Descrição de chapéu The New York Times

Primeira mulher à frente do Banco Central Europeu, Lagarde enfrentará guerra comercial

Nova presidente da autoridade monetária defende igualdade de gênero e tem vasto currículo para função

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Nova York

Em uma entrevista recente no programa “The Daily Show”, o apresentador Trevor Noah perguntou a Christine Lagarde se ela conhecia o termo “precipício de vidro”.

Segundo ele, esse é o fenômeno de entregar um posto a uma mulher em um momento perigoso, que torna seu sucesso altamente improvável, e com isso oferecer alguma desculpa para os homens.

Noah perguntou a Lagarde se ela não tinha encontrado um precipício de vidro ao ser apontada para o comando executivo do FMI (Fundo Monetário Internacional), em 2011, em um momento no qual muitos países continuavam a cambalear depois da crise financeira.

“Correto! Você está certo”, respondeu Lagarde. O posto, ela prosseguiu, “era intimidante”. Mas a circunstância —uma mulher promovida bem em tempo de comandar um fiasco— parecia familiar.
“Sempre que a situação é muito, muito ruim”, ela disse, “é hora de chamar a mulher”.

E a mulher foi chamada de novo. Nesta terça-feira (2), Lagarde foi indicada para a presidência do BCE (Banco Central Europeu), a primeira mulher a ser escolhida para o posto.

Isso fará dela uma das figuras mais poderosas das finanças internacionais e lhe atribuirá papel de liderança na orientação da segunda maior economia do planeta.

Ela sucederá o economista italiano Mario Draghi, que será lembrado por conduzir a zona do euro —o conjunto de 19 países que usam o euro como moeda— em uma era perigosa que viu tanto a Grécia quanto a Espanha muito perto da falência.

Hoje, o posto não parece sujeito aos mesmos perigos agudos.

Ainda assim, até recentemente Lagarde considerava a ideia de dirigir o BCE como bem pouco atraente. Em parte isso se deve aos efeitos adversos das guerras comerciais sobre a economia da região.

Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, em setembro, ela pareceu irritada com as especulações de que era candidata a diversos postos de liderança, em Bruxelas ou Frankfurt, Alemanha, onde fica a sede do BCE.

“Tenho um trabalho muito importante aqui e quero realizá-lo”, ela disse ao jornal. “Não vou deixar essa bela embarcação quando pode haver águas perigosas à frente.”

O que exatamente a teria levado a mudar de ideia não está claro, mas o BCE agora será comandado por uma mulher que, por seu carisma e inteligência, se tornou uma das figuras mais reconhecíveis das finanças mundiais.

Ela se sente igualmente confortável em meio à elite diplomática de uma conferência de cúpula do G20 —o grupo com as 20 maiores economias do mundo— e aos titãs empresariais do Fórum Econômico Mundial de Davos.

Com seus tailleurs Chanel e seus cabelos brancos elegantes, ela já apareceu não só em programas de entrevistas da TV americana como nas páginas de moda da revista Vogue e na lista de mulheres mais poderosas do planeta compilada pela revista Forbes.

Seu currículo é único, e inclui muitos outros momentos pioneiros.

Ela foi a primeira mulher presidente do conselho do escritório de advocacia Baker McKenzie, de Chicago, e a primeira mulher a se tornar ministra das finanças em um país do G8. E certamente será a primeira dirigente de banco central a ter competido no nado sincronizado, esporte no qual ela fez parte da equipe nacional francesa por três anos.

Em entrevista ao programa “Wait Wait... Don’t Tell Me”, da rádio pública americana NPR, ela discorreu sobre algumas das complexidades do esporte.

Christine Lagarde fala em conferência no FMI
Christine Lagarde fala em conferência no FMI - AFP

“É muito estranho”, ela disse, “porque se você compete no nado sincronizado e depila as pernas completamente, perde a sensação de posicionamento e de como está se saindo”.

