Descrição de chapéu
Coronavírus

O lado perverso das intervenções no mercado de crédito pelo Fed

Mais liquidez parece ser a melhor alternativa em cenários de crise, mas o diabo está nos detalhes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Daniel Passos Miraglia Roberto Dumas Damas

Em situações de incêndio na vida real ou aproximação de uma crise financeira sem precedentes, nada soa melhor aos ouvidos do que a sirene dos bombeiros e o anúncio de que a autoridade monetária irá atuar para minimizar os impactos da crise.

Na semana passada, o banco central dos EUA (FED, Federal Reserve) anunciou que passaria a intervir no mercado secundário de bônus corporativos comprando vastas quantias de papeis de empresas, incluindo as classificadas como “más pagadoras” (junk bonds), restrita aos bônus corporativos denominados em inglês “falling angels”, ou seja, eram “boas pagadoras” e passaram a se tornar “más pagadoras” pois a probabilidade dessas empresas em dar um calote no credor aumentou.

Sede do FED em Nova York; banco passou a intervir no mercado secundário de bônus corporativos - Reuters

Três urras para essa intervenção, afinal de contas, em momentos de crise, nada melhor que a autoridade monetária inundar o mercado de liquidez de forma a amenizar o impacto contracionista da crise. Muita calma nessa hora.

Na realidade, quando FED passou a comprar bônus corporativos a um preço maior do que o grau de risco embutido nesse bônus implica, ele acabou distorcendo todo o sistema de “precificação” de dívidas corporativas.

Exemplo: suponha uma empresa que é considerada “má pagadora” e tem bônus corporativos (junk bonds) negociados no mercado secundário. Em um cenário de não intervenção, o spread que remuneraria esse bônus poderia ser da ordem de 3% ou 4%.

No entanto, quando o FED resolve abrir suas torneiras e intervir no mercado secundário de bonds e falling angels pagando preços maiores do que o implícito no risco destes papéis, ele acaba criando distorções indesejadas nos spreads de crédito.

Mas como isso acontece? Vamos supor que aquele bônus corporativo de “baixa qualidade" de crédito, seja comprado pelo FED a uma taxa de juros de 1% ao ano.

Ao realizar essa intervenção, todo sistema de precificação de outros bônus fica distorcida, pois o mercado terá que “reprecificar” todos os créditos. Esse novo e artificial preço do crédito poderá não remunerar adequadamente o capital de uma instituição financeira dado um determinado risco de crédito.

Agora,imagine um banco que poderia, com seu excesso de caixa, prover créditos para essas empresas que emitem bônus. Se um desses devedores for caracterizado como “mau pagador” e goze de um risco de crédito mais alto, certamente a instituição financeira demandará mais juros para emprestar seus recursos.

Se os juros estão artificialmente baixos por intervenção do FED, é possível que esta mesma instituição financeira não empreste os recursos pois a taxa de juros não remunera seu capital.

O inferno está cheio de pessoas com boas intenções. Mais liquidez muitas vezes parece ser sempre a melhor alternativa em cenários de crise como esse que estamos vivendo, mas o diabo está nos detalhes.

Ao intervir tentando prover liquidez comprando junk bonds, os juros de vários bônus corporativos são jogados para baixo artificialmente. E se esse retorno de novas operação de crédito não compensar o capital alocado pelo banco, então esse mesmo banco passará a não querer emprestar mais, reduzindo a disponibilidade de crédito na economia.

Provavelmente o banco preferirá empoçar a liquidez do que ver seu capital remunerado inadequadamente.

Noves fora, a intervenção do FED ao prover liquidez para o mercado secundário de crédito, sem fazer a correta diferenciação de preços, apesar de à primeira vista merecer elogios, pode acabar suscitando um aperto de crédito por parte dos bancos.

Ao final, há de se avaliar se essas intervenções do FED não acabarão por alimentar ainda mais o urso (“bear market”) do que ajudar a ressuscitar o touro (“bull market”).

Daniel Passos Miraglia

Mestre em Finanças pela Business School São Paulo e pela Fundação EOI da Espanha

Roberto Dumas Damas

É professor de economia do Insper, mestre em economia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia pela Universidade Fudan, na China

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.