Trabalhadores rurais tornam-se 'essenciais' nos EUA durante a pandemia

Trabalhadores agrícolas imigrantes foram instruídos a continuar trabalhando, apesar das diretrizes para ficar em casa, e receberam cartas atestando seu papel "crítico" na alimentação do país

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Miriam Jordan
Los Angeles | The New York Times

Assim como legiões de trabalhadores rurais imigrantes, Nancy Silva trabalha há anos na árdua tarefa de colher frutas frescas que os americanos saboreiam, o tempo todo temendo que um dia ela perca seu ganha-pão porque está nos Estados Unidos ilegalmente.

Mas a crescente pandemia de coronavírus trouxe um tipo incomum de reconhecimento: seu trabalho como mão de obra agrícola foi considerado pelo governo federal "essencial" para o país.

Silva, que passou boa parte da vida nos Estados Unidos se esquivando da polícia, agora carrega na carteira uma carta de seu empregador, declarando que o Departamento de Segurança Interna a considera "fundamental para a cadeia de suprimento alimentar".

Trabalhador rual trabalha em um campo de coentro na Califórnia, nos EUA, durante a expansão do coronavírus ao redor do mundo
Trabalhador rual trabalha em um campo de coentro na Califórnia, nos EUA, durante a expansão do coronavírus ao redor do mundo - Norma Galeana/Reuters

"É como se de repente eles percebessem que estamos aqui contribuindo", disse Silva, uma imigrante mexicana de 43 anos que trabalha em pomares de tangerinas perto de Bakersfield, na Califórnia.

Não é segredo que a grande maioria das pessoas que plantam e colhem alimentos nos Estados Unidos são imigrantes em situação ilegal, principalmente do México, muitos deles residentes há décadas no país. Frequentemente pais e mães de crianças nascidas nos Estados Unidos, eles vivem há anos com a nuvem da deportação pairando sobre suas famílias.

As cartas de "trabalho essencial" que muitos agora possuem não são um passe livre das autoridades de imigração, que ainda podem deportar Silva e outros trabalhadores rurais a qualquer momento.

Mas as autoridades policiais locais disseram que as cartas podem dar aos trabalhadores imigrantes uma sensação de segurança de que não serão presos por violar as ordens de quarentena.

"Se você tem pessoas que sabem que podem ser detidas e interrogadas ou deportadas por causa de sua situação, nessas circunstâncias, ter essa carta faz que se sintam confortáveis", disse Eric Buschow, capitão de polícia no condado de Ventura, onde milhares de trabalhadores rurais atuam em plantações de morango, limão e abacate. "Eles podem ir trabalhar. E o trabalho deles é essencial agora."

A pandemia também deixou em suspensão muitas operações da Polícia de Imigração e Alfândega. Em 18 de março, o órgão disse que "adaptaria temporariamente sua postura de fiscalização" para se concentrar não nos imigrantes ilegais no país, mas naqueles que representam ameaça de segurança pública ou criminal.

A agência disse que não realizaria fiscalização perto de unidades de saúde, "exceto nas circunstâncias mais extraordinárias" e, em vez disso, concentraria seus esforços no tráfico de pessoas, gangues e combate a drogas.

"Aqueles de nós que não têm documentos vivem com medo de a imigração nos apanhar", disse Silva. "Agora nos sentimos mais descontraídos."

Em todo o país, os trabalhadores rurais têm lutado para entender o que significa o surto de coronavírus para sua segurança e seu meio de vida. Mesmo que enfrentem um risco menor de deportação, muitos se preocupam que as condições de trabalho rigorosas nos campos e nos centros de embalagem os coloquem sob o risco de contrair o vírus.

Para muitos trabalhadores, o fato de agora serem considerados ao mesmo tempo ilegais e essenciais é uma clara ironia, assim como para os patrões que há muito tempo têm de navegar por um emaranhado jurídico para manter uma força de trabalho nos campos.

"É triste que seja necessária uma crise de saúde como essa para salientar a importância dos trabalhadores rurais", disse Hector Lujan, executivo-chefe da Reiter Brothers, grande produtor de frutas silvestres de propriedade familiar com sede em Oxnard, Califórnia, que também tem operações na Flórida e no Noroeste-Pacífico.

Lujan, cuja empresa utiliza milhares de trabalhadores agrícolas, os descreveu como heróis desconhecidos, por garantir que os americanos tenham segurança alimentar.

"Talvez um dos benefícios dessa crise seja o fato de serem reconhecidos e saírem das sombras", disse Lujan, cuja empresa pressiona o Congresso a aprovar um projeto de lei que legalizaria os trabalhadores rurais imigrantes.

Cerca da metade dos que fazem colheitas nos Estados Unidos, mais de 1 milhão, estão no país ilegalmente, segundo o Departamento de Agricultura. Produtores e mediadores de mão de obra estimam que a porcentagem esteja mais próxima de 75%.

Apesar do aumento da mecanização, o setor agrícola continua lutando com escassez de trabalhadores, porque muitas frutas e legumes devem ser colhidos à mão para que não estraguem.

Em uma pesquisa realizada em 2017 com agricultores pelo Departamento de Agricultura da Califórnia, 55% relataram escassez de mão de obra, e quase 70% para os que dependem de trabalhadores sazonais. Os aumentos salariais nos últimos anos não compensaram o déficit, disseram os produtores.

As operações de morango na Califórnia, os pomares de maçãs em Michigan e as fazendas leiteiras em Nova York e Idaho estão enfrentando uma força de trabalho cada vez menor e mais velha, a repressão na fronteira e o fracasso do Congresso em aceitar uma revisão das leis de imigração que poderia permitir uma fonte de mão de obra constante. O aumento das deportações e o retorno voluntário de muitos mexicanos a seu país agravaram a escassez.

