Descrição de chapéu The New York Times Cifras &

Odiar a Comic Sans não faz você melhor que ninguém

Tipografia que é saco de pancadas do design volta a ser assunto ao aparecer em carta de advogados no caso do impeachment de Trump

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nova York | The New York Times

Vincent Connare, o criador da fonte Comic Sans, tem algo a dizer sobre esse Frankenstein tipográfico: “Se você ama a Comic Sans, não sabe muito sobre tipografia. E se você odeia a Comic Sans, está precisando de um novo passatempo”.

De todas as coisas que amamos odiar —segundas-feiras, a família Kardashian, a banda Nickelback—, poucas evocam tanto desdém e indignação quanto o que Connare descreve afetuosamente como “a Justin Bieber das fontes”. 

A profundidade do desapreço da internet pela Comic Sans ficou muito clara nesta semana, quando um advogado que representa dois colegas de Rudy Giuliani informou ao Congresso que seus clientes não cumpririam exigências do inquérito de impeachment, em uma carta impressa com a detestada fonte.

O assunto rapidamente ganhou atenção no Twitter. Pelo menos um usuário recomendou que o advogado fosse proibido de continuar a exercer a advocacia.

Carta de advogados de Trump sobre seu impeachment escrita com a fonte Comic Sans
Carta de advogados de Trump sobre seu impeachment escrita com a fonte Comic Sans - Reprodução

Connare, porém, disse que acreditava saber o que o advogado estava fazendo, ao optar por usar a controversa fonte. Documentos legais costumam ser escritos na fonte Courier, mas a Comic Sans zomba da correção política.

“É como se ele tivesse dito que não só se recusaria a submeter os documentos como usaria uma letra que não se submete à solenidade da lei, ao Congresso e às instituições públicas”, afirma Michael Bierut, sócio do escritório de design Pentagram.

“Ou pode ser que ele só goste da Comic Sans. Difícil dizer. Poucas fontes causam tamanho agito na opinião pública.”

Mas convicções firmes podem servir como traço de união. Holly Combs, 43, se apaixonou por seu marido, David Combs, 20 anos atrás em função de seu desprezo compartilhado pela fonte Comic Sans.
“Ele me disse que seu objetivo era aprender sobre todas as fontes que existiam, e eu achei aquilo muito sexy”, diz.

Quando uma galeria local de arte lhe pediu um trabalho que requeria a fonte Comic Sans, o futuro casal se aproximou devido à repulsa mútua pelo que eles descreviam como a “menos bem pensada” das fontes.
Holly Combs afirma que “ele vivia propondo proibir a Comic Sans, e eu pensava que aquilo era motivo para passarmos o resto da vida juntos”.

O casal chegou a publicar um manifesto contra a Comic Sans e começou a vender uma linha de produtos relacionados à campanha. Eles colavam etiquetas em paredes e outdoors com o lema “Vamos Proibir a Comic Sans”.

Criada em 1994, a Comic Sans agora já estaria apta a viver sua crise de um quarto de vida —se não tivesse passado todos os seus primeiros 25 anos em crise de identidade. 

Apresentação da descoberta do Boson de Higgs com a fonte Comic Sans
Cientistas do centro europeu de pesquisa de partículas subatômicas empregaram a Comic Sans em apresentação histórica sobre o bóson de Higgs - Reprodução

A ideia da fonte surgiu quando Connare estava ajudando a desenvolver um sistema operacional de fácil uso na Microsoft. Ao rascunhar um balão para a fala de um “cachorrinho amarelo bonitinho”, Connare teve uma percepção: "Cachorros não falam em Times New Roman!” Ele decidiu que o programa precisava de uma nova fonte, mais brincalhona e com algo de infantil, e para isso buscou inspiração em quadrinhos e “graphic novels”.

Desde sua criação, a fonte atraiu declarações de desdém e ataques escancarados de desafetos. O chefe de Connare, Bob Norton, não gostava dela e a eliminou do malfadado programa, conhecido como Microsoft Bob. Mas a fonte persistiu em um pacote gráfico do Windows 95 Plus!

Paige Shelton, autora de “Comic Sans Murder”, livro de mistério que se passa em uma oficina de conserto de máquinas de escrever, diz que, quando a fonte foi lançada, “foi uma confusão Helvetica”.

A Comic Sans é o que Shelton define como “fonte divertida” e espalha sua anatomia pelo papel em traços mais densos que a esbelta Cambria ou a sensata Garamond. (Bierut diz que a Helvetica é “como ser chamado ao departamento pessoal”.) O espaçamento, ou “kerning”, entre as letras é irregular porque ela não foi projetada para uso em textos impressos.

Pra os tradicionalistas da tipografia, o uso da fonte pode significar frivolidade ou mesmo desrespeito. O site Comic Sans Criminal permite que pessoas denunciem usos inapropriados da fonte (para um registro de criminosos sexuais, ou por um médico para comunicar um diagnóstico). 

Tela do jogo The Sims usa a fonte Comic Sans
Tela do jogo The Sims usa a fonte Comic Sans - Reprodução

Em 2010, um empregado do Twitter revelou que as duas fontes de tráfego mais confiáveis do site eram queixas sobre as companhias de aviação e sobre a Comic Sans.

Bierut disse que a Comic Sans há muito se tornou “o saco de pancadas padrão do mundo do design”. Porque foi criada para simular o processo de escrita manual, ela é vista como não autêntica: um biscoito de fábrica, quando você esperava um biscoito caseiro.

“A sensação é equivalente à da voz de Mickey Mouse em um desenho”, afirma Bierut. “Causa uma estranha sensação de deslocamento”.

Mas o ódio pela Comic Sans jamais foi universal.

Ty, o criador dos Beanie Babies, usava a fonte. O mesmo vale para a Electronic Arts Games, que criou o jogo The Sims. Cientistas do CERN, o centro europeu de pesquisa de partículas subatômicas, empregaram a fonte em uma apresentação histórica sobre o bóson de Higgs, e Dan Gilbert, dono do Cleveland

Cavaliers, e da NBA, a empregou para agradecer a LeBron James por seus serviços ao time.

A fonte também é recomendada pela Associação Britânica de Dislexia. Em um texto em seu site, o Instituto Americano de Artes Gráficas diz que ela ajuda leitores que sofrem de deficiências, porque “elimina a ambiguidade entre as letras” e por causa de sua “variação na altura das letras”.

Em maio, David Combs decidiu que o projeto pela proibição da Comic Sans havia perdido completamente a proporção, e mudou o nome de seu grupo no Facebook para “Use Comic Sans”. “Ela se tornou tão ruim que é quase bacana de novo”, ele diz. (Sua mulher discorda.)

Connare afirma que usou a fonte que criou uma vez nas duas últimas décadas, para escrever uma carta de reclamação sobre sua banda larga. A empresa lhe fez uma restituição de 10 libras. “A fonte certamente chama a atenção.”

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.