Novos negócios hipster valorizam imóveis do centro de São Paulo

Valor médio do metro quadrado na região aumentou em cerca de 52% desde 2010

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Fernanda Lacerda
São Paulo

"Cidade-se. O novo morar. O centro de todas as tendências."

Há 20 anos seria impensável referir-se ao centro de São Paulo nesses termos; há dez, poderia ser o manifesto de um coletivo jovem ativista. Hoje é a introdução de uma propaganda da Gafisa sobre a região.

Bares, restaurantes e espaços culturais são frequentemente citados nos materiais publicitários que anunciam os novos empreendimentos da região, que se valem de um apelo jovem e descolado, recorrendo com frequência a grafites, decoração moderna e referências a bicicletas.

Nos últimos anos os bairros que compõem a subprefeitura da Sé —Bela Vista, Bom Retiro, Cambuci, Consolação, Liberdade, República, Santa Cecília e Sé— vêm passando por um boom de novos comércios e serviços que começa a mudar o perfil do centro da cidade, em um processo de valorização semelhante ao ocorrido em metrópoles como Bogotá e Cidade do México.

O valor médio do metro quadrado no centro passou de R$ 6.399 em 2010 para R$ 9.762 na média entre janeiro e setembro de 2019, segundo dados do Secovi-SP (sindicato do setor imobiliário) —uma alta de 52%.

A pesquisadora Luanda Vannuchi,  doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mapeou quase 50 empreendimentos lançados desde 2013 na região da República e seu entorno. Segundo ela, o valor elevado do metro quadrado dessas unidades é compensado pelo tamanho reduzido, o que faz com que o valor final não seja tão alto, atraindo investidores —e jovens moradores.

Vista do centro de São Paulo a partir do restaurante Esther Rooftop, na praça da República
Vista do centro de São Paulo a partir do restaurante Esther Rooftop, na praça da República - Keiny Andrade - 14.jan.19/Folhapress

Alguns empreendimentos chegam a custar R$ 15 mil/m², o que aproxima esses imóveis do patamar daqueles comercializados em bairros nobres como Pinheiros.

Atraídos pela boa infraestrutura de transportes, baixos aluguéis comerciais e pela ideia de ocupação da cidade, espaços culturais, lojas de roupa e decoração, bares e restaurantes pipocam pelas ruas, ajudando a reacender o mercado imobiliário e dando a ele um apelo específico: o jovem descolado de alto poder aquisitivo.

Ou, em outras palavras: o hipster, como sintetiza Bruno Bertoli, 31, dono do Beverino Vinhos, especializado em vinhos naturais e biodinâmicos.

O empresário conta que escolheu a rua General Jardim (que "liga" República a Santa Cecília) como endereço atraído pela atmosfera do centro paulistano.

“Eu tinha interesse por uma identificação minha num senso mais estético e [pelo centro] entremear diversas faixas socioeconômicas, porque muitos bairros de São Paulo acabam segregando e gerando bolhas de uma só classe”, diz.

O chef Olivier Anquier, dono do restaurante Esther Rooftop, que fica no último andar de um edifício na praça da República, diz que essa nova geração de jovens que buscam morar no centro virou um apelo para as construtoras.

"Setin e outras [incorporadoras] que montam novos prédios se apoiam nesse trabalho que nós fizemos”, diz, incluindo no rol os restaurantes A Casa do Porco e Dona Onça, também localizados na região.

Anquier comprou um apartamento há 13 anos no Edifício Esther, ícone da arquitetura moderna na cidade. Em 2016, transformou a antiga casa no Esther Rooftop.

“Eu cheguei em São Paulo pela primeira vez em 1980. Passando pelo centro, que era bem diferente do que é hoje, eu me senti muito próximo da realidade de quando morava em Paris. Essa noção de morar numa cidade, de ser urbano, eu encontrei aqui no centro. Eu gosto de andar na rua, de cruzar com muita gente diferente, eu gosto dessa riqueza e dessa simplicidade”, afirma.

O chef atribui a valorização recente da região ao esforço conjunto de moradores, empresários e espaços culturais, como o Farol Santander (no antigo prédio do Banespa) e o Sesc 24 de Maio.

Expansão

Segundo a pesquisadora Luanda Vannuchi  o centro, nesse momento, virou a grande frente de expansão do mercado imobiliário.

A Setin, uma das primeiras incorporadoras a apostar na região define seus empreendimentos como “a vanguarda do centro”.

São hoje cinco edifícios de studios e apartamentos de 1 dormitório, cuja metragem varia de 18 m² a 55 m². O tamanho reduzido das unidades é compensado pela estrutura do condomínio, que conta com lavanderia, espaço de home office, sala de reuniões e salão de jogos, entre outros.

O que no jargão do mercado é conhecido como “áreas comuns” transforma-se em “espaços de compartilhamento”, em linha com a tendência da moda, observa a pesquisadora.

O Smart Santa Cecília, da Gafisa, chega a se definir como “o primeiro home&share do Brasil”, prometendo oferecer compartilhamento de carros, bicicletas e até um apartamento para receber visitas via aplicativos desenvolvidos especialmente para o condomínio.

O tamanho reduzido e a estrutura compartilhada tornam muitos dessas unidades atrativas para aluguel por temporada em plataformas como o Airbnb.

