Intenso entra e sai caracteriza cargos de confiança do governo federal

Menos da metade dos que ocupam postos comissionados vieram de nível hierárquico anterior

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São Paulo

Nem metade dos profissionais que exercem posições de confiança no governo federal tem uma progressão gradual na carreira, como as ascensões meritocráticas típicas do setor privado.

É o que mostra um estudo inédito da Enap (Escola Nacional de Administração Pública) que será divulgado nesta segunda-feira (9/12).

O levantamento revela que, nas últimas duas décadas, as trajetórias dos cargos comissionados no Brasil foram marcadas por saltos, interrupções abruptas ou pura inércia.

Nos sete níveis de hierarquia comissionados, as parcelas de profissionais de um certo cargo que passaram pelo patamar imediatamente anterior variam bastante, mas nunca ultrapassam 50%.

Da esquerda para a direita, o atual presidente do Inep, Alexandre Lopes, o quarto a ocupar o cargo neste ano. Antes de assumir, atuava como diretor legislativo da secretaria-executiva da Casa Civil. Seu antecessor, Elmer Vicenzi, é delegado e assumiu o posto por um mês em meados de abril. Antes dele, Marcus Vinicius Rodrigues, professor da FGV ligado aos militares, ficou no posto pouco mais de dois meses, em substituição a Maria Inês Fini, nomeada por Temer e demitida em janeiro - José Cruz/Marcelo Camargo/Agência Brasil

Entre os 1.883 funcionários que desempenharam funções como secretários nacionais ou presidentes de fundações — equivalentes ao nível 6 — 46,8% vieram do 5 (leia os níveis no infográfico abaixo). Trata-se do percentual mais alto nesse recorte específico. Porém, entre eles, apenas 31% haviam passado pelo patamar 4 e somente 11,4% pelo 3.

No caso dos mais de 30 mil funcionários que tiveram cargos comissionados táticos, como coordenadores, 14,3% progrediram a partir do nível imediatamente anterior.

“Não há uma lógica de incentivos ao bom desempenho, em que as pessoas sobem gradualmente”, diz Diogo Costa, presidente da Enap.

Segundo ele, os dados confirmam o que especialistas dizem ironicamente: “as carreiras de confiança do setor público progridem mais como uma roda gigante do que como uma escada rolante”.

A pesquisa, comandada pelo economista Leonardo Monastério, envolveu uma análise da trajetória individual de 1,2 milhão de servidores entre 2000 e 2018. 

O levantamento é parte de uma iniciativa da Enap que buscará traduzir para a sociedade brasileira o que ocorre no governo federal por meio de dados elaborados de forma acessível.

A ideia de investigar a dinâmica dos cargos comissionados —criados pela Constituição de 1988— partiu de um consenso crescente sobre a influência que eles exercem na direção e na qualidade das políticas públicas, embora representem menos de 1% do funcionalismo federal. 

Atualmente, há mais de 30 mil postos que recebem gratificação, com salários entre R$ 2.701 e R$ 17.328. Já o total de servidores federais ultrapassa 600 mil.

“Embora o poder político e administrativo varie de um nível hierárquico para outro, são cargos com nível de discricionariedade grande”, diz o sociólogo Felix Lopez, pesquisador do Ipea.

Segundo ele, que estuda esse tema, os ocupantes dos cargos 5 e 6 tomam decisões relativas à formulação e à implementação de políticas. Por isso, suas nomeações são tão cobiçadas pelos partidos políticos em Brasília.

“Eles controlam parte da burocracia importante para implementar políticas” afirma o pesquisador.

Ainda que tenham menor poder, os funcionários enquadrados nos patamares mais baixos também tomam decisões importantes, sujeitas à influência política.

Um diretor de hospital público pode decidir, por exemplo, dar prioridade de atendimento a certos grupos ou pessoas, ressalta Lopez.

O raio de influência dos níveis hierárquicos menores faz com eles sejam mais disputados por políticos locais, afirma o pesquisador.

