De Collor a Bolsonaro: veja histórico da relação entre Mercosul e União Europeia

Blocos tiveram de cooperação à discussão prolongada sobre protecionismo

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São Paulo

O acordo de livre-comércio entre os blocos Mercosul e União Europeia foi fechado na sexta-feira (28). Durante pelo menos 20 anos, a discussão sobre esse pacto ficou em pauta, ora com mais atenção dos governos, ora com menos.

A parceria entre os blocos, porém, começou muito antes, ainda na criação do grupo sul-americano. A relação foi desde cooperações (como no auxílio europeu na criação das instituições do Mercosul) até discussões prolongadas (como aquela sobre protecionismo na Rodada Doha).

Para entender cada período, os recuos e avanços no acordo de livre-comércio, veja abaixo a cronologia detalhada da relação entre os blocos.

1991 – No governo de Fernando Collor (1990-1992), Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai assinaram em abril o Tratado de Assunção, com objetivo de criar um mercado comum sul-americano até 1995.

Um mês depois, ocorreu o primeiro contato entre ministros das Relações Exteriores dos países membros do Mercosul e a Comunidade Europeia em Bruxelas. Neste encontro, o bloco europeu se prontificou a cooperar com o novo grupo sul-americano na criação de suas políticas e instituições. 

Na visita, estiveram presentes os ministros José Francisco Rezek (Brasil), Guido  di Tella (Argentina), Alexis Frutos (Paraguai) e Hector Gros (Uruguai).

José Francisco Rezek, na época presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
José Francisco Rezek, na época presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) - Lula Marques - 25.jul.1989/Folhapress

1992 – Mercosul assinou em junho um termo de cooperação comercial com os países do então Conselho das Comunidades Europeias, precursor da União Europeia.

No documento, as partes dizem que "estão decididas a fomentar, em especial, o desenvolvimento da cooperação em matéria de comércio, investimentos, finanças e tecnologia, tendo em conta a situação especial do Brasil como país em desenvolvimento."

A resolução também estabeleceu a criação de um comitê consultivo misto. Em julho foram definidas, no Rio de Janeiro, algumas áreas prioritárias de trabalho do comitê: aduanas, normas técnicas e agricultura.

1993 – Já no governo Itamar Franco (fim de 1992 a 1994)  a Comissão Europeia, representada por Manuel Marin –o fundador do programa de intercâmbio Erasmus e responsável na época pela cooperação para desenvolvimento– expressou predisposição em realizar uma contribuição de 15 milhões de ECU (média ponderada de 12 moedas da Comunidade Europeia) para os programas no Mercosul.

Dois acordos de financiamento foram fechados: um no valor de 430 mil ECU, que foi um apoio ao Secretariado Administrativa do Mercosul, com sede em Montevideu; outro no valor de 250 mil ECU destinado à presidência do bloco sul-americano (naquele ano o Paraguai) para facilitar o intercâmbio de experiências entre técnicos europeus e latino-americanos.

1994 – Manuel Marin, então vice-presidente da Comissão Europeia, apresentou em Bruxelas estratégias para atingir uma maior integração entre os blocos tanto no plano político, como no comercial e econômico.

A ideia era criar uma associação inter-regional União Europeia-Mercosul. Marin sugere pela primeira vez a criação progressiva de uma área de livre-comércio no campo industrial e de serviços.

1995 – O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) começa com o Mercosul criando uma união aduaneira e estabelecendo uma tarifa externa para os quatro países aplicarem em comércio com terceiros países ou grupos de países.

Foi assinado, em dezembro, no Palácio do Oriente, em Madri, o acordo-quadro de cooperação inter-regional entre Mercosul e União Europeia.

1996 – Primeira reunião ministerial de diálogo político entre União Europeia e Mercosul. Realizado em Luxemburgo, o encontro foi marcado pelo apoio à liberalização econômica.

1997 – Primeiro encontro para parcerias entre companhias da União Europeia e Mercosul. Estiveram presentes em Montevideu mais de 700 pequenas e médias empresas, das quais cerca de 200 pertencentes à região europeia. O objetivo era explorar possibilidades de joint ventures e acordos de cooperação.

1998 – Comissão Europeia propôs em julho uma passagem à associação inter-regional, que havia sido acertada em Madri em 1995. O acordo reforça a intenção de criar uma zona de livre-comércio de mercadorias e serviços, em conformidade com as normas da OMC.

