalismo começou a mudar de lado.

É claro que continua possível ganhar muito dinheiro de modos mais tradicionais. Mas as empresas mais ricas do mundo agora geram riqueza ao colocar o máximo possível de rastreadores, aparelhos e telas dentro de nossas casas, e o mais perto que puderem de nossos corpos. Os dados acumulados criam vantagens competitivas, e é possível ganhar dinheiro consolidando tudo que é sabido sobre um indivíduo.

Esse modelo de negócios teve como pioneiros o Facebook, o Google e o setor de publicidade online, mas outros setores da economia agora querem entrar na jogada. A Amazon é um deles, e o mesmo vale para operadoras de telecomunicações e TV a cabo, como Comcast e Verizon, bem como para o setor de eletrônica com seus aparelhos "inteligentes" que nos servem e nos espionam ao mesmo tempo. Muitos empregadores agora vigiam seus empregados constantemente. Há bons motivos para acreditar que, se nada for feito, a vigilância injustificada venha a ser incluída em cada negócio e modelo de negócio.

Há que tenha argumentado que não há motivo para preocupação. Afinal, mesmo na era da vigilância constante, estamos falando sobre ser observados não pela polícia secreta, mas por anunciantes e outras 
empresas comerciais. Essa "espionagem", o argumento afirma, só torna os produtos melhores e a publicidade mais "personalizada". O resultado final é vender produtos às pessoas, não enviá-las à Sibéria.

Mas esse argumento ignora diversas verdades duras que aprendemos nos 10 últimos anos. Uma delas é que as redes de dados e vigilância criadas para um propósito podem ser facilmente usadas para outros, e serão. Você deveria presumir que qualquer dado pessoal que o Facebook ou Android detenha sobre você é um dado que governos de todo o mundo tentarão obter ou que ladrões tentarão roubar.

Lição semelhante pode ser extraída do escândalo da Cambridge Analytica. O Facebook recolheu informações sobre milhões de usuários para um determinado conjunto de propósitos, mas a Cambridge Analytica, uma consultoria política que trabalhou para a campanha presidencial de Donald Trump em 2016, usou esses dados a fim de tentar influenciar os eleitores americanos.

Talvez a verdade mais dura que aprendemos é a de que, quando você percebe que está sendo vigiado, se torna difícil ignorar a sensação. Como nossas experiências com a mídia social deixaram bem claro, agimos diferente quando sabemos estar sendo observados. A privacidade em massa é a liberdade de agir sem ser observado, e assim, em certo sentido, de sermos quem realmente somos - não o que desejamos que os outros pensem que somos. O que está em jogo, portanto, é algo semelhante à alma.

Cerca de 92% dos americanos dizem querer proteções mais fortes à privacidade. É por isso que surgiram diversas novas leis estaduais de proteção à privacidade e novos projetos de lei foram apresentados ao Congresso dos Estados Unidos. Mas muitas dessas intervenções têm escopo limitado - novas notificações e advertências a ler e clicar, novas opções excessivamente complicadas de como administrar contas de serviços online. Alterar detalhes menores não vai resolver o problema.

Para que sejam verdadeiramente efetivas, as leis de privacidade precisam tentar mudar os incentivos que fomentam a vigilância injustificada e o acúmulo irresponsável de dados pessoais. Precisamos de proibições fortes, especialmente para impedir as empresas de compartilhar informações pessoais sobre seus usuários. Os novos direitos conferidos aos consumidores precisam ser fáceis de entender (como o "direito a ser esquecido") da União Europeia, e fáceis de usar (como uma lista nacional que proíba rastreamento online dos inscritos). E as empresas que fracassam repetidamente na proteção a dados delicados precisam enfrentar consequências pesadas.

E tampouco existe qualquer razão para que não usemos nosso poder de compra estrategicamente. As pessoas que querem privacidade deveriam apoiar e recompensar empresas que a respeitam. O aspecto econômico da privacidade mudaria se número suficiente de consumidores optar por comprar produtos de empresas que não nos espionem e que ajudem as pessoas a evitar vigilância indesejada.

A privacidade é às vezes caracterizada como uma preocupação que só afeta a elite mais sensível. Mas no passado, era só essa elite exageradamente sensível que se preocupava com a alfabetização da sociedade ou com a proibição do trabalho infantil. A ambição condutora da civilização moderna sempre foi nos tirar de uma existência feudal e estender o que no passado era visto como luxo às pessoas comuns. E esta não é a hora de permitir um recuo - especialmente não em nome do progresso.

The​ New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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