Descrição de chapéu
Financial Times

Livro traz memórias de uma mulher no mundo masculino das big techs

Repórter relata sexismo, misoginia e jornadas exaustivas dos anos em que trabalhou no Vale do Silício

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Elaine Moore
San Francisco | Financial Times

Não se veem muitas camisetas e abrigos com marcas de empresas nas ruas de San Francisco hoje em dia. Os jovens de 20 e poucos anos costumavam usar logotipos para mostrar lealdade à Zynga, ao Dropbox ou a qualquer empresa de tecnologia bem financiada que os empregasse (e porque as roupas eram de graça). No auge do boom das startups, em 2010, eles eram onipresentes. Agora parecem ter praticamente desaparecido.

“Uncanny Valley” (Vale estranho, em tradução livre), as memórias de Anna Wiener como jovem funcionária de startups, oferece pistas sobre os motivos dessa mudança. O livro é um claro lapso de tempo dos últimos sete anos no Vale do Silício —desde os dias vertiginosos da oferta pública inicial de US$ 104 bilhões do Facebook, em maio de 2012, até a percepção crescente do público de que talvez os fundadores multibilionários das empresas tech não tornarão o mundo um lugar melhor, afinal.

Hoje repórter de tecnologia na revista New Yorker, Wiener era uma assistente de 25 anos em uma agência literária quando decidiu abandonar o navio e se candidatar a um emprego em uma empresa tecnológica

Funcionários do Google durante protesto em Mountain View, Na Califórnia, contra a forma com a qual a empresa lidou com caso de assédio sexual
Funcionários do Google durante protesto em Mountain View, Na Califórnia, contra a forma com a qual a empresa lidou com caso de assédio sexual - Jim Wilson/NYT

“Privilegiado e com mobilidade descendente”, como ela diz. Com vergonha de ainda depender de seus pais para subsidiar aluguel e despesas médicas, ela ingressou numa empresa de ebooks em Nova York. Quando isso não deu certo, mudou-se para a Costa Oeste para trabalhar numa firma de análise de dados e depois se mudou novamente para ingressar na plataforma de desenvolvimento de software GitHub.

A excitação de trabalhar em um setor em que a juventude e a ambição são procuradas e ricamente recompensadas é compreensível. Na Califórnia, otimismo e urgência impregnam tudo. A proximidade de tanta confiança e dinheiro é inebriante. A indústria tecnológica “prometia o que poucas indústrias ou instituições poderiam, na época: um futuro”.

Formada em ciências humanas, Wiener nunca seria um dos engenheiros aos quais se ofereciam vastos bônus de contratação e uma participação acionária generosa. Mas a mudança em sua renda foi imediata e difícil de abandonar, mesmo quando suas dúvidas sobre o trabalho ficaram mais duras de ignorar.

Gradualmente, ela percebeu que interações online aparentemente efêmeras estavam sendo preservadas para sempre e que big data significava coletar todos os tipos de informação pessoal sem pedir permissão. 

Em uma startup, os funcionários podiam acessar o “GodMode” (modo Deus) para rastrear informações pessoais de usuários online, deixando Wiener paranoica sobre quem poderia estar assistindo a seus próprios hábitos de navegação.

A autora é uma escritora talentosa e apresenta um relato claro de suas próprias limitações como funcionária de empresa tecnológica, oferecendo análises culturais do setor. Enquanto ela aprende sobre capital de risco, KPIs (“principais indicadores de desempenho” para os mortais) e software de código aberto, o leitor a acompanha.

Ao descrever os últimos anos como “um momento de obsequiosidade corporativa para homens jovens”, ela apoia com estatísticas. Menos de 5% dos colaboradores da comunidade de código aberto são mulheres, por exemplo. Em uma empresa, Wiener era uma das 8 mulheres entre 60 funcionários. 

O gosto do setor por subverter normas corporativas como hierarquia, horário comercial, cargos e RH leva ao assédio moral e à exaustão dos trabalhadores. “Sexismo, misoginia e objetivação não definiam o local de trabalho —mas estavam por toda parte. Como papel de parede, como ar.”

“Uncanny Valley” começou como ensaio na revista literária americana “N+1” há quatro anos, e as tendências descritas por Wiener se aceleraram. Concordei de cabeça com a descrição dela de San Francisco como uma cidade “presa à nostalgia de sua própria mitologia”, onde acampamentos de sem-teto estão se expandindo e jovens trabalhadores ricos usam o exercício físico como principal atividade cultural.

A crise imobiliária significava que seu impressionante salário era consumido pelo custo de vida. A certa altura, ela e duas colegas de moradia, que tinham uma renda anual conjunta de mais de US$ 400 mil (cerca de R$ 1,6 milhão), dividiam um apartamento de aluguel controlado, porque não podiam se dar ao luxo de viver sozinhas.

As startups para as quais Wiener trabalhou nunca são citadas, embora pistas suficientes sejam deixadas para aqueles que quiserem adivinhar. De fato, nenhum nome é citado, o que se torna cansativo quando aplicado a empresas conhecidas. O Airbnb é “uma plataforma amigável ao milênio para alugar quartos de desconhecidos”, e a Amazon, “uma superloja online”.

A Uber é “uma startup de compartilhamento de viagens sob demanda”, e a Lyft é sua rival “mais bonita”. Depois de um tempo, a falta de substantivos próprios atrapalha.

Logo da Uber
"A Uber é “uma startup de compartilhamento de viagens sob demanda”, e a Lyft é sua rival “mais bonita”. Depois de um tempo, a falta de substantivos próprios atrapalha" - Brendan McDermid - 01.nov.2019/Reuters

Esse é um defeito menor. “Uncanny Valley” é uma contribuição artística à guerra contra o excepcionalismo tecnológico. Como um relato da indústria através dos olhos de uma trabalhadora, é um companheiro interessante de “On the Clock”, de Emily Guendelsberger, que descreveu empregos em algumas das maiores empresas dos Estados Unidos como estar à mercê de algoritmos, contratos sem horário e rastreamento de dados. 

Os livros sugerem que as empresas de tecnologia buscam irracionalmente a otimização por si só, sem muito interesse pelo custo humano. Tais críticas talvez não impeçam o aumento do preço das ações, mas dão mais peso à reação política que já levou à maior regulamentação do setor.

Em alguns trechos, “Uncanny Valley” parece um roteiro de comédia. Ela descreve um colega como alguém que usava “jeans tão justos que parecia que eu já o conhecia”, e outro com o hábito pouco atraente de “enfiar a mão pensativamente na parte de trás da própria cintura”. 

O livro foi escolhido para um filme por um dos produtores de “A Rede Social” (2010), que espicaçou o Facebook. 

Mal posso esperar.

(Tradução de Luiz Roberto Mendes)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.