Criminalização do calote no ICMS cria estímulo para não declarar imposto, dizem especialistas

Fisco passaria a ter maior dificuldade de aferir dívidas dos contribuintes nesses casos

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São Paulo

Um dos maiores riscos da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) desta quarta (18) de passar a considerar crime o não pagamento de ICMS declarado pelo comerciante às Fazendas estaduais é o incentivo à não declaração de impostos, segundo advogados tributaristas ouvidos pela reportagem. 

Se isso ocorrer, dizem eles, o fisco terá maior dificuldade de aferir as dívidas dos contribuintes e de fazer a execução fiscal dos montantes.

Para defensores da criminalização, contudo, o novo entendimento só atinge devedores recorrentes que agem de má fé e, por isso, não deve suscitar apreensão do contribuinte que eventualmente atrase o pagamento do tributo por falta de recursos, por exemplo.

Os ministros do Supremo deixaram expresso na tese fixada ao final do julgamento que só será punido criminalmente o comerciante que, “de forma contumaz e com dolo [intenção] de apropriação”, deixar de recolher o ICMS cobrado do consumidor que adquiriu a mercadoria ou o serviço.

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O ministro Luís Roberto Barroso, relator do processo sobre a criminalização de calote de ICMS declarado - Pedro Ladeira - 23.out.19//Folhapress

Para o advogado Heleno Taveira Torres, professor de direito financeiro da USP, apesar de o julgamento ter se debruçado sobre um caso específico e não ter repercussão geral, a tendência é de que tribunais e juízes sigam o novo entendimento.

“Na prática, dessa decisão resultará um aumento do número de denúncias por parte do Ministério Público dos estados e os fiscos estaduais passarão a usar um instrumento de intimidação, que é a possibilidade de prisão”, afirma ele.

“O ministro [Luís Roberto] Barroso formulou a tese de que o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de fazer o pagamento do imposto comete o crime de apropriação indébita. O problema é que a figura do devedor contumaz não está qualificada pelo direito ainda. Não há regulamentação, nem tipificação.”

A tese, que em teoria só valeria para o ICMS, poderia ser adotada também pelo Judiciário para a cobrança de tributos como o ISS e o IPI, segundo Torres. Para ele, o ponto positivo da medida é a exigência da comprovação de que o contribuinte não pagou o tributo por má fé.

“A decisão do STF pode ter o efeito de acabar induzindo a sonegação. Antes, o sujeito declarava o imposto e, numa situação de crise, não fazia o pagamento e poderia ter uma sanção. Agora, pode ser alvo de uma ação penal. Pode surgir o sujeito que não declara por medo da prisão. Com isso, ele transfere ao fisco [a responsabilidade de calcular o valor devido], que pode fiscalizar os grandes contribuintes, mas não todos.”

Para Hugo Machado Segundo, tributarista e professor da UFC (Universidade Federal do Ceará), “o efeito prático é que o contribuinte que não tiver condições de pagar o imposto não vai declarar mais. O fisco vai ter de provar que o empresário fez isso de má fé, provar que foi fraude, para caracterizar a apropriação indébita”.

Apenas a simples não declaração, segundo ele, não pode ser considerada crime. “É similar ao caso do Imposto de Renda. O contribuinte pode se esquecer de declarar um rendimento. O fisco tem meios para descobrir isso e autuar, mas não necessariamente há crime.”

A possibilidade de sonegar o ICMS hoje é reduzida devido ao sistema de notas fiscais eletrônicas, segundo Richard Dotoli, professor da FGV Direito Rio.

Ele diz, contudo, que a criminalização do calote de impostos pode fazer com que o empresário em grave dificuldade financeira, por medo, priorize o pagamento do imposto em detrimento de outras dívidas.

“Numa situação dramática, entre o pagamento de um tributo federal e um estadual, como deixar de pagar o último é crime, o empresário não pagaria o federal. Entre pagar o estadual e a folha de salários, por exemplo, as obrigações trabalhistas poderiam ser prejudicadas”, afirma Dotoli.

