Descrição de chapéu
Cifras &

Narrativa contundente de favorito ao Oscar evidencia choque cultural China-EUA

Produzido pelos Obamas, 'Indústria Americana' explora dificuldades de empresa chinesa na América sem virar um panfleto maniqueísta

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Indústria Americana

  • Onde Disponível na Netflix
  • Produção Estados Unidos, 2019
  • Direção Julia Reichert e Steven Bognar

"Democracia em Vertigem" que me desculpe, mas lobby é fundamental. E não há lobby maior na bolha progressista do Oscar do que ter os nomes de Barack e Michelle Obama como padrinhos de um filme.

No ano em que Donald Trump disputa a reeleição, é quase certo que a estatueta de melhor documentário irá para "Indústria Americana", filme lançado pela Higher Ground, recém-criada produtora do ex-presidente e da ex-primeira-dama dos EUA.

A obra de Julia Reichert e Steven Bognar, porém, não vive só de currículo e sobressai ao contar uma história sobre choque cultural e questões trabalhistas permeada pela crise americana pós-2008.
No final daquele ano, companhias de diferentes setores fecharam fábricas pelo país, provocando a demissão de milhares de pessoas, sobretudo no Meio-Oeste americano.

Moradores de uma cidade próxima a Dayton, no estado de Ohio, os diretores passaram a registrar o fechamento de uma dessas fábricas. O material produzido à época gerou o curta "The Last Truck: Closing of a GM Plant", embrião de "Indústria Americana".

Por isso, as cenas de abertura do indicado ao Oscar mostram funcionários da General Motors se abraçando e chorando em meio a veículos que nunca seriam montados.

O que acontece a seguir, contudo, é excitação, e não desânimo. A chegada da empresa chinesa Fuyao seis anos depois para ocupar o local onde existia a fábrica da montadora americana deu aos moradores de Dayton a oportunidade de voltar a trabalhar –e a ilusão de uma vida mais decente.

Cena do documentário 'Indústria Americana', de Julia Reichert e Steven Bognar - Divulgação

Ao mesmo tempo que mostra como uma operadora de empilhadeira deixou o porão em que vivia após conseguir o novo emprego, o documentário exibe a ruína dos valores pagos aos operários.

Se no passado um funcionário da GM recebia US$ 29 (R$ 121) por hora trabalhada, esse número cai para US$ 12,84 (R$ 53) com a empresa chinesa.

Aceitar uma redução tão drástica passa, claro, pelo desespero imposto pela economia e o enfraquecimento de sindicatos, tudo embalado no discurso amplamente difundido por ultraliberais, segundo o qual os trabalhadores precisam escolher binariamente entre emprego e mais direitos.

Esse panorama fica explícito logo após o anúncio da chegada chinesa, quando moradores participam de uma palestra sobre a nova empresa. 

"Vocês são sindicalizados?", pergunta um homem de espesso bigode branco. "Não somos e não queremos ser", responde o representante da Fuyao, mas "nós reconhecemos que temos de ser justos com os funcionários".

Flexibilização de leis trabalhistas e tentativas de evitar a sindicalização de funcionários não são exclusividades da China --muitos nos EUA também praticam esse jogo. Mas o choque cultural entre americanos e chineses logo se apresentaria na prática, no chão da fábrica.

Ali, asiáticos levados aos EUA para ensinar como os vidros automotivos da Fuyao deveriam ser fabricados ficam espantados com o ritmo dos americanos --"são lentos, têm dedos gordos"-- e com as jornadas de "apenas" oito horas.

A pressão por maior volume de produção é personificada no presidente da empresa, o bilionário Cao Dewang, em grande parte do documentário retratado como um homem essencialmente de negócios, centralizador e pragmático.

Por outro lado, o documentário capta também a dinâmica contrária, de amizades surgidas a partir do convívio diário e do interesse pelo outro.

Essa abordagem intimista, em uma narrativa simples, clara e contundente, só foi possível devido à confiança adquirida pelos diretores após anos acompanhando o processo.

"Indústria Americana" tem forte pegada política, mas não se propõe a ser um panfleto de narrativa maniqueísta. A capacidade produtiva –e obsessiva– dos chineses não é mostrada apenas como a exploração de pobres coitados: a mentalidade do trabalho como missão nacional está naturalizada em seus cidadãos.

Entretanto, não há como ignorar que essa é uma obra realizada a partir da perspectiva de dois americanos conectados à comunidade retratada e que a China, num filme produzido por um ex-presidente dos EUA, é tema espinhoso.

Esse aspecto fica mais claro ao fim da exibição do documentário, disponível e coproduzido pela Netflix, em que um vídeo promocional é automaticamente reproduzido: uma conversa dos Obamas com os diretores de "Indústria Americana". 

Durante quase dez minutos, os dois casais discorrem repetidamente sobre a importância de dar a voz a todos os personagens e as razões que levaram Barack e Michelle a abraçar o filme favorito ao Oscar. Curiosamente, apenas uma palavra não é pronunciada: China.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.