Pescadores indonésios são submetidos a inferno de surras, fome e sede no mar

Autoridades calculam que 250 mil trabalhadores do país estejam sem proteção em pesqueiros estrangeiros

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Harry Pearl
Jacarta (Indonésia) | AFP

Rahmatullah deixou a Indonésia crendo que estava partindo para as águas do Peru para ganhar um bom salário, mas em lugar disso viveu um inferno. Uma vida de escravo, de surras, de fome e sede - tanta sede que teve que aproveitar a água gerada por condensação para poder beber.

A indústria pesqueira mundial recorre ao trabalho forçado de maneira generalizada, dizem especialistas em luta contra o tráfico de pessoas. Os consumidores, eles dizem, ignoram o "custo verdadeiro" do pescado e dos mariscos que compram nas lojas e consomem nos restaurantes.

Uma mão de obra explorada e exposta ao não pagamento de salários, jornadas de trabalho intermináveis, violência... e até à morte.

Intermediários inescrupulosos fazem contatos com pessoas pobres e sem capacitação profissional e lhes prometem bons salários, especialmente na Indonésia e no sudeste da Ásia.

Rahmatullah tem 24 anos. Uma agência de recrutamento em seu país ofereceu-lhe emprego em um barco de pesca nas águas do Peru, onde ele ganharia US$ 400 (R$ 1.540) ao mês e mais um adicional por tonelada pescada. Mas ele foi parar na Somália - conta -, onde passou nove meses terríveis trabalhando 18 horas por dia a bordo de um barco chinês.

"Tinha a impressão de ser um escravo", disse o jovem à AFP. "A tripulação chinesa tinha água potável, mas nós não; tínhamos de recolhê-la do sistema de climatização. E se não pescássemos o suficiente, era comum que nos surrassem, mesmo que estivéssemos doentes".

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Desumano

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Rahmatullah e outros 39 indonésios estão processando a agência indonésia de recrutamento PT Maritim Samudera Indonesia, acusando-a de enganá-los e solicitando indenizações e ressarcimento.

Em entrevistas à AFP e em seus depoimentos à polícia e às autoridades, os queixosos denunciaram golpes, abusos psicológicos, fome e desidratação. Dizem ter testemunhado a morte de dois indonésios por sede e esgotamento.

Só comiam arroz, acompanhado de um pouco de repolho e peixe cozido. Alguns se viam reduzidos a beber a água gerada pela condensação dos aparelhos de ar condicionado.

A comida era atroz", recorda Arianus Ziliwu, 21, que trabalhou nas águas do Japão. "E as condições para dormir eram indignas de um ser humano".

Em imagens gravadas com um celular e fornecidas à AFP, se vê homens dormindo em colchões, em porões sujos.

"Não tínhamos como nos defender. Venho de uma aldeia, e não estava preparado", disse Rahmatullah, que nunca havia trabalhado em um barco pesqueiro.

Salários não pagos

Os pescadores passavam de seis a nove meses manejando as redes e preparando o pescado. Disseram à polícia que os empregadores lhes devem milhares de dólares em salários não pagos.

Devido à pesca excessiva, as áreas pesqueiras estão cada vez menores e o setor vem recorrendo a trabalhadores imigrantes a fim de manter a lucratividade, dizem ativistas que combatem o tráfico de pessoas.

"Se o objetivo é vender atum e lula a preços baixos, a mão de obra precisa ser barata", disse Arifsyah Nasution, da Greenpeace Indonésia. "E a mão de obra barata vem do sudeste da Ásia".

De acordo com o Índice Mundial da Escravidão publicado a cada ano pela ONG Walk Free Foundation, há muitas provas de práticas de exploração e escravidão moderna em algumas empresas pesqueiras. E poucos consumidores estão cientes disso. "A tomada de consciência quanto ao custo real e a face oculta dos produtos do mar continua limitada", avalia Nasution.

O governo indonésio é acusado de não fazer o bastante para combater os abusos. As autoridades calculam que 250 mil indonésios trabalhem "sem proteção" em pesqueiros estrangeiros.

Bandeiras estrangeiras

A maioria deles termina empregada por frotas que se ocultam por trás de bandeiras estrangeiras, o que complica a vigilância e dificulta saber quem tem jurisdição sobre elas. 

Na Indonésia, várias agências de recrutamento públicas e privadas estão autorizadas a enviar mão de obra ao exterior, mas alguns recrutadores e pescadores optam por operar de forma extraoficial.

"O principal problema é a falta de fiscalização; o segundo problema é a falta de meios para fazer com que as leis sejam respeitadas", explica Imam Syafi'i, do Movimento dos Marinheiros Indonésios (PPI), o sindicato que representa os 40 queixosos.

Rahmatullah pagou US$ 100 em custos de documentação mas não recebeu treinamento algum antes de partir - nem um certificado de marinheiro e nem um certificado médico, afirmou o sindicalista.

Segundo o PPI, a agência de recrutamento não estava habilitada para enviar pessoas ao exterior e falsificou os documentos necessários.

A agência de recrutamento PT Maritim Samudera Indonesia se recusou a responder as perguntas da AFP, e se limitou a afirmar que está cooperando com a investigação policial.

O pescador Rahmatullah, que foi submetido a situações precárias de trabalho fora de seu país, durante entrevista em Jacarta (Indonésia) - Bagus Saragih -21.fev.2019/AFP

Enrosco legal

O Ministério do Emprego recomendou o pagamento de indenizações mas a agência ignorou a recomendação, acrescenta Imam Syafi'i.

O governo tomou medidas para resolver o problema, revisando a regulamentação em vigor. Mas a regulamentação revisada não se aplica ao caso. A confusão judicial sobre o tema e a falta de cooperação entre os diferentes serviços governamentais complicam a situação, estimam os observadores.

Yuli Adiratna, subdiretor do departamento de proteção aos trabalhadores no exterior, reconhece que "a fiscalização quanto aos marinheiros poderia melhorar", mas os fiscais estão preocupados com situação de outros migrantes. 

Enquanto isso, os pescadores pedem justiça. "Quero que a empresa seja castigada para que não haja mais vítimas", diz Lufti Awaludin Fitroh, marinheiro que diz ter sido enganado pela PT Maritim Samudera Indonesia.

"Eu e meus amigos nos satisfaríamos se fôssemos os últimos explorados. Que isso nunca mais aconteça", ele disse.

Tradução de Paulo Migliacci

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