O Vita Bom Retiro, da incorporadora Vitacon, se vende como “moradia on demand”. Com unidades tão pequenas quanto 14 m², o marketing do empreendimento foca na compra da unidade como forma de investimento para locações de curta duração.

No VN Novo Higienópolis, localizado na Santa Cecília, a pesquisadora encontrou unidades de 10 m² por R$ 99 mil.

​Pela Housi, uma plataforma online parceira da Vitacon semelhante ao Airbnb, o comprador do imóvel tem sua unidade mobiliada, divulgada e administrada —tudo 100% digital, “pronto para rentabilizar”, conforme diz o site. A Housi também se define como “diversa, inconformada, transparente e pronta para mudar o mundo”.

Mais negócios

Além da predileção pelo centro, a percepção de que uma série de negócios começavam a se espalhar pela região foi o que convenceu Maria Carolina Cruz, 39, a abrir junto com o marido o bar Cerveja a Granel na Santa Cecília.

Nesses dois anos de operação, a empresária conta já ser possível observar grandes mudanças, como clientes que vêm de outras regiões da cidade para passear pelo centro. Inicialmente, os frequentadores se limitavam a moradores da região.

Bertoli, do Beverino, em funcionamento há menos de dois anos, também se diz impressionado e até alarmado com as mudanças da região. Segundo ele, antes do bar abrir, haviam apenas dois outros locais com perfil semelhante nas proximidades, mas desde então surgiram pelo menos mais dez outros.

Vizinha do Beverino, a Ofício Feira acontece há cerca de um ano e meio na praça da rua General Jardim, mesclando negócios artesanais, oficinas de atividades e apresentações musicais comandados por mulheres.

O perfil dos frequentadores é de famílias entre 30 e 40 anos com filhos pequenos, jovens de 20 e poucos anos, casais homoafetivos e pessoas mais velhas, todos residentes da região, afirma Ana Paula Ribeiro, 31, organizadora da feira. Segundo ela, há uma demanda por espaços de convivência mais tranquilos do que aqueles propiciados por grandes eventos como a Virada Cultural.

Quem são os hipsters?

A abertura desses negócios com perfil hipster foi o ponto de partida da pesquisa do antropólogo Maurício Alcântara, que fez uma etnografia da Vila Buarque.

Segundo ele, hipsters são jovens adultos que, apesar de pertencerem às classes média e alta, têm uma postura de consumo e de relação com a cidade que se distancia do estereótipo mais amplo dos estratos sociais de onde vêm.

“O hipster reconhece essa diversidade do centro e quer estar no meio disso. [Consome] coisas mais caras e sofistificadas, muito ligadas a repertórios estéticos —o que é tendência, o que não é massificado ainda. São pessoas que têm uma sensibilidade muito grande sobre o que está acontecendo no mundo e reproduzem isso de forma mais ágil”, afirma.

Muitos desses empresários são pessoas que largaram suas carreiras para abrir o próprio negócio, e por isso buscam aluguéis baratos. Apesar da valorização imobiliária dos últimos anos, a oferta de imóveis comerciais no centro ainda é muito grande, além de existir uma alta rotatividade, afirma o antropólogo, o que segura o preço dos aluguéis.

Em cinco anos de operação, o bar Balsa, na República, teve o aluguel reajustado apenas em virtude de uma reforma necessária no prédio, conta Elohim de Barros, 40, sócio do negócio junto com a mulher. Por isso, ele discorda da visão de que o centro teria se tornado “hype” e de que os preços teriam subido muito.

“Ainda é uma região bem esquecida, ainda tem muito lugar legal abandonado”, diz.

Luanda Vannuchi também questiona a visão de que o centro estaria sendo ressuscitado agora. Segundo ela, o que houve foram décadas de desinvestimento pelo capital imobiliário, mas apesar disso a região seguiu sendo um dos polos mais dinâmicos da economia municipal em termos de comércio, serviços e empregos.

“O que acontece agora é uma mudança no perfil de renda, de comércios e serviços voltados para classes altas, uma economia da noite, criativa, para jovens. Mas esse argumento de que esses negócios estão dinamizando a economia da região invisibiliza as classes populares [que já estavam lá]”, diz.

A abertura de novos comércios e serviços voltados para um público jovem de classe média e alta costuma ser interpretada como sinal de gentrificação —processo em que a migração de populações de maior poder aquisitivo encarece aluguéis, expulsando os moradores mais pobres que residiam em uma região.

Segundo o antropólogo Maurício Alcântara, no entanto, não é isso o que ele encontrou em sua pesquisa.

“O que acontece agora é uma atualização, de uma nova geração das camadas médias e altas da cidade, de uma vocação que o bairro sempre teve desde quando foi fundado. A Vila Buarque sempre teve bastante vida boêmia e diversidade de usos, até porque você tem a Universidade Mackenzie, unidades da USP como a [rua] Maria Antônia”, diz.

Não houve, afirma, deslocamento de população para abrir espaço aos novos moradores. Cenário semelhante ocorre com os negócios mapeados pelo pesquisador: muitos deles foram abertos em espaços anteriormente vazios ou caracterizados por alta rotatividade.

Alcântara também questiona o estereótipo do “hipster novaiorquino”, muitas vezes aplicados para se referir aos hipster locais.

Segundo ele, embora sejam pessoas de maior poder aquisitivo, não são propriamente ricos. “Estamos falando de pessoas com curso superior e algum dinheiro guardado, que podem escolher onde vão morar dentro de suas possibilidades”, diz.

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