'Jabuti' em MP acaba com voto de desempate no Carf

Falta de critério para antecipar pagamento de dívida e bônus para fiscais da Receita também preocupam

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São Paulo

Uma alteração de última hora feita pelo Congresso Nacional na medida provisória do Contribuinte Legal colocou em risco a atuação do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), órgão do Ministério da Economia, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha.

A MP, que perde sua validade nesta semana e precisa ser aprovada ainda pelo Senado, estabelece que a União poderá conceder desconto no valor de créditos tributários na renegociação de dívidas.

Segundo o procurador da Fazenda Nacional Leonardo Alvim, pesquisador do Insper e da Escola Superior Dom Helder Câmara, a redação final do texto na Câmara inclui dispositivo que acaba com o chamado voto de qualidade do Carf.

Os julgamentos do conselho são realizados em câmaras com representantes do fisco e dos contribuintes, de forma paritária. Quando há empate, o presidente da câmara, que é representante da Receita Federal, tem o chamado voto duplo, que vale por dois.

O argumento para manter esse formato é que o contribuinte, quando perde, pode rediscutir a questão no Judiciário. Quando há derrota do fisco, o governo não pode ir à Justiça. Para o procurador, essa mudança também pode ter efeitos retroativos. "Isso pode ocasionar uma sangria de bilhões de reais", afirma.

"Essa mudança de última hora que está na MP, ela atribuiu ao empate a vitória do contribuinte, mas não mexeu em um ponto que é, se a Fazenda perde no Carf, ela não pode recorrer ao Judiciário", afirma o professor da FGV e do Insper Breno Ferreira Martins Vasconcelos, sócio da Mannrich e Vasconcelos Advogados.

Segundo Vasconcelos, esse dispositivo não tem relação com o tema principal da MP. Ou seja, trata-se daquilo que os parlamentares chamam de jabuti (alusão ao fato de que jabuti é um animal que não sobe em árvores, e se está no alto de uma é porque alguém o colocou lá). A expectativa é que ele possa ser derrubado pelo Judiciário, caso não seja antes vetado pelo Executivo.

Na votação da quarta (18) na Câmara, também foi incluído outro jabuti: um dispositivo que regulamenta o bônus por desempenho pago a auditores e analistas da Receita.

Os dois especialistas também criticam outro ponto do texto enviado ao Congresso pela Economia, que dá ao Executivo o poder de negociar com setores específicos acordo sobre temas ainda não julgados pelo Judiciário, a chamada transação de teses.

De acordo com Alvim, no caso da transação de teses, o texto precisa ser muito bem regulamentado para que o governo não possa antecipar arrecadação abrindo mão de ações que, em determinados casos, poderiam dar ganho total à União no futuro.

Segundo Alvim, a Receita e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional terão de definir critérios para vincular o percentual de desconto do débito em discussão à probabilidade de derrota do governo na ação judicial, mas é muito difícil definir parâmetros para que se possa dizer de forma objetiva se a União vai ganhar ou não uma determinada ação.

Além disso, a MP diz que esse instrumento deverá ser usado de forma restrita, em questões que afetem um determinado setor econômico, por exemplo, e não todos os contribuintes.

"Aí vira um negócio que não é para todo o mundo. Pode ser só para banqueiro, só para o setor A, o setor B. Se for de forma geral, embora possa ter o risco do que eu chamo de uma pedalada tributária, que é antecipar recebimento de crédito tributário mediante transação, ainda é menos mal", afirma Alvim.

Alvim questiona também o fato de, na exposição de motivos da MP, o governo calcular a previsão de arrecadação com a medida e não trazer números sobre a renúncia fiscal, contrariando a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Segundo ele, ao desistir de tese tributária que ela própria considera correta, a União está abrindo mão de arrecadação. "Mesmo que tenha alta de arrecadação nos primeiros anos, ela renunciou àquilo que iria receber lá na frente. Desde 2016, a própria Procuradoria considera como sendo renúncia tributária", afirma.

"Todos os programas de parcelamentos previam renúncia tributária. Quando você tem uma renúncia, a LRF determina que você ou aumente tributo para compensar ou só entre em vigor no ano seguinte com uma compensação com corte de despesa do outro lado."

Sobre o bônus da Receita, os congressistas inseriram no texto final um trecho que impede que o valor arrecadado com as multas seja usado no cálculo do pagamento do benefício.

Sem essa regulamentação, o princípio adotado era de que quanto mais autuações, maior seria a bonificação aos auditores e analistas tributários, segundo o relator da medida provisória, deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP).

Autor da emenda aglutinativa —que reúne mais de uma proposta de mudança ao texto principal— aprovada, o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) diz que a intenção foi aperfeiçoar o exagero.

"Algumas empresas dizem que eles [os auditores e analistas] aplicam multas só para receber bônus. A proposta é que não recebam bônus sobre multas. Eles continuam a ter bônus, mas o cálculo só tomará como base o valor do tributo, não da multa", resume.

Na avaliação de Alberto Medeiros, advogado tributarista do escritório Stocche Forbes Advogados, a falta de regulação mínima também travava o pagamento de bônus.

O TCU (Tribunal de Contas da União) já havia alertado que a falta de parâmetros para a base de cálculo dos bônus impedia a correta mensuração do impacto fiscal da medida aprovada em 2017, diz.

A mesma MP limitou ainda o valor do bônus a 80% do valor do maior vencimento do cargo em questão –analista tributário e auditor fiscal. A bonificação também não poderá servir de base de cálculo para gratificações e adicionais, explica Medeiros.

Colaborou Danielle Brant

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