Descrição de chapéu Financial Times

As dúvidas que persistem sobre a fuga de Carlos Ghosn do Japão

Processos podem ser interrompidos sem a presença do réu mais importante

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Tóquio e Beirute | Financial Times

Carlos Ghosn disse ter chegado ao seu país de origem, o Líbano, deixando o que chamou de “injustiça e perseguição política” no Japão. A incrível fuga ocorreu enquanto o ex-presidente da Nissan enfrentava rígidas condições de fiança e estava sob vigilância da polícia e de procuradores enquanto aguardava o julgamento para que pudesse se defender das acusações de violações financeira. Essas são as perguntas-chave sobre o caso.

1) Como ele escapou?

Quando todos os detalhes finalmente aparecerem, a fuga de Ghosn pode figurar como uma das maiores de todos os tempos. Como, exatamente, um dos rostos mais conhecidos do Japão, cujos movimentos fora de seu apartamento eram todos monitorados pelas autoridades, e que estava com os três passaportes ainda nas mãos de seus advogados, passou por tudo isso e conseguiu ir da área central de Tóquio até Beirute?

Especulações em círculos diplomáticos e jurídicos já produziram uma série de teorias sobre como a fuga foi arquitetada. Uma teoria envolvendo a saída de sua casa em Tóquio em uma caixa de instrumentos musicais foi negada por pessoas próximas a ele. Uma explicação plausível nesse momento é que ele tenha contratado uma empresa de segurança privada para ajudá-lo a passar pela vigilância policial —não foi determinado que ele usasse uma pulseira eletrônica— e conseguisse chegar ao aeroporto internacional de Osaka, onde embarcou em um jato privado.

Especialistas em segurança dizem ser improvável que Ghosn tenha arquitetado uma saída tão audaciosa sem um passaporte falso e um alto nível de assistência na organização e planejamento de cada etapa. Nas avaliações posteriores à fuga, cresceram as manifestações de espanto entre integrantes do governo e diplomatas no Japão, Líbano e França. 

Ainda que pareça improvável, como sugeriu um diplomata que lidou com situação parecida no Japão, que o homem de 65 anos de idade tenha feito tudo isso sozinho —levantando a questão se ele foi beneficiado direta ou indiretamente por algum governo.

Junichiro Hironaka, que lidera a equipe de advogados de Ghosn no Japão, disse que o voo para o Líbano “apareceu do nada”. “Uma grande organização deve ter agido para colocar isso em ação”, afirmou.

Um oficial libanês confirmou um nota à imprensa segundo a qual Ghosn entrou no país com o passaporte francês. A Direção Geral de Segurança do Líbano disse que, portanto, não havia razão para tomar qualquer medida legal contra ele, segundo a agência de notícias estatal NNA. Autoridades francesas não estavam disponíveis para comentar o caso nesta quarta-feira.

2) Qual a reação no Japão?

A reação oficial do Japão, até agora, foi abafada pelo voo de Ghosn, que aconteceu apenas uma semana depois da visita de Keisuke Suzuki, ministro de relações Exteriores, a Beirute, onde passou um tempo com o presidente libanês e outros funcionários do governo. Integrantes do Ministério das Relações Exteriores japonês dizem que a possibilidade de Ghosn viajar ao Líbano não foi discutida no encontro.

Enquanto isso, há quem questione, no Japão, o quão enfurecidos estarão os procuradores agora que há poucas chances de o suspeito mais valioso em muitos anos enfrentar julgamento. Na teoria, dizem especialistas, eles estariam furiosos com a humilhação. Reservadamente, porém, podem sentir que desviaram de um golpe potencialmente maior aos seus orgulhos em um julgamento que também colocaria suas condutas sob intenso e longo escrutínio.

Os procuradores japoneses, sob imensa pressão para manter o recorde de 99% de taxa de condenação, tendem a seguir com casos que sabem que poderão ganhar: em muitas situações, eles só se sentem confortáveis em ir para o tribunal quando já conseguiram uma confissão. Eles não têm uma de Ghosn e, segundo especialistas da área jurídica, previam que o julgamento seria apertado e que os advogados de Ghosn planejavam atacar a maneira como os procuradores construíram o caso e alegariam existir motivações políticas por trás de tudo.

O Ministério Público do distrito de Tóquio e a Agência de Serviços de Imigração do Japão, que estava fechadas pelo feriado de Ano Novo, não foram localizadas para comentar.

3) Ghosn pode viajar e trabalhar?

Em uma breve manifestação na terça (31), Ghosn parece ter iniciado de imediato uma remodelação de sua imagem fora do Japão, a indignidade de sua prisão e o julgamento que agora ele provavelmente evitará.

Segundo essa narrativa, ele não é um fugitivo da Justiça, mas de um sistema injusto —linguagem que parece calculada para assegurar uma rápida reabilitação em certos círculos. Poderia aquele que um dia foi a famosa personificação do “homem de Davos” fazer um retorno surpresa ao Fórum Econômico Mundial na (neutra) Suiça no próximo mês?