Em consequência, os produtores se voltaram cada vez mais para um programa sazonal de trabalhadores convidados, oficialmente conhecido como programa H-2A, para preencher as lacunas na oferta de mão de obra. O número de trabalhadores com visto disparou para 257.667 no ano fiscal de 2019, em comparação com 48.336 em 2005.

Os produtores entraram em pânico depois que o Departamento de Estado interrompeu o processamento de vistos no México durante a emergência de saúde pública. Em resposta ao clamor, o departamento anunciou em 26 de março que dispensará as entrevistas pessoais, permitindo que a maioria das solicitações seja examinada a tempo do pico da colheita.

A agricultura americana está em um momento crítico, com um volume enorme de produtos a ser colhidos entre agora e agosto. Na Califórnia, as frutas cítricas ainda estão sendo arrancadas das árvores, os morangos estão em andamento e muitas outras culturas amadurecerão no verão. Na Geórgia, cebolas e pêssegos logo estarão maduros. Em Washington, as macieiras ficam carregadas no verão.

Cartas notificando os trabalhadores ilegais no país de que são "essenciais", quando ainda enfrentam oficialmente uma possível deportação, enviam os mesmos sinais contraditórios que há muito estão na origem da política de trabalho agrícola dos EUA, segundo muitos que atuam em conexão com o processo.

"Algumas pessoas estão realmente confusas com a mensagem. O governo está dizendo a elas que precisam trabalhar, mas não suspendeu as deportações", disse Reyna Lopez, diretora-executiva do PCUN, sindicato que representa trabalhadores agrícolas em Woodburn, no Oregon.

Ela e outros advogados disseram que os empregadores não estão fazendo o suficiente para educar seus trabalhadores, que geralmente não falam inglês, sobre o coronavírus. "Quando as pessoas não entendem os riscos, não tomam as precauções necessárias", disse Lopez.

A pandemia encerra riscos particulares para os trabalhadores agrícolas. A maioria deles não recebe licença remunerada se adoecer e não possui plano de saúde. O pacote de ajuda pandêmica de US$ 2 trilhões que foi aprovado no Congresso na semana passada não oferece assistência a imigrantes ilegais.

Armando Elenes, secretário-tesoureiro da United Farm Workers [Trabalhadores Agrícolas Unidos], disse que cartas afirmando que os trabalhadores são "essenciais" não substituem "medidas significativas para conter a pandemia, protegendo os trabalhadores rurais com ações básicas". Isso incluiria, segundo ele, estender a licença médica para 40 horas ou mais, facilitando o pedido de licença pelos trabalhadores e proporcionando uma desinfecção mais agressiva das áreas de trabalho.

Alguns produtores, como a Reiter Brothers, educaram os trabalhadores para se manterem saudáveis, incluindo a lavagem frequente das mãos e as técnicas adequadas para tossir e espirrar. A empresa aumentou o número de estações de lavagem de mãos nos campos e distanciou os trabalhadores que colhem morangos. A empresa também oferece atendimento médico.

Jim Cochrane, produtor de frutas orgânicas, alcachofras, brócolis e outras culturas em Santa Cruz, na Califórnia, disse a seus funcionários que continuaria pagando se eles contraíssem o vírus e tivessem que faltar ao trabalho, mesmo por três semanas.

Mas essas políticas são exceções, de acordo com os United Farm Workers.

Os trabalhadores agrícolas em centros de embalagem e processadoras de aves, que costumam trabalhar em locais fechados, têm medo de contrair o vírus e se preocupam com os recentes cortes que ameaçaram sua capacidade de trabalhar.

Maura Fabian, 48, embala uvas para escolas e hospitais em um armazém no Central Valley, perto de Fresno, onde disse que cerca de metade dos trabalhadores foi dispensada; os outros, inclusive ela, tiveram suas horas de trabalho drasticamente reduzidas, disse.

Desde 16 de março, Fabian trabalha em turnos de quatro horas na maioria dos dias e recebe instruções para não se apresentar nos outros.

Ela supõe que seu patrão enxugou as linhas de embalagem porque, com as escolas fechadas, a demanda por frutas embaladas diminuiu. A empresa também está tentando impedir a disseminação do Covid-19 entre os trabalhadores, disse ela.

"Temos medo dessa doença. Mas temos mais medo de não conseguir ganhar a vida", disse Fabian, mãe solo que comprou uma casa em outubro, onde mora com os três filhos.

Em Idaho, onde em 25 de março o governador implementou uma ordem de permanência em casa em todo o Estado, os proprietários de laticínios estão se esforçando para garantir que os 8.000 trabalhadores da indústria, 90% deles ilegalmente no país, possam continuar trabalhando. Mesmo antes do vírus, a indústria, que precisa de trabalhadores durante o ano todo para ordenhar as vacas, já enfrentava um déficit de mão de obra.

Rick Naerebout, executivo-chefe da Associação de Laticínios de Idaho, disse que recebeu ligações de muitos fazendeiros preocupados com a possibilidade de seus trabalhadores não conseguirem chegar ao trabalho se as autoridades impuserem restrições às viagens domésticas. Portanto, ele tem fornecido aos membros um modelo para imprimir em papel timbrado oficial e distribuir aos trabalhadores, declarando que agora eles são considerados essenciais, parte da infraestrutura crítica do país.

"O fato de haver esse reconhecimento cognitivo de que precisamos permitir que esses indivíduos viajem para trabalhar porque são críticos --é o oposto total do que ouviram durante quase toda a vida, de que tiraram oportunidades dos americanos", disse ele.

"No mais alto nível do governo, agora vimos isso ser reconhecido. Seja formal ou informal, há o reconhecimento de que você é bom."

(Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves)

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