Promover as mulheres vem sendo um dos temas recorrentes de sua carreira. Ela já falou sobre a urgência moral da questão da igualdade de gêneros e, quando alguém não se deixa impressionar por esse argumento, acrescenta as vantagens econômicas.

“Nossas pesquisas confirmam o fato”, ela postou em um blog do FMI em setembro. “Uma proporção maior de mulheres nos conselhos dos bancos e das agências de fiscalização das finanças está associado a uma maior estabilidade. Como eu disse muitas vezes, se o nome do banco fosse irmãs Lehman e não irmãos Lehman, o mundo poderia parecer muito diferente hoje.”

Com formação em leis antitruste, ela terá uma curva de aprendizado severa a enfrentar quanto à mecânica da política monetária. Também herdará uma economia que, embora não esteja em crise, ainda assim parece insegura. 

O medo de recessão foi amplificado pela guerra comercial, pelas tensões no Oriente Médio e pela complicada tentativa do Reino Unido de deixar a União Europeia.

Draghi vem falando sobre retomar algumas das medidas usadas para combater a crise financeira passada, como a aquisição de títulos a fim de baixar as taxas de juro e injetar dinheiro na economia. Mas essa abordagem é controversa, e mantém companhias, empresas ou bancos vivos ao lhes oferecer acesso a dinheiro barato.

Se os investidores perderem repentinamente seu apetite por títulos de dívida de alto risco, essas empresas despencariam em massa e a desaceleração da economia seria exacerbada.

Lagarde terá de decidir que abordagem apoiar: dinheiro mais fácil ou um avanço gradual rumo a um aperto no crédito a fim de eliminar lentamente as empresas zumbis.

Para alguns analistas, a indicação de Lagarde foi uma surpresa e um sinal de o quanto se tornou difícil para a Europa encontrar um candidato de consenso para a posição.

“Achei que eles poderiam optar por alguém com formação mais convencional”, disse Angel Talavera, economista-chefe da consultoria Oxford Economics para a zona do euro. “Ela não tem experiência em bancos centrais, e por isso é difícil julgá-la com base em declarações passadas sobre o assunto.”

O que Lagarde vem dizendo sobre a economia mundial parece ter se tornado mais otimista nos últimos meses. Em um post em um blog do FMI, em junho, ela disse que os dados sugeriam que o crescimento mundial podia estar se estabilizando.

A maior preocupação de Lagarde continuava a ser as guerras comerciais que fervilham em diversos lugares do mundo, e, em palavras caracteristicamente francas e que pareciam dirigidas diretamente ao presidente Donald Trump, ela alertou sobre o lado negativo das tarifas.

“São ferimentos autoinfligidos, que deveríamos evitar”, ela escreveu. “Como? Ao remover as barreiras tarifárias implementadas recentemente e evitar a criação de barreiras adicionais de qualquer espécie.” 

Tradução de Paulo Migliacci

Veja frases de Lagarde:

“Eu não vi o #MeToo chegando, mas eu o saúdo imensamente. [...]. Assédio sexual é apenas arranhar a superfície. A violência contra as mulheres ainda é uma questão enorme e não estamos falando apenas de países de baixa renda: acontece em todas as sociedades. Tem que ser discutida, abordada e combatida. Há coisas terríveis acontecendo com as mulheres”

“Eu sinceramente acho que nunca deve haver testosterona em excesso em uma sala"

"Se eu for eleita [chefe do FMI], vou trazer toda a minha expertise como advogada, ministra, gerente e mulher [para o trabalho]”

“Uma proporção maior de mulheres nos conselhos dos bancos e das agências de fiscalização das finanças está associada a uma maior estabilidade. Como eu disse muitas vezes, se o nome do banco fosse irmãs Lehman e não irmãos Lehman, o mundo poderia parecer muito diferente hoje.”

“Sempre que a situação é muito, muito ruim [...] é hora de chamar a mulher”.


 

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