1999 – O Primeiro Fórum de Negócios Mercosul-União Europeia ocorreu no Rio de Janeiro, onde foi aprovada a "Declaração do Rio" –um conjunto de políticas e recomendações nas áreas de investimento, serviços e privatização.

Chefes de Estado e de governo do Mercosul e da União Europeia se encontraram, em junho, no Rio de Janeiro e discutiram uma nova rodada de negociações comerciais multilaterais, com a expectativa de que tais processos fossem concluídos em três anos.

2000 - Foram realizadas três rodadas de negociações, em Buenos Aires (abril), Bruxelas (junho) e Brasília (novembro). A discussão continuou a desenvolver projetos, mas faltou avanços práticos. 

Neste ano também ocorreu a primeira das muitas visitas do comissário de comércio da União Européia Pascal Lamy ao Brasil. 

2001 – Ocorreram encontros em Bruxelas (março), Luxemburgo (junho) e Montevideu (julho). 

Somente na terceira reunião do ano é que medidas mais aprofundadas foram apresentadas. Pela primeira vez há um detalhamento na ata da rodada de negociações sobre a desgravação tarifária (redução gradual de tarifas) de alguns produtos.​

Em novembro foi lançada a Rodada Doha, na qual países em desenvolvimento entenderam que o centro das negociações comerciais deveria estar na agricultura.

2002 – No encontro em maio da cúpula União Europeia, América Latina e Caribe, na cidade de Madri, os blocos sinalizaram que iriam discutir um acordo de livre-comércio em julho do mesmo ano no Rio de Janeiro. Mas as tratativas começaram a empacar devido, entre outros motivos, à crise argentina.

Fernando Henrique Cardoso e chefes de Estado do Caribe, América Latina e União Europeia
Fernando Henrique Cardoso entre chefes de Estado do Caribe, América Latina e União Europeia - Lula Marques - 17.mai.2002/Folhapress

Na reunião de julho, os europeus sinalizaram que queriam que o Mercosul seguisse padrões de serviços, compras governamentais, investimentos e patentes.

Mas, na visão dos países sul-americanos, se ocorresse uma liberalização, a princípio, só companhias europeias se beneficiariam de regras mais abertas no Mercosul, uma vez que as firmas do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina não teriam condições de competir no mercado europeu.

Em outro aspecto, o grupo sul-americano queria derrubar o muro protecionista dos europeus sobre produtos agrícolas, enquanto a União Europeia dizia que tal negociação seria acertada no âmbito da OMC (Rodada Doha).

​O encontro em julho terminou sem avanços, e uma nova reunião para tratar do livre-comércio foi marcada para o 2º semestre de 2003. Antes do ano terminar, contudo, a União Europeia fechou um acordo comercial no setor têxtil com o Brasil.

2003 – Já no governo Lula (2003-2010), antes do encontro para definir questões do livre-comércio, a Comissão Europeia apresentou em julho um projeto para facilitar a participação de empresas do Mercosul em contratos públicos da União Europeia com condições mais favoráveis do que as aplicadas a outros membros da OMC. 

Em novembro foi acertado o "Programa de Bruxelas", que detalhava um cronograma de reuniões para tentar fechar um acordo de livre-comércio até outubro de 2004. A ideia era que até abril fossem apresentadas propostas de abertura de comércio, incluindo na agricultura.​

Pascal Lamy, comissário europeu (esq.), conversa com o chanceler Celso Amorim, em Bruxelas
Pascal Lamy, comissário europeu (esq.), conversa com o chanceler Celso Amorim, em Bruxelas - Gerard Cerles - 12.nov.2003/AFP

Foi o primeiro sinal da União Europeia para reduzir o protecionismo sobre produtos agrícolas. Os europeus, no entanto, colocavam em jogo a necessidade de se chegar antes a um consenso na OMC.

Para eles, se a União Europeia fechasse acordo com o grupo sul-americano, os países europeus teriam que estender a concessão a outros países. Caso os países em desenvolvimento chegassem antes a um acordo no órgão de comércio, os europeus concordariam em fechar um pacto mais interessante com os países do Mercosul.

2004 – Nos primeiros encontros do ano, tudo caminhava para um acordo.