Provavelmente não. Amigos de Ghosn dizem que ele provavelmente ficará somente no Líbano nos próximos meses. Mas as restrições a viagens podem não segurá-lo por muito tempo, pois o Japão tem acordos de extradição somente com Coreia do Sul e Estados Unidos.

Hassan Diab, novo primeiro-ministro do Líbano, está tentando montar uma equipe para lidar com a pior crise econômica do país em décadas. Em Beirute, há quem especule que Ghosn, ainda louvado por seus negócios no Líbano, possa ser chamado.

As perspectivas de trabalho nos Estados Unidos, por outro lado, são sombrias. Em setembro, Ghosn concordou em pagar US$ 1 milhão (R$ 4 milhões) para encerrar acusações de fraude feitas pela SEC (a comissão de valores mobiliários dos Estados Unidos). A alegação era de que o ex-chefe da Nissan teria escondido mais de US$ 140 milhões (R$ 560 milhões) referentes a seu pacote de benefícios e salário. Ghosn não admitiu ou negou as acusações feitas pela SEC, mas o acordo o baniu de cargos sênior em empresas americanas por dez anos.

As três montadoras da aliança —Renault, Nissan e Mitsubishi— também iniciaram suas próprias análises das atividades de Ghosn, embora elas agora estejam conclusas. As investigações francesas sobre o financiamento de uma luxuosa festa no castelo de Versalhes e pagamentos de uma empresa holandesa financiada pela aliança e administrada por Ghosn também estão pendentes.

Mais de um ano após sua prisão, Ghosn continua provocador. “Se você quer escapar e fugir para o resto de sua vida, você não diz onde está”, diz uma pessoa que o conhece bem. “Eu não acho que isso tenha chegado ao fim.”

4) Como fica seu julgamento no Japão?

A fuga de Ghosn certamente irá perturbar todo o processo judicial em torno das quatro acusações que o executivo da indústria automotiva enfrenta e as quais ele nega. Duas das acusações estão relacionadas à omissão de mais de US$ 80 milhões (R$ 320 milhões) de seus pagamentos nos demonstrativos financeiros da Nissan.

O julgamento dessas duas acusações também envolvem a Nissan, que é acusada de falsear os pagamentos do antigo chefe, e Greg Kelly, acusado de conspirar com Ghson para omitir ganhos. Kelly, que nega as acusações, segue em Tóquio aguardando julgamento. Pessoas próximas à Nissan que cooperaram com os procuradores japoneses na construção do caso contra Ghosn ficaram perplexas com o voo ao Líbano e questionam como fica o julgamento sem o réu mais importante.

Ghosn também enfrenta um processo separado por quebra de confiança. Se ele não aparecer no primeiro dia de julgamento, que era previsto para abril de 2020, os procedimentos da corte devem ser suspensos.

Procuradores tinham argumentado que havia risco de fuga durante as recentes negociações de fiança em abril. Se o tribunal considerar que ele violou as condições da fiança, 1,5 bilhão de ienes, ou US$ 14 milhões, podem ser confiscado dos valores depositados em fiança por Ghosn.

A prisão de Ghosn em novembro de 2018 colocou holofotes sobre o sistema de justiça japonês e a extrema pressão aplicada para obter confissões dos suspeitos. Seus advogados já tinham pedido a retirada das acusações contra Ghosn com o argumento de que procuradores, funcionários do governo e executivos da Nissan “conspiraram ilegalmente” para derrubá-lo.

Enquanto diz que a fuga de Ghson é “imperdoável”, Hironaka, seu advogado, expressou compreensão dos motivos pelos quais seu cliente sentiu que não conseguiria um julgamento justo no Japão.

Ainda assim, analistas dizem que Ghosn deve enfrentar questões duras por sua decisão de ignorar o sistema judicial japonês e voar para um país onde não há um acordo de extradição. “Nesse ponto, Ghosn passou de um réu para um fugitivo”, diz Koji Endo, chefe de pesquisa de patrimônio na SBI Securities. “Se o julgamento no Japão não terá seguimento, ele conscientemente abandonou a chance de brigar por sua legitimidade.”

5) Como Carlos Ghosn é visto no Líbano?

Muitos na elite libanesa são simpáticos a Ghosn e apontam que o sistema japonês foi indevidamente duro. “O homem deveria ter tido algum tempo para provar sua inocência, se esse fosse realmente o caso’, disse um banqueiro.

O establishment libanês celebrou Ghosn no passado, e chegou a colocá-lo como estampa de selo. Depois de sua prisão em 2018, um apoiador bancou outdoors pela cidade, nos quais era possível ler “Nós somos todos Carlos Ghosn”.

Mas Ghosn chega a um país em turbulência economia e agitação política: os maiores protestos contra a corrupção das elites políticas causou um colapso no governo. Muitos libaneses comuns são mais cínicos sobre multimilionários e não veem um fugitivo como um herói nacional. “Eu não sei nada bom que ele tenha feito pelo Líbano”, disse um empresário local.

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