Quando um funcionário de confiança não vem de patamares hierárquicos anteriores, ele ou ela pode ter vindo do próprio serviço público, porém sem comissionamento. Outra origem possível é o setor privado.

A gratificação paga para quem vem de fora da esfera pública é maior do que o valor recebido pelos servidores de carreira.

Monastério explica que a indicação de profissionais de empresas privadas não é necessariamente ruim. Dependendo da situação, ela pode ser, inclusive, positiva.

Quem vem de fora pode trazer visões diferentes e inovadoras que permitam atacar problemas de forma mais eficiente, por exemplo.

Além disso, diz o economista, há postos muito importantes —como os de natureza especial, que incluem ministros, e até outros de hierarquia menor —em que a indicação de aliados mais afinados com o projeto político eleito pela população faz sentido.

O problema é que, além da falta de progressão gradual nas carreiras comissionadas, o vaivém nesses cargos é muito intenso no Brasil.

Usando a mediana —medida que separa a metade maior da menor de uma amostra—, uma pesquisa de Lopez mostrou que o tempo de permanência nessas posições costuma ser de 25 meses. Ou seja, pouco mais da metade de um mandato presidencial.

O estudo do sociólogo avaliou os ocupantes dos cargos comissionados chamados DAS (Direção e Assessoramento Superior) entre 1999 e 2016.

Em momentos de instabilidade nos governos, o entra e sai em postos de confiança pode chegar a níveis altíssimos. Um exemplo ocorreu, neste ano, no Inep, instituto ligado ao Ministério da Educação, responsável pelo Enem. 

Alvo de disputas de correntes políticas diferentes dentro do governo de Jair Bolsonaro, o órgão teve três ocupantes em menos de cinco meses.

Essa característica tem chamado a atenção até de estudiosos de fora. Um capítulo do livro “Innovation in Brazil: Advancing Development in the 21st Century” publicado neste ano trata do efeito da instabilidade institucional sobre a inovação no Brasil.

“Essas agências vêm sendo comandadas por pessoas que mal têm tempo de descobrir o que elas fazem”, diz trecho da obra, organizada pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology).

A instabilidade nos cargos de confiança do governo também ficou evidente na análise feita por Monastério.

Ele e sua equipe estudaram as trajetórias de todos os servidores públicos em recortes de dois em dois anos.

Descobriram que, nesses intervalos, 50% dos profissionais que ocupavam os níveis hierárquicos 4 ou 5 no início do período haviam deixado o cargo no fim do ciclo.

Entre eles, apenas 1% evoluíram para o nível seguinte nas janelas de dois anos analisadas. O destino da maioria foi retroceder para um nível anterior, perder a gratificação continuando como servidor ou deixar o setor público.

“A falta de uma trajetória gradual faz com que não existam referências de progresso na carreira. Isso desestimula o servidor”, diz Monastério, que é coordenador de Ciências de Dados da Enap.

Segundo ele, nos postos de menor nível hierárquico há ainda certa inércia. Entre os ocupantes dos níveis hierárquicos 1, 2 e 3, 60% permaneceu na mesma função após os intervalos de dois anos analisados na pesquisa.

Esses funcionários não mudam de função, mas recebem aumentos salariais, previstos na carreira do funcionalismo.

A reforma administrativa proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, pode não atacar os problemas evidenciados pela pesquisa da Enap, já que tende a focar em pontos como os critérios para a entrada no funcionalismo e as regras para a estabilidade dos servidores de forma geral mas, não necessariamente, dos ocupantes de cargos comissionados.

Para Costa, presidente da Enap, a alta rotatividade em cargos de confiança e a falta de progressão nesses postos pode levar o servidor a se dedicar mais à manutenção de contatos políticos do que à entrega de resultados.

Além disso, segundo Lopez, a saída brusca de um funcionário de confiança pode afetar severamente a condução das políticas públicas, ao desencadear uma “queima de memória institucional”.

“Se conseguíssemos traduzir isso em termos de custos econômicos, descobriríamos que há uma perda brutal para o país”, diz o especialista.

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