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Trajetória acadêmica de negras é marcada pela superação de preconceitos

Elas relatam o desafio de se provarem em dobro, para si mesmas e para os outros

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São Paulo

Depoimentos: perseverança, apoio da família, ajuda de amigos e professores. Muitas pesquisadoras negras com competência reconhecida, que fazem carreiras em instituições de ensino e centros de pesquisa, no Brasil e no exterior, precisaram superar barreiras raciais, sociais e financeiras para seguir adiante. 

Um professor colocou o cartão de crédito dele na minha mão

Jaqueline Oliveira, 37, doutorado na Universidade Yale e professora em Rhodes College

Jaqueline Oliveira, 37, doutorado na Universidade Yale e professora em Rhodes College
Jaqueline Oliveira, 37, doutorado na Universidade Yale e professora em Rhodes College - Arquivo pessoal

Eu fui a primeira da família, tanto materna quanto paterna, a completar curso superior. Minha irmã e eu somos as únicas com mestrado e doutorado. O que explica uma pessoa de família sem muitos recursos financeiros e sem exemplos acadêmicos a serem seguidos se tornar Ph.D. e professora de economia? 

Eu diria sorte. Tive sorte de ter pais que, apesar de nunca terem colocado os pés numa universidade, colocaram a educação das filhas em primeiro lugar.

Sorte de ter acesso a universidade gratuita e de qualidade, já que meus pais, apesar de valorizarem educação, não teriam condições de financiar uma faculdade privada. Sorte de ter tido uma orientadora de graduação que reconheceu e valorizou os meus esforços durante o período em que cursei a faculdade de economia na UFMG, e me incentivou a fazer mestrado na USP. 

Sorte de, na USP, ter tido um professor que me apresentou a possibilidade de fazer o doutorado na Universidade Yale, algo que eu nunca imaginei estar ao meu alcance. 

Esse mesmo professor [o economista Denisard Alves] que colocou nas minhas mãos seu cartão de crédito para que eu pudesse pagar, em dólares, pelas taxas associadas aos processos seletivos das universidades norte-americanas. 

Óbvio que trabalho duro e muitas horas de estudo ajudaram, mas todo esse esforço provavelmente não teria resultado em carreira acadêmica sem o apoio dos meus mentores.

Felizmente, dentre os desafios que encontrei, não figuram discriminação de gênero e raça. Todas as dificuldades foram impostas pela situação socioeconômica.

Alisei o cabelo desde os 12 anos porque achava ele ruim

Thaiza Loiola Silva, 23, estudante de Economia no Insper e do programa Dn´A Women (do Goldman Sachs e outros bancos de investimento)

Thaiza Loiola Silva, 23, estudante de Economia no Insper e do programa Dn´A Women (do Goldman Sachs e outros bancos de investimento) - Karime Xavier/Folhapress

Venho de uma família muito humilde em Fortaleza. Meu pai é autônomo, vendedor de carros, e minha mãe é professora. 

Queria muito ter uma experiência internacional e consegui outra bolsa para terminar o ensino médio na Alemanha, em um colégio internacional. Fui para lá com 17 anos. Não falava nada de inglês, aprendi tudo lá. 

Lá, descobri minha identidade étnica. As pessoas dos grupos com quem eu mais me identifiquei, minhas melhores amigas, eram do continente africano. Achava interessante a forma como elas lidavam com o cabelo. Eu alisava o meu desde os 12 anos, porque achava que meu cabelo era ruim. Na Alemanha, resolvi descobrir como é meu cabelo natural.

Nessa época, ocorreu um episódio muito marcante. Quando voltei, em meados de 2015, era uma época muito ruim, meu pai não estava vendendo carros. Minha mãe estava sustentando a casa. Ela tinha um Fiat Uno caindo aos pedaços, avaliado nuns R$ 4 mil, que ela usava para ir trabalhar. 

Ela cogitou vender esse carro para pagar minha passagem de volta para a Alemanha. Minha bolsa incluía moradia, alimentação, mas a passagem, não. Acabamos dando um jeito, pegamos empréstimos com minhas tias.

Nessa época, a gente estava enfrentando uma recessão muito aguda. Decidi, ali, que queria trabalhar com Economia no futuro. Consegui bolsa integral do Insper que me paga auxílio moradia em São Paulo, me dá dinheiro para me manter, computador. Tenho esse privilégio gigantesco.

