Um dos maiores riscos da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) desta quarta (18) de passar a considerar crime o não pagamento de ICMS declarado pelo comerciante às Fazendas estaduais é o incentivo à não declaração de impostos, segundo advogados tributaristas ouvidos pela reportagem.
Se isso ocorrer, dizem eles, o fisco terá maior dificuldade de aferir as dívidas dos contribuintes e de fazer a execução fiscal dos montantes.
Para defensores da criminalização, contudo, o novo entendimento só atinge devedores recorrentes que agem de má fé e, por isso, não deve suscitar apreensão do contribuinte que eventualmente atrase o pagamento do tributo por falta de recursos, por exemplo.
Os ministros do Supremo deixaram expresso na tese fixada ao final do julgamento que só será punido criminalmente o comerciante que, “de forma contumaz e com dolo [intenção] de apropriação”, deixar de recolher o ICMS cobrado do consumidor que adquiriu a mercadoria ou o serviço.
Para o advogado Heleno Taveira Torres, professor de direito financeiro da USP, apesar de o julgamento ter se debruçado sobre um caso específico e não ter repercussão geral, a tendência é de que tribunais e juízes sigam o novo entendimento.
“Na prática, dessa decisão resultará um aumento do número de denúncias por parte do Ministério Público dos estados e os fiscos estaduais passarão a usar um instrumento de intimidação, que é a possibilidade de prisão”, afirma ele.
“O ministro [Luís Roberto] Barroso formulou a tese de que o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de fazer o pagamento do imposto comete o crime de apropriação indébita. O problema é que a figura do devedor contumaz não está qualificada pelo direito ainda. Não há regulamentação, nem tipificação.”
A tese, que em teoria só valeria para o ICMS, poderia ser adotada também pelo Judiciário para a cobrança de tributos como o ISS e o IPI, segundo Torres. Para ele, o ponto positivo da medida é a exigência da comprovação de que o contribuinte não pagou o tributo por má fé.
“A decisão do STF pode ter o efeito de acabar induzindo a sonegação. Antes, o sujeito declarava o imposto e, numa situação de crise, não fazia o pagamento e poderia ter uma sanção. Agora, pode ser alvo de uma ação penal. Pode surgir o sujeito que não declara por medo da prisão. Com isso, ele transfere ao fisco [a responsabilidade de calcular o valor devido], que pode fiscalizar os grandes contribuintes, mas não todos.”
Para Hugo Machado Segundo, tributarista e professor da UFC (Universidade Federal do Ceará), “o efeito prático é que o contribuinte que não tiver condições de pagar o imposto não vai declarar mais. O fisco vai ter de provar que o empresário fez isso de má fé, provar que foi fraude, para caracterizar a apropriação indébita”.
Apenas a simples não declaração, segundo ele, não pode ser considerada crime. “É similar ao caso do Imposto de Renda. O contribuinte pode se esquecer de declarar um rendimento. O fisco tem meios para descobrir isso e autuar, mas não necessariamente há crime.”
A possibilidade de sonegar o ICMS hoje é reduzida devido ao sistema de notas fiscais eletrônicas, segundo Richard Dotoli, professor da FGV Direito Rio.
Ele diz, contudo, que a criminalização do calote de impostos pode fazer com que o empresário em grave dificuldade financeira, por medo, priorize o pagamento do imposto em detrimento de outras dívidas.
“Numa situação dramática, entre o pagamento de um tributo federal e um estadual, como deixar de pagar o último é crime, o empresário não pagaria o federal. Entre pagar o estadual e a folha de salários, por exemplo, as obrigações trabalhistas poderiam ser prejudicadas”, afirma Dotoli.
Outro problema, segundo ele, é que a cobrança do ICMS ocorre de maneira antecipada na cadeia produtiva.
