Descrição de chapéu Obituário David Kupfer (1957 - 2020)

Marcos Lisboa: Não era hora de David Kupfer

Economista era sereno, ponderado, sempre refletia cuidadosamente antes de qualquer afirmação

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Marcos Lisboa

Eu era aluno de graduação de economia na UFRJ, e David trabalhava no Instituto de Economia Industrial.

As aulas ocorriam no andar de cima e as salas dos pesquisadores ficavam no térreo, ao redor de um teatro de arena no belo prédio da Praia Vermelha.

Durante quase toda a faculdade fui assistente de pesquisa do núcleo de economia industrial, e trabalhei com David durante algum tempo.

Eram tempos de esperança e de ousadia.

A ditadura terminava e acreditávamos que poderíamos ajudar a construir um país melhor do que o que recebíamos.

O economista David Kupfer, que era membro do Conselho Superior de Economia da Fiesp - IEA/USP

Sou inquieto, irritadiço, sempre a testar novas ideias.

David era o oposto. Sereno, ponderado, sempre refletia cuidadosamente antes de qualquer afirmação. Ele parecia manusear os argumentos com o olhar de um artesão, que examina meticulosamente seu trabalho em busca de uma falha imperceptível para os demais.

Como era comum na época, a profissão e o afeto se entrelaçavam.

Passávamos o dia na UFRJ e à noite, de vez em quando, íamos jogar sinuca durante horas. Literalmente. Uma vez chegamos às sete da noite e saímos com o dia a nascer.

Nosso jogo de sinuca era similar à nossa parceria no truco. Quase não havia conversa ou troca de sinais. Truco científico, ele dizia.

Jogávamos futebol uma vez por semana, seguido de uma interminável conversa em um botequim que só terminava quando Botafogo, apelido do garçom que sempre vestia a camisa do seu time de futebol, saía a jogar água no chão para limpá-lo e nos expulsar. Era a hora da pororoca.

Há muito deixei o Rio e nas últimas décadas pouco encontrei David.

Quando o visitei há poucas semanas no hospital, ele comentou sobre aquela época em que ele,

Andrezinho, Silvinho e eu ficávamos a resolver todos os problemas do Brasil nas conversas de botequim.

Nos tempos antigos, os cariocas adotavam os diminutivos. Eles, nos seus 20 e tantos anos, eram os adultos sensatos, enquanto eu, mal saído da adolescência, tinha o privilégio de poder arriscar qualquer argumento, por mais disparatado que fosse, e ser ouvido com atenção.

David foi ponderado até o fim. Economista preocupado com o desenvolvimento do nosso país, estudava minuciosamente as condições adversas para a nossa indústria e como a política pública poderia contribuir para o seu crescimento saudável.

Nem sempre concordávamos, mas nossas divergências eram minúsculas em comparação com nosso afeto. Era fácil admirar David. Seu interesse sempre foi o bem dos demais.

Não era ainda hora, David, não era hora.

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