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Historiador revê séculos de impasses comerciais entre China e Ocidente

Novo livro de Timothy Brook expõe as origens do autoritarismo chinês e traça paralelos das ações atuais com o passado do país

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James Kynge
Londres | Financial Times

Dizem que a história não se repete, mas ela muitas vezes rima. A história do relacionamento entre a China e os estrangeiros nos últimos oito séculos está tão repleta de rimas, reiterações e assonâncias que a cadência de seu engajamento com o mundo externo parece mal ter mudado.

Alguns dos ecos que reverberam pelos séculos só podem ser descritos como fantasmagóricos. Considere, por exemplo, os paralelos entre as negociações comerciais de Charles de Constant, um mercador europeu na década de 1780, e as do presidente americano Donald Trump.

Como Trump, Constant e seus colegas comerciantes europeus radicados na cidade de Cantão (atual Guangzhou), no sul da China, estavam frustrados.

Donald Trump e Xi Jinping em encontro durante o G20, no Japão - Brendan Smialowski - 29.jun.2019/AFP

Não era tanto o resultado do relacionamento comercial que os incomodava; os lucros com a venda das cargas de navios que vinham da Europa eram polpudos. Em lugar disso, era o sistema chinês que irritava: centenas de regras de engajamento, formais e informais, que pareciam existir para manter estrangeiros a distância.

Os europeus desejavam que a China abraçasse “la liberté du commerce” e o Estado de Direito, em parte como maneira de reduzir o poder arbitrário dos monopólios estatais chineses.

Mas as tentativas europeias de ganhar impulso nas conversações —como as de Trump atualmente— eram rejeitadas com desculpas vagas. Em um momento de birra, Constant escreveu em seu diário que “os mandarins nada recusam, mas nada aceitam” —a despeito do fato de que europeus “não têm medo de explicar suas posições claramente”.

Da mesma maneira que Trump está descobrindo hoje, Pequim não tem intenção de mudar seu sistema dominado pelo Estado em deferência aos apelos de estrangeiros. 

Em um tuíte recente, o presidente americano não só expressou a mesma frustração de Constant como tomou de empréstimo linguagem semelhante: “Os chineses são muito talentosos em aceitar coisa alguma. ‘É preciso ser duro e é isso que Trump está fazendo’”, escreveu o presidente, citando Sam Zell.

Ressonância histórica surge em cada país e cada cultura em grande parte porque os seres humanos são conduzidos por sua natureza a reagir de determinada maneira a circunstâncias semelhantes. Mas na China, argumenta Timothy Brook em seu excelente novo livro, “Great State”, há uma dimensão adicional de enorme importância.

Os fundamentos filosóficos básicos do Estado e do exercício do poder na China continuam consistentes nos mais de oito séculos transcorridos desde que a conquista pelos mongóis de Genghis Khan e seus sucessores resultou na fundação da dinastia chinesa Yuan, em 1271.

A visão de mundo do “Grande Estado”, que surgiu durante a era Yuan e prosseguiu nas dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912), e persiste em certa medida até hoje —é uma que confere ao governante uma autoridade potencialmente universal. As pessoas que vivem dentro das fronteiras da China devem se submeter a essa autoridade, e as pessoas que vivem fora do país precisam respeitá-la.

Na arquitetura simbólica em torno dos espaços nos quais chineses e não chineses interagem, o papel dos estrangeiros era o de se deixarem deslumbrar pelo esplendor e pelas realizações do Grande Estado. A ideia de igualdade entre Estados soberanos —o bloco básico de construção do chamado sistema da Westfália, que predomina no Ocidente— conquistou menos espaço na China.

A força deste livro está em parte no fato de que Brook, professor da Universidade da Colúmbia Britânica e autor do aclamado “Vermeer’s Hat”, não exagera ao expor seu caso. Embora não busque afirmar que as ações atuais da China são prefiguradas pelo passado do país, um leitor atento não deixará escapar os paralelos extraordinários.

“Encorajo o leitor a pensar sobre o relacionamento da China com o mundo e sobre como a história pode dar forma ao presente, mas esse aumento de escala cabe a ele”, Brooks escreve na introdução. “Minha tarefa é lhe fornecer 13 histórias que podem ser usadas para construir uma narrativa maior.”

"Great State: China and the World”, de Timothy Brook - Reprodução

O livro dele também reconhece que a atitude do Estado chinês com relação aos estrangeiros é complexa e muitas vezes contraditória. Em seu capítulo talvez mais poderoso, Brook expõe uma discussão esclarecedora entre dois funcionários da dinastia Ming sobre se a presença de missionários jesuítas representa vantagem ou desvantagem para o Grande Estado.

Os jesuítas que viviam na China no começo do século 17 representavam um desafio fundamental à visão tradicional chinesa sobre os estrangeiros como bárbaros desprovidos de cultura. Matteo Ricci, especialmente, ganhou considerável celebridade por levar ao país um mapa-múndi, bem como técnicas de astronomia, matemática e ciência que eclipsavam as disponíveis na China.

Em certo sentido, a discussão sobre os jesuítas continua. Enquanto China e o Ocidente se enfrentam quanto ao comércio, tecnologia e outras questões, é possível que o mundo passe a se parecer mais com a visão de Qiu Jun, um funcionário do governo chinês morto em 1495.

“Existe uma fronteira primordial entre o Céu e a Terra: chineses de um lado, estrangeiros do outro”, ele escreveu. “A única maneira de colocar o mundo em ordem é respeitar essa fronteira.”

Tradução de Paulo Migliacci

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