Muitas vezes, as pessoas dizem que sou extremamente esforçada. Sim, sou, mas tive muita sorte também. Meu primo, filho do irmão do meu pai, teve morte cerebral, por envolvimento com drogas, no mesmo dia em que recebi a notícia que tinha passado no programa de bolsas do Insper. 

Conforme fui subindo na carreira, fui ficando mais negra

Ana Paula Melo, 32, estudante de doutorado na Universidade de Wisconsin-Madison

Ana Paula Melo, 32, estudante de doutorado na Universidade de Wisconsin-Madison - Divulgação

Estive no Brasil recentemente e, quando você olha para a universidade, não tem como negar que a cara dela mudou. 

Minha geração representa mais ou menos uma transição. Entrei na universidade em 2008. Fiz faculdade em um contexto muito branco, excludente. Acho que deveria ter mais discussão no Brasil sobre isso. 

Li uma reportagem aqui nos Estados Unidos, recentemente, que mostrava uma diminuição do hiato entre os salários de mulheres e homens, mas isso não ocorria em relação aos salários de mulheres negras. 

Não tenho certeza sobre as estimativas do Brasil, mas imagino que, além de a mulher estar atrás, a mulher negra esteja ainda mais atrás e fico pensando: será que o mercado de trabalho está preparado para receber essa nova leva de mulheres negras, economistas e de outras áreas, que vão sair das universidades? 

Há iniciativas de mentoria sendo tomadas aqui nos Estados Unidos, que podem ser muito boas. 

Sei que há um choque quando você chega em um espaço e ninguém se parece contigo. Minha mãe é branca e meu pai é negro. Tenho uma pele relativamente clara, o que é um grande privilégio. Diferentes tons de pele, realmente, influenciam o racismo.

Mas conforme foi subindo na carreira, fui ficando mais negra do que a média. É quando vai ficando mais óbvio o quanto a questão racial é importante no Brasil. 

Nós, mulheres negras, não somos a cara do economista. Os programas de mentoria podem ajudar nisso, porque te ajudam a ver que outra pessoa parecida com você chegou lá.

A identificação com uma minoria, na minha vida, foi algo mais retrospectivo. Olho para trás e penso: ah, está aí por que eu achava que tinha que alisar meu cabelo ou por que fiz várias escolhas. Eu tive muitos privilégios, de ter oportunidade de fazer cursos, de pessoas que acreditaram em mim. 

Minha mãe é professora e diretora de escola pública, meu pai era músico e, hoje, cuida de uma terra que meu avô deixou. Eles nunca tiveram muito dinheiro. Mas o Brasil é tão desigual que, obviamente, minha condição era muito melhor que a de muitas pessoas.

Minha família estendida é de mulheres muito fortes, todas elas com carreira. Minha mãe se formou em matemática em uma época e em uma região em que mulheres não iam para a faculdade. 

Para fazer o curso preparatório para a prova de mestrado em Economia da USP, morei na casa de uma tia no Rio de Janeiro. Consegui bolsa porque conversei com o professor e ele entendeu a minha solicitação e me deu desconto. E por aí vai. 

Pensei em desistir por achar que não me encaixava na profissão

Vilma da Conceição Pinto, 29, pesquisadora do Ibre

Vilma da Conceição Pinto, 29, pesquisadora do Ibre - Eduardo Anizelli/Folhapress

Sou de família pobre. Minha mãe é gari, meu pai era pescador. Nunca estudei em escola particular. Todo meu ensino foi público ou com bolsa. 

Comecei a estagiar com 16 anos, pelo CIIE (Centro de Estudo Empresa-Escola). Fiz auditoria num shopping. Com o dinheiro da bolsa, comprei computador, paguei curso de inglês. 

Quando fazia cursinho pré-vestibular comunitário, via, normalmente pela tevê, economistas falando, fazendo análises. Passei a me interessar, pesquisar sobre o tema e gostei. Passei para a UERJ em 2009, com cota. Comecei a trabalhar num call center e, com o dinheiro do salário, pagava passagem.
 

Achei que ia ter dificuldade por ter estudado na escola pública e por estar trabalhando e estudando, mas não tive. Mas, depois, tive dificuldade para conseguir estágio em economia. O único que consegui foi no IBGE. Eu não tinha experiência com nada, só boas notas na faculdade. Acredito que muita gente não queira o estágio lá, talvez porque paga-se mal. 

