Descrição de chapéu The New York Times

A geração dos millennials pode salvar a Playboy?

Sem os Hefners, funcionários a cima de 35 anos e breve proibição de nudez, revista ganha nova cara

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Jessica Bennett
Los Angeles | The New York Times
"É uma sessão de fotos de nudez total a ser realizada embaixo da água", dizia uma mulher ao telefone, com a voz ecoando por uma fileira de cubículos.

"Sim, é isso, sim", continuou ela. A pessoa do outro lado parecia não entender. "Quero dizer que não será na terra."

Era uma manhã de terça-feira na sede da Playboy Enterprises, em Westwood, e os editores se preparavam para fechar a edição de verão. Reunidos entre uma namoradeira de veludo e uma vista de Santa Monica, eles discutiam futuras reportagens —uma sobre dominação e sadomasoquismo, um perfil de Pete Buttigieg— enquanto na cozinha um barista desenhava orelhas de coelho em espuma de "latte".

Em seu escritório, Shane Singh, editor-executivo da Playboy, explicou que a sessão fotográfica subaquática, a ser feita naquele fim de semana, era para a capa da revista —mas não da maneira que os leitores mais velhos e maliciosos poderiam esperar.

Playboy
Equipe criativa da revista. Da esq. para dir.: Anna Wilson, editoria de fotografia, Erica Loewy, diretora criativa, Anita Little, editora, Shane Singh, editora-executiva, e Rachel Webber, chefe de marketing - Nathan Bajar - 6.jun.19/NYT

"A água deve representar gênero e fluidez sexual", disse Singh, sentado sob um retrato de Cindy Crawford por Herb Ritts, de 1988. As mulheres que posariam naquela água —seus membros enrolados em uma posição de balé— não eram apenas modelos, mas ativistas. Uma usa arte performática e mídia digital para compartilhar histórias sobre a epidemia de HIV. Outra é uma dançarina subaquática que promove a conservação do oceano. A terceira, uma artista belga, filmou-se recentemente andando nua por um bairro hassídico no Brooklyn durante um feriado sagrado (uma multidão enfurecida a expulsou).

"Quando me ligaram para esta sessão, achei que devia haver algum tipo de erro", disse mais tarde Ed Freeman, o fotógrafo de arte que criou a imagem da capa. "Eu não prestava atenção à Playboy havia muitos anos, desde criança. E pensei: 'Espere, eles estão me contratando para fotografar a capa? Eles sabem que eu sou gay?'"

Esta é uma Playboy mais nova, mais acordada e inclusiva —se você acreditar no que os executivos da empresa dizem, e se estiver inclinado a dar a uma marca envelhecida uma chance de se reinventar.

Mesmo antes do movimento #MeToo, houve muito debate sobre se uma publicação com o slogan Entretenimento para Homens tinha lugar em um mundo igualitário. Mas quando o fundador da Playboy, Hugh Hefner, morreu em 2017 esse argumento ficou mais barulhento: Hefner tinha sido uma voz progressista para a liberação sexual e a liberdade de expressão, ou um velho indecente que fomentou uma cultura da misoginia?

Na época, a Playboy estava em uma vertiginosa sequência de tentativas de revitalização. Nos últimos anos, a empresa cortou a circulação da revista; reduziu sua frequência; parou de imprimir anúncios; substituiu executivos-chefes; e, mais notavelmente, baniu brevemente a nudez —antes de trazê-la de volta, com o slogan Nu é normal.

No início do ano passado, Ben Kohn, um financista que ajudou a tornar a Playboy privada em 2011 e agora é seu presidente-executivo, disse a The Wall Street Journal que estava pensando em se livrar da revista para se concentrar em licenciamentos e joint ventures. Mas, em vez disso, a Playboy foi discretamente relançada neste ano —desta vez como uma publicação trimestral em papel grosso fosco e sem anúncios. É editada por um triunvirato da geração milenial: o abertamente gay Singh, 31; Erica Loewy, 26, diretora de criação; e Anna Wilson, 29 anos, que supervisiona fotografia e multimídia. Houve mulheres nas duas últimas posições antes, mas nunca as duas ao mesmo tempo.