“A maioria das coisas que compramos já tem o tributo embutido no preço, ele já foi cobrado, às vezes do fabricante. Acontece que o consumidor que sai com uma televisão do comércio, por exemplo, pode parcelar a compra e não efetuar o pagamento. Nesse caso, o estado exige o pagamento do ICMS na íntegra, não existe ponderação pela falta da conclusão da cadeia”, diz.
Defensor do novo entendimento do STF, o procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, Fernando Comin, o Supremo fixou uma tese geral e vinculante que extrapola o julgamento do caso apreciado pelo tribunal.
A discussão chegou à corte a partir de um caso de dois empresários de Santa Catarina. Eles declararam operações de venda ao fisco, mas deixaram de pagar o ICMS devido. Foram denunciados criminalmente pelo Ministério Público estadual.
Para ele, está claro na decisão que nem todo devedor de ICMS comete delito. “Há a exclusão de culpabilidade, por exemplo, quando o comerciante é atingido por uma crise e tem de escolher entre pagar salários e tributos. O alvo da decisão são os maus empreendedores que incorporam no seu modelo de negócios a sonegação como regra”.
Ele diz que, embora não haja consenso sobre o que é um devedor contumaz, há leis estaduais que tipificam a figura.
“Em Santa Catarina, a lei caracteriza como contumaz o devedor que não pagou tributos por ao menos oito meses em um período de doze meses. O Executivo e o Legislativo podem assumir a tarefa de regulamentar isso. Na ausência de regulamentação, o Judiciário precisará definir”.
Segundo Comin, o incentivo à sonegação não existiria porque as penas para o crime são mais graves que as do calote.
“São dois crimes diferentes, com penas distintas. A sonegação prevê pena de dois a cinco anos. A não declaração, de seis meses a dois anos, e ainda permite o parcelamento tributário que exclui a ação penal, por exemplo”, diz.
NÃO PAGAMENTO DE ICMS EM 2018
Estado | Total da arrecadação de ICMS, em R$ | Total de inadimplência (em valores absolutos, em R$) | Total de empresas inscritas no cadastro de contribuintes | Total de empresas inadimplentes |
---|---|---|---|---|
RJ | 20.028.543.037 | 1.079.401.482 | 275.326 | 5.429 |
ES | 9.724.022 | 267.552 | 21.959 | 3.409 |
BA | 139.720.443 | 332.536.530 | 456.307 | 4.578 |
PE | 6.692.504.717 | 665.117.878 | 33.058 | não informado |
MT | 5.586.776.674 | 120.805.702 | não informado | não informado |
RN | 2.539.384.325 | 55.135.776 | não informado | 1.017 |
MG | 39.882.641.417 | 512.599.840 | 99.514 | 4.997 |
SE | 3.098.051.549 | 31.062.579 | não informado | 780 |
AL | 3.943.520.583 | 62.362.411 | não informado | 1.156 |
MA | 6.382.424.358 | 4.670.496.195 | 110.169 | 16.227 |
PA | 10.663.604.652 | 774.164.483 | 72.908 | 12.300 |
SC | 18.195.593.317 | 831.869.122 | não informado | não informado |
AM | 9.153.146.745 | 53.524.480 | não informado | 1.510 |
CE | 11.805.488.448 | 42.943.078 | não informado | 1.529 |
GO | 15.053.372.089 | 376.757.350 | não informado | 2.950 |
MS | 9.378.718.207 | 61.638.139 | não informado | 977 |
PB | 4.019.842.889 | 43.918.523 | não informado | 1.695 |
PI | 4.266.331.447 | 77.074.171 | não informado | 1.911 |
PR | 29.675.875.338 | 614.939.298 | não informado | 5.112 |
RS | 33.708.934.490 | 2.016.841.373 | não informado | 4.006 |
RO | 1.894.740.515 | 210.541.785 | não informado | 10.413 |
RR | 868.489.575 | 132.158.993 | não informado | 1.386 |
Os estados de SP, AP, AC e TO e o DF não encaminharam seus dados ao Supremo | Fonte: Consefaz (conselho de secretários da Fazenda)/STF
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.