Mas eu aceitei. Sou muito grata porque lá aprendi realmente sobre economia. Vi o quão importantes e sérias são as estatísticas produzidas pelo instituto.

Aí, decidi que queria continuar trabalhando com pesquisa econômica e contribuir para o desenvolvimento econômico do país.

Surgiu uma vaga de estágio na FGV-Ibre para trabalhar com índice de preços, me candidatei e passei. Mas, na época, o [economista] Gabriel Barros estava desesperado precisando de um estagiário para a área fiscal do Ibre e, como minha prova tinha sido muito boa, ele conversou com o pessoal da inflação e eles concordaram em me ceder.

Fiquei com medo, porque era uma área muito difícil. Acabei me dando bem, gostando muito. Estudava o tema e entregava muita coisa. Consegui a bolsa no mestrado [profissional] na EPGE [paga pelo Ibre], e acabei ficando na área fiscal após a saída do Gabriel do Ibre. 

Meu objetivo inicial era fazer um mestrado acadêmico. Precisaria me preparar bem e juntei dinheiro para pagar o cursinho preparatório. No último ano de faculdade, meu pai teve um problema de saúde, ficou internado e faleceu, e, nesse período, gastei todo o dinheiro que tinha economizado.

Sempre tento me superar, mas a gente tem deficiências. Quando fiz estágio, paguei o curso de inglês mais barato que encontrei e não o melhor. Tenho dificuldade com a língua inglesa. Isso é uma barreira que estou tentando superar agora.

São coisas que te deixam para trás em relação a outras pessoas, mas é difícil definir se é racial ou social, provavelmente uma combinação de ambos.

Quando quis ser economista, nunca havia me imaginado na posição em que estou hoje. Durante o curso, pensei em desistir, por achar que não me encaixava na profissão, mas desistir é muito difícil, quando tudo se conquista com dificuldades.

Sou muito grata a meus pais e a Deus por tudo que conquistei. 

É preciso entender que já fizemos o suficiente

Carolina Alves, 38, pesquisadora na Universidade de Cambridge e uma das fundadoras do D-Econ

Carolina Alves, pesquisadora em Cambridge e uma das fundadoras do movimento D-Econ, sobre diversidade nas universidades
Carolina Alves, 38, pesquisadora na Universidade de Cambridge e uma das fundadoras do D-Econ - Acervo pessoal/Divulgação

Acho que o meu caminho foi mais fácil que o do meu irmão, porque ele tem uma cor mais escura do que a minha, e eu passei muito tempo escondendo meu cabelo afro. Isso com certeza me ajudou a evitar muitas barreiras. 

Também me ajudou ter o exemplo da minha mãe, uma mulher muito forte, trabalhadora e independente. Ela sempre disse: “você precisa fazer e ponto”. Eu persisti bastante, acho que isso veio dela. 

Sempre evito olhar para passado, porque isso pode nos impedir de caminhar para frente. Mas, se pudesse fazer tudo de novo, aconselharia minha versão mais jovem a ter mais orgulho de si mesma, da sua origem de miscigenação racial. Isso teria me ajudado a construir uma autoestima, algo fundamental na vida, e que a constante discriminação de gênero, renda e raça pode destruir. 

Também me aconselharia a falar mais sobre racismo e sexismo e a dividir essas inquietações com amigos. Cresci no interior de São Paulo nos anos 1980 e fui para universidade nos anos 2000. Naquele tempo, a discussão sobre gênero e raça era muito silenciosa ou não exista. Arriscaria dizer que muita coisa mudou desde então. Apesar de vivermos um momento de reacionarismo global, temos mais instituições apoiando esse tipo de causa e mais informação disponível. 

A gente precisa saber de forma clara o que somos e como as pessoas nos veem. A minha falta de entendimento disso provavelmente fez com que eu tivesse trabalho extra e carregasse um fardo maior.

Contribuiu para deteriorar a minha confiança, porque eu reduzia as críticas a uma sensação de que eu não era boa o suficiente, que não deveria estar lá, que precisava ler mais ou ter mais treinamento.

Claro que as críticas são importantes para o nosso progresso intelectual. Mas há momentos em que é preciso entender que já fizemos o suficiente. Aumentar o número de negros e mulheres na academia não vai ser tão efetivo se a universidade não reconhecer o racismo institucionalizado e mudar seu currículo eurocêntrico.


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