O resultado é uma revista praticamente irreconhecível. Criada por Hefner e, pela primeira vez na história, sem Hefners envolvidos. Não Hugh, é claro, nem sua filha, Christie, que foi presidente e diretora-executiva de 1988 a 2008, nem seu filho Cooper, que deixou o cargo de diretor de criação em abril (Ele disse que começaria seu próprio portal de conteúdo adulto, HefPost). Um porta-voz da Playboy disse que a família Hefner não tinha mais participação financeira na empresa.

Playboy
Diretora criativa da Playboy, Erica Loewy, com Teela LaRoux, "playmate" de julho da revista, durante ensaio fotográfico em Los Angeles - Stephanie Noritz 5.mar.19/NYT

A edição de verão, agora, apresenta uma entrevista com Tarana Burke, a ativista que fundou o movimento #MeToo, conduzida por Dream Hampton, cujo documentário sobre R. Kelly levou a múltiplas acusações contra o cantor. Há uma charge queer e uma matéria especial sobre brinquedos sexuais de gênero neutro.

A edição de outono contará com um especial fotográfico da artista Marilyn Minter, que celebra pelos pubianos femininos.

"Temos cabelos ruivos, cabelos loiros e cabelos pretos —basicamente, todas as cores do arco-íris", disse Liz Suman, 35, editora de arte da revista. Ela acrescentou que em outro lugar na publicação "eu tenho colocado alguns pênis também".

"Coisas assim não teriam acontecido há um ano, com certeza", disse ela. "Ou talvez tivessem —mas não teriam sido comemoradas da mesma maneira."

'Big Bunny' de castigo

Durante seu apogeu nos anos 1960 e 1970, a Playboy representou, para uma determinada categoria de consumidores do sexo masculino, um estilo de vida: pródigo, ambicioso, sexualmente aventureiro.

Alcançando quase 7 milhões de assinantes em seu pico, a revista publicou trabalhos de Andy Warhol, Margaret Atwood e Hunter S. Thompson, bem como entrevistas com pessoas como Martin Luther King Jr. e Fidel Castro. Logo havia clubes, resorts e cassinos, além de um jato "Big Bunny" com uma discoteca dentro.

Mas então surgiram revistas nacionais mais explícitas, como Penthouse e Hustler, pornografia em vídeo que fazia essas revistas parecerem dóceis, e a internet, que inviabilizava tanto a publicação paga quanto a publicação impressa ao tornar tudo gratuito.

Hefner vendeu o jato e executivos experimentaram maneiras de estimular a marca, incluindo um reality show no canal E!, The Girls Next Door, que seguia as façanhas de Hefner vestindo pijama e suas múltiplas namoradas (uma das mulheres, Holly Madison, escreveu mais tarde um livro no qual descreveu Hefner como emocionalmente manipulador e dizia que as mulheres deviam fazer sexo grupal).

Mas a empresa estava perdendo dinheiro. Vendeu suas operações de TV e digitais para um grupo de pornografia na internet e, em 2011, Hefner conseguiu financiamento para recomprar ações e retirar a empresa da Bolsa de valores.

Playboy
A editora de foto da Playboy, Anna Wilson, e a diretora critativa, Erica Loewy, analisa as fotos feitas por Ana Dias, em Los Angeles - Stephanie Noritz 5.mar.19/NYT

"Eu estava lá para o último suspiro, o último hurra", disse Jimmy Jellinek, um ex-editor da Maxim que atuou como diretor de conteúdo da Playboy de 2009 a 2015. "Sempre acreditamos no que eu chamo de morte com dignidade. Nunca vimos uma saída para a espiral em que estávamos —nenhuma quantidade de reinvenção, de tirar a nudez, de torná-la mais interessante para a geração milenial. Então decidimos ser o melhor possível, no contexto do que nós somos."

Enquanto a revista sofria, certos aspectos da marca Playboy continuavam sendo linhas de negócios viáveis. Kohn, o diretor-executivo, refere-se a isso como "o mundo da Playboy": espíritos de marca, móveis e perfumes, colaborações de moda, um cassino em Londres, eventos pop-up, uma boate recentemente reaberta em Nova York e mais —especialmente na China. Lá, a marca tem mais de 3.000 lojas vendendo ternos, artigos de couro, malas e roupas esportivas, disse Kohn.