Outro problema, segundo ele, é que a cobrança do ICMS ocorre de maneira antecipada na cadeia produtiva.

“A maioria das coisas que compramos já tem o tributo embutido no preço, ele já foi cobrado, às vezes do fabricante. Acontece que o consumidor que sai com uma televisão do comércio, por exemplo, pode parcelar a compra e não efetuar o pagamento. Nesse caso, o estado exige o pagamento do ICMS na íntegra, não existe ponderação pela falta da conclusão da cadeia”, diz.

Defensor do novo entendimento do STF, o procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, Fernando Comin, o Supremo fixou uma tese geral e vinculante que extrapola o julgamento do caso apreciado pelo tribunal.

A discussão chegou à corte a partir de um caso de dois empresários de Santa Catarina. Eles declararam operações de venda ao fisco, mas deixaram de pagar o ICMS devido. Foram denunciados criminalmente pelo Ministério Público estadual.

Para ele, está claro na decisão que nem todo devedor de ICMS comete delito. “Há a exclusão de culpabilidade, por exemplo, quando o comerciante é atingido por uma crise e tem de escolher entre pagar salários e tributos. O alvo da decisão são os maus empreendedores que incorporam no seu modelo de negócios a sonegação como regra”.

Ele diz que, embora não haja consenso sobre o que é um devedor contumaz, há leis estaduais que tipificam a figura. 

“Em Santa Catarina, a lei caracteriza como contumaz o devedor que não pagou tributos por ao menos oito meses em um período de doze meses. O Executivo e o Legislativo podem assumir a tarefa de regulamentar isso. Na ausência de regulamentação, o Judiciário precisará definir”.

Segundo Comin, o incentivo à sonegação não existiria porque as penas para o crime são mais graves que as do calote.

“São dois crimes diferentes, com penas distintas. A sonegação prevê pena de dois a cinco anos. A não declaração, de seis meses a dois anos, e ainda permite o parcelamento tributário que exclui a ação penal, por exemplo”, diz.

NÃO PAGAMENTO DE ICMS EM 2018

Estado Total da arrecadação de ICMS, em R$ Total de inadimplência (em valores absolutos, em R$) Total de empresas inscritas no cadastro de contribuintes Total de empresas inadimplentes
RJ 20.028.543.037 1.079.401.482 275.326 5.429
ES 9.724.022 267.552 21.959 3.409
BA 139.720.443 332.536.530 456.307 4.578
PE 6.692.504.717 665.117.878 33.058 não informado
MT 5.586.776.674 120.805.702 não informado não informado
RN 2.539.384.325 55.135.776 não informado 1.017
MG 39.882.641.417 512.599.840 99.514 4.997
SE 3.098.051.549 31.062.579 não informado 780
AL 3.943.520.583 62.362.411 não informado 1.156
MA 6.382.424.358 4.670.496.195 110.169 16.227
PA 10.663.604.652 774.164.483 72.908 12.300
SC 18.195.593.317 831.869.122 não informado não informado
AM 9.153.146.745 53.524.480 não informado 1.510
CE 11.805.488.448 42.943.078 não informado 1.529
GO 15.053.372.089 376.757.350 não informado 2.950
MS 9.378.718.207 61.638.139 não informado 977
PB 4.019.842.889 43.918.523 não informado 1.695
PI 4.266.331.447 77.074.171 não informado 1.911
PR 29.675.875.338 614.939.298 não informado 5.112
RS 33.708.934.490 2.016.841.373 não informado 4.006
RO 1.894.740.515 210.541.785 não informado 10.413
RR 868.489.575 132.158.993 não informado 1.386

Os estados de SP, AP, AC e TO e o DF não encaminharam seus dados ao Supremo | Fonte: Consefaz (conselho de secretários da Fazenda)/STF​

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