Em julho, contudo, o Mercosul resolveu suspender as negociações com o bloco europeu porque, segundo diplomatas sul-americanos, a UE se recusava a desvendar todas as concessões que estaria disposta a fazer. A iniciativa pegou o outro lado de surpresa, mas não significou uma ruptura total.

Em setembro, a UE cedeu à pressão do Mercosul e aceitou apresentar uma proposta completa para a criação da área de livre-comércio. O anúncio foi feito na visita do então comissário de Comércio da União Européia, Pascal Lamy, ao ministro Celso Amroim (Relações Exteriores).

Não foi a primeira vez que Lamy e Amorim precisaram se reunir para destravar as conversas. Os dois se encontraram pelo menos três vezes para dar um empurrão político nas tratativas.

Em outubro, a UE apresentou sua proposta de livre-comércio, mas a reação dos negociadores sul-americanos não foi positiva. No caso específico do Brasil, a resolução dos europeus foi considerada um "retrocesso".

Depois da troca de farpas, ocorreram tentativas de salvar as negociações, mas todas foram em vão, e as conversas sobre uma possível área de livre-comércio são adiadas para 2005. Embora as discussões sobre o pacto tenham continuado, essa ruptura demorou a ser superada pelos blocos.

2005 –O ano começou com empresários dos dois blocos pedindo a retomada das negociações do acordo UE-Mercosul. Mas só em setembro os blocos voltaram a se encontrar em Bruxelas, e não houve avanços. 

Paralelamente as discussões sobre protecionismo se intensificavam na Rodada Doha, o que dificultava um acordo entre o bloco sul e a UE.

Em setembro, Pascoal Lamy, ex-comissário de Comércio europeu, que havia coordenado por muito tempo as tratativas do acordo UE-Mercosul, assumiu à diretoria-geral da OMC.

Pascal Lamy, comissário de Comércio da UE (esq.) e o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), durante encontro no Palácio Itamaraty
Pascal Lamy, comissário de Comércio da UE (esq.) e o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), durante encontro no Palácio Itamaraty - Alan Marques - 12.set.2004/Folhapress

2006 – Em março o Mercosul apresentou propostas no setor de serviços e no automotivo para que o grupo europeu aceitasse reduzir o protecionismo agrícola. 

A resposta foi um banho de água fria. O então comissário de Comércio europeu, Peter Mandelson, disse que a prioridade do grupo eram os acordos da Rodada Doha.

Neste ano o Uruguai chegou a dizer que abandonaria o Mercosul devido a um impasse que teve com a Argentina devido a problemas com instalações de fábricas de celulose. O Paraguai também ameaçou uma saída, se o Brasil e a Argentina não abandonassem políticas protecionistas.

Tais conflitos internos foram intensificados com o pedido da Venezuela para ingressar no grupo. Essa instabilidade dificultou ainda mais as negociações do bloco sul-americano com os europeus.

2007 – Partindo da ideia que o Mercosul estava fragmentado e sem uma voz única, o grupo europeu fez apostas em um acordo direto com o Brasil, o que gerou atritos dos brasileiros com seus vizinhos. O ano terminou sem avanços no acordo entre os blocos.

2008 – Uma reunião considerada definitiva indicou o fracasso da Rodada Doha, e o acordo entre os blocos UE e Mercosul continuou paralisado. 

2009 – Depois do fracasso de Doha e sem sinais de que iriam ressuscitar a rodada da OMC, Mercosul e União Europeia voltaram a se movimentar para criar a área de livre-comércio.

Em um encontro em Estocolmo em outubro, os dois grupos anunciaram que iriam intensificar seus esforços para retomar o acordo no ano seguinte.

2010 –Ao assumir a Presidência da União Europeia, a Espanha disse que planejava acelerar acordos comerciais com latino-americanos, incluindo o tratado de livre-comércio com o Mercosul.

A retomada, porém, não começou fácil. Dias antes de um encontro em Madri entre os blocos, dez países europeus protestaram contra a decisão de Bruxelas de retomar as negociações para um tratado de livre-comércio com o Mercosul, ao alegar que estavam em jogo os interesses agrícolas.

O encontro em Madri em maio, foi o primeiro passo para a retomada das conversas. No mês seguinte, as delegações dos dois blocos se reencontraram em Buenos Aires. 