A Playboy não publica mais seus resultados financeiros, mas Kohn disse que os consumidores gastam cerca de US$ 3 bilhões (R$ 11,4 bilhões) em produtos e serviços da empresa a cada ano. Relançar a revista, disse ele, fazia sentido como uma espécie de "extensão de marca". Ele comparou o futuro da empresa à Goop de Gwyneth Paltrow.

Qual é o 'olhar Playboy'?

Esta versão mais nova e socialmente consciente da Playboy significou algumas mudanças no vernáculo que ela definiu há muito tempo.

As coelhinhas —garçonetes que trabalham nos Playboy Clubs— são agora embaixadoras da marca. As "playmates" —mulheres que aparecem nuas nas páginas duplas centrais— não são mais Miss Setembro, por exemplo, mas a Coelhinha de Setembro (são três em cada edição trimestral). Elas são pagas como freelancers e frequentemente continuam representando a Playboy em eventos públicos; a empresa disse que está trabalhando para lhes oferecer planos de saúde.

No escritório, os membros da equipe usam termos como interseccionalidade, positividade sexual e experiência vivida para descrever sua visão editorial —e divulgar suas credenciais feministas. Dois editores são ex-funcionários da Ms., revista fundada por Gloria Steinem.

A fotografia parece diferente também. As Playmates —que não aparecem mais na capa— são fotografadas principalmente por outras mulheres, com ângulos artísticos e coordenadores de intimidade no set.

"Algo que sempre dizemos uns aos outros é que criamos com intenção", disse Loewy, a diretora de criação, com sua escrivaninha coberta de sugestões para uma próxima sessão de fotos. Loewy estava com um vestido vermelho e brincos de argola de ouro, uma minúscula joia colada a um dos dentes da frente.

Ana Dias em ensaio fotográfico com Teela LaRoux, a "playmate" de julho, em Los Angeles - Stephanie Noritz - 5.mar.19/NYT

"Nós pensamos em todo mundo no set", continuou ela, "dos assessores de imprensa aos fornecedores de comida e maquiadores. Nada é desconsiderado na criação do que fazemos."

Quando Ryan Pfluger, que recentemente fotografou a capa da Times com Buttigieg, foi contratado para fotografar o ator Ezra Miller, disseram-lhe: "Capte Ezra Miller —mas deixe-o esquisito", disse ele (Miller acabou optando por aparecer de salto alto e orelhas de coelho).

Para a edição atualmente nas bancas, Loewy entrou em contato com a artista espanhola Carlota Guerrero, diretora de criação de Solange Knowles. Guerrero lançou a ideia de desafiar a proibição de topless em Barcelona, fazendo um grupo de mulheres seminuas, incluindo transexuais e prostitutas envoltas em tecido vermelho e pintura corporal vermelha, pelo bairro da luz vermelha da cidade.

Em "uma rua que é predominantemente propriedade de homens e onde toda garota tem uma história de medo para contar", escreveu Guerrero no Instagram, "foi uma declaração para nós recuperarmos esse espaço".

"Conversamos muito sobre o que é o olhar da Playboy e como precisamos diversificá-lo", disse Rachel Webber, 37, diretora de marketing. Ela entrou na empresa no ano passado, vinda da National Geographic, em parte, disse ela, por causa da oportunidade de trazer uma marca tradicional para a era moderna. "É quem está por trás da câmera tanto quanto na frente dela."

"É um pouco como estar em uma aula de estudos de gênero", acrescentou.

Usando sexo para vender

Tudo parece bastante verdadeiro. Exceto pelo elefante na sala —que é a Playboy ainda ser uma revista cheia de mulheres nuas, cujo executivo-chefe é um homem branco e hétero, com um homem morto ainda listado no topo do expediente como o editor-chefe fundador.

"Através das lentes de hoje, Hugh Hefner é grotesco e suas mulheres vítimas", disse Joanna Coles, ex-editora-chefe da Cosmopolitan, quando questionada se era possível reinventar a marca. "Eles devem deixá-la descansar com o smoking de Hugh."

Contradição, no entanto, sempre fez parte do espírito da Playboy —ou o que os funcionários mais novos podem chamar de sua arquitetura de marca. Os membros da equipe dizem hoje com orgulho que, em 1955, apenas dois anos após a estreia da Playboy, Hefner arriscou-se a publicar The Crooked Man, uma pequena história sobre uma realidade alternativa onde a homossexualidade é a norma e os heterossexuais são perseguidos.

Em outro momento, o famoso grito de guerra "Gay é bom" apareceu pela primeira vez em uma manchete na revista. A Playboy foi um dos primeiros apoiadores do direito ao aborto e doou dinheiro para a campanha da Emenda da Igualdade de Direitos, causas dos direitos civis e organizações de liberdade de expressão.

"No auge da influência da Playboy, nos anos 1960 e início dos 1970, foi o que poderíamos considerar a versão dos anos 1960 de acordar", disse Carrie Pitzulo, historiadora da Universidade Estadual do Colorado e autora de "Bachelors and Bunnies: The Sexual Politics of Playboy". "A crítica de que ela objetifica as mulheres, que privilegia homens heterossexuais brancos, é totalmente verdade. Mas há esse outro lado da Playboy que não tem sido amplamente reconhecido."

Playboy
Ana Dias fotografa Teela LaRoux, a "playmate" de julho, em Los Angeles - Stephanie Noritz - 5.mar.19/NYT

Enquanto alguns aspectos da história da marca foram polidos ao longo do tempo, outros ainda são uma mancha. A exposição de 1963 por Steinem das condições de trabalho no Playboy Club em Nova York ainda é uma leitura contundente —e relevante em face das recentes críticas ao clube reformulado, onde as funcionárias de corsete se vestem de coelhinhas e são instruídas a se inclinar quando servem bebidas.

Depois, é claro, há a mansão da Playboy, com seu famoso lago de carpas, animais exóticos no zoológico e banheiras de hidromassagem abastecidas com óleo para bebê da Johnson. Ela foi vendido em 2016 para J. Daren Metropoulos, um herdeiro da fortuna da Hostess, mas não sem uma plenitude de histórias feias —e um acúmulo de bactérias nas famosas piscinas com grutas que causaram um surto de doença pulmonar.

"A Playboy não existiria se mulheres e homens fossem iguais em nossa sociedade", disse Steinem a The New York Times no ano passado. "É a versão de gênero de um show de menestréis."

A circulação da Playboy foi medida de forma independente pela última vez em dezembro de 2017, em pouco menos de 400 mil, e de acordo com Kohn a revista chega agora a "algumas centenas de milhares" de assinantes, com 75% da audiência do sexo masculino.

Desde que Kohn assumiu o cargo há dois anos e meio ele disse que cancelou cerca de US$ 15 milhões (R$ 57 milhões) em parcerias e acordos de licenciamento de produtos que ele acredita "não representam mais a marca". Ele acrescentou que a empresa estava trabalhando para se expandir em cannabis, cuidados da pele, brinquedos sexuais e bem-estar sexual.

"Uma frase que você ouvirá muito por aqui é que a era dos dados difusos e paralamas acabou", disse Webber, diretora de marketing, parando de comer uma torrada com abacate para explicar o que são esses termos [relativos aos órgãos sexuais masculino e feminino].

Desde janeiro, Webber estava trabalhando com sua equipe para escrever uma declaração de missão que reflita a nova direção da empresa. O objetivo, segundo ela, é alcançar um público 50% feminino. Mas ela também é realista sobre o desafio pela frente.

"Olha, eu acho que o público-alvo é Sejamos relevantes", disse ela. "Mas acho que, para sermos relevantes, precisamos nos posicionar e atrair igualmente a todos os gêneros."

De acordo com um memorando para os parceiros sobre a nova "vibração da marca" Playboy, ela significa ser íntimo, mas não explícito, e atrevido, mas não brega.

"Falamos muito sobre quando algo é objetificação, quando é objetificação consensual ou quando é arte", disse Singh. "Eu acho que a objetivação remove a ação do sujeito. Objetivação consensual é a ideia de alguém se sentir bem consigo mesmo e querer alguém para olhá-lo. Arte significa, OK, podemos pendurá-lo em uma parede. E se é ambos, para nós é a grande vitória."

Pedi a ele para me mostrar a diferença e ele vasculhou uma pilha de arquivos da Playboy. Havia uma revista, desta época do ano passado, cuja capa mostrava uma mulher com meias pretas até a coxa, saltos pretos, com a bunda apoiada na curva de uma taça de Martini de tamanho humano.

Singh riu. "Preciso explicar por que colocar uma mulher numa taça de Martini provavelmente não é algo que faríamos?"

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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