O principal impasse na reunião realizada na capital argentina foi justamente os argentinos. A Comissão Europeia pediu que o país levantasse suas restrições às importações de produtos agrícolas, advertindo que, caso contrário, as negociações comerciais com o Mercosul seriam afetadas.

Próximos passos foram marcados para o ano seguinte.

2011 – No primeiro ano do governo Dilma (2011 até agosto de 2016) ocorreu uma reunião em Bruxelas (março) para tentar avançar as tratativas, mas nenhum movimento significante foi feito.

2012 –  Paraguai foi suspenso do Mercosul após processo de impeachment do então presidente Fernando Lugo. Adesão plena da Venezuela no bloco foi reconhecida. Nenhum movimento significante para o acordo UE-Mercosul foi feito neste ano.

2013 – O Brasil fez uma proposta para o acordo de livre-comércio entre os blocos. O plano brasileiro englobaria entre 85% e 90% do comércio bilateral entre o Brasil e o bloco. Os produtos teriam um cronograma gradual de redução da tarifa de importação, com diminuição das alíquotas a cada dois anos até que cheguem a zero.

Na sequência, Uruguai e Paraguai também fizeram suas propostas. A Argentina dificultou o processo, e o governo brasileiro chegou a cogitar um acordo apenas com Paraguai e Uruguai. A Venezuela não participava das negociações.

Europeus adiam negociações para 2014.

2014 e 2015 – Nenhum movimento relevante entre os blocos ocorreu para fechar o acordo.

2016 – Quando Michel Temer já presidia o país (agosto de 2016-2018) os blocos trocaram ofertas tarifárias para negociar o acordo de livre-comércio. Foi a primeira troca nesse sentido desde 2004.

2017 – Blocos sinalizaram que acordo se aproximava. Apesar de grandes obstáculos que ainda restavam na mesa de negociação, como cotas para produtos agrícolas e acesso a licitações, o cenário parecia melhor para o acerto da resolução.

2018 –  Como em outras ocasiões, os negociadores do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul voltaram a demonstrar otimismo quanto ao trato.

A proposta de acelerar as negociações visava uma série de circunstâncias políticas, inclusive as eleições brasileiras de outubro, com os receios de que o vencedor do pleito não fosse um entusiasta do tratado comercial ou do multilateralismo.

No Mercosul, porém, houve uma quebra. De um lado, Brasil e Argentina faziam a defesa de prosseguimento das negociações que já se arrastavam há 20 anos, frente a um Uruguai crítico à aliança e a favor da retomada de conversas em bloco com a China.

Os países do Mercosul acabaram por ampliar suas ofertas aos europeus nos setores automotivo, de serviços e de indicação de origem, em mais uma tentativa de chegar a um acordo de abertura comercial. Mas após dois dias de reuniões ministeriais, as tratativas não chegaram a um desfecho.

Bolsonaro foi eleito no fim de outubro, e tanto o presidente da França, Emmanuel Macron, quanto a chanceler alemã, Anegla Merkel, viram no novo presidente do Brasil um obstáculo para o acordo entre os blocos.

Paralelamente a isso, o cenário global passou o ano fragilizado com uma guerra comercial entre China e Estados Unidos.

2019 – Em janeiro, dias antes de embarcar para o Fórum de Davos, Bolsonaro chegou a dizer ser mais favorável a negociações bilaterais do que a engajamentos em grupos multilaterais, como no caso do Mercosul.

Esse posicionamento também foi defendido por Guedes, logo após a vitória de Bolsonaro nas urnas.

À época, o futuro ministro da Economia disse que pretendia rever a política comercial brasileira e que o Mercosul não seria prioridade. O economista criticou o bloco, classificando como ideológico, e disse que as relações comerciais seriam restritas a países “bolivarianos”.

O próprio Guedes, porém, foi quem afirmou no começo de junho que o Mercosul deveria “fechar o acordo com a União Europeia em três ou quatro semanas”. 

Dias depois da fala do ministro, a chefe de Comércio da UE, Cecilia Malmstrom, disse que selar um acordo de livre comércio com o Mercosul após 20 anos de negociações era a maior prioridade da União Europeia.

Merkel e Macron colocaram questão ambiental no Brasil como tema decisivo para fechar acordo.

Mercosul e a União Europeia selaram um acordo de livre-comércio entre os dois blocos no dia 28 de junho após mais de 20 